A aventura do pensamento vivo
«É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro.»
Ruy Belo, verso do poema «A Mão no Arado», in Todos os poemas
Sempre que alguém me diz que «falta rigor» ou «é preciso rigor», respondo, com uma piada que contém uma teoria: «certamente, mas evitando o rigor mortis». Este último tipo de rigor não se afasta um milímetro do já conhecido, testado, consolidado, esgotado. É exercido com a rigidez intransigente de uma verdade que olha apenas para o passado, não para renová-lo, mas para venerá-lo. Venerar o que foi, como foi e porque foi. Contudo, o passado vivo não se deixa aprisionar tão facilmente, embora o clube dos rigorosos acredita que sim.
Se julgam que estamos a jogar o jogo das dicotomias fáceis — de um lado os hermeneutas maus (veneram um passado simplificado), do outro os hermeneutas bons (revolvem o passado e projetam-se no futuro) —, desenganem-se. Aliás, talvez devêssemos viver assim: desenganando-nos, enganando-nos e desenganando-nos de novo. O incandescente George Steiner (iluminou tantos dos meus pensamentos com a sua benigna erudição rebelde!) guia-nos no In Bluebeard’s Castle (No Castelo do Barba Azul, Relógio D’Água) para algumas interpretações claramente conservadoras — ele que se assumia, à semelhança de Peter Sloterdijk, como um «conservador vanguardista». Para Steiner, trata-se de conservar o mistério do humano, de manter fechada a última porta do castelo. Não porque dê acesso às anteriores esposas sequestradas do Barba Azul (na interpretação de Béla Bartók), fruto de uma libido insaciável que desbarata e consome sistematicamente os compromissos nupciais, mas porque, neste caso, essa porta pode abrir para o quarto onde o genoma humano se mantém conservado e irreconhecível (o livro é de 1971). Contudo, será apenas uma questão de tempo. A nossa «obsessão heurística», como lhe chama Steiner, acabará por escancarar tudo. Abriremos essas portas «porque é o mérito trágico da nossa condição abrir portas.» Mesmo vivendo, ainda segundo este autor, numa «pós-cultura», em que não se lê, ou se lê mal, em que a música erudita deixou de ser ouvida ou em que o pathos matemático se reduziu ao mínimo. Bem sei que o conservadorismo de Steiner é composto de forças inovadoras, mas isso não o impede de criticar a curiosidade invasiva, talvez a mesma que constituiu a húbris de Édipo, e certamente a que hoje elevou a transparência a valor de referência (e que Byung-Chul Han tão bem critica n’A Sociedade da Transparência). Transformamo-nos, lenta mas inexoravelmente, em seres sem mistério.
Na primavera de 2021, a revista Electra dedicou o seu dossier à curiosidade. São páginas instrutivas e fulgurantes. Primeiro, o clássico: a filosofia, momento originário do livre pensamento — quase ainda sem espíritos livres —, para Platão e Aristóteles, nasceu do espanto, do assombro. É essa a lição que nos trazem o Teeteto e a Metafísica. Mas há também um clássico oposto: «Por causa desta doença da curiosidade, exibem-se nos espetáculos as coisas mais prodigiosas. Daqui passa-se à indagação dos segredos da natureza, que estão fora do nosso alcance e que não há nenhum proveito em conhecer.» (Santo Agostinho, Confissões) Nada de novo em Santo Agostinho: do final do Império Romano até ao Renascimento, a curiosidade foi invariavelmente malvista. E mesmo em pleno Iluminismo, a entrada da Encyclopédie considera a curiosidade como louvável ou condenável, dependendo dos objetos e das finalidades a que se dirige. Ainda hoje, aliás, the curiosity killed the cat.
Interessou-nos trazer aqui duas notas sobre a curiosidade, pois ela é o ponto de partida para a aventura, um começo que nos permite saltar para as margens da normalidade e, no fundo, goste-se ou não da palavra, para a marginalidade. A aventura que daí pode (realço o condicional) advir, usando o impulso inicial da curiosidade, consegue, depois, sobreviver sozinha, percorrendo caminhos de descoberta de si, de outrem e do mundo. A partir de agora, quando falarmos de aventura, saberão que é ontologicamente composta por uma parcela de curiosidade, condição necessária, mas não suficiente da aventura. Saberão também que temos em mente aquilo que Gilles Deleuze disse a Claire Parnet nos Dialogues: «o interessente é o meio, não o início ou o fim». E aquilo que Marcos Foz declara, prolongando a ontologia aberta de Deleuze, ao discorrer sobre os limites de um diário: «e sim, cartografar o futuro, mas entra-se sempre a meio de um caminho.» (Enublado Dizes, p. 44). E, para finalizar com uma inquietação pessoal: a devoção que prestamos à vertigem horizontal.
Mas, no meio das tendências, observadas e catalogadas — seja pela história, sociologia ou psicologia —, há os eletrões livres, os cometas, os foras-da-lei. Recordemo-los para os homenagear, pois foram eles, aventureiros do pensamento vivo, que evitaram a petrificação do mundo. Para René Descartes (injustamente e redutoramente preso na cartilha do racionalismo), como ele próprio declara logo no início do magnífico Discurso do Método: havia chegado a hora de ler «no grande livro do mundo», tornando-se um viajante prolífico. Encontrar exércitos, frequentar homens de diferentes humores e condições, recolher as experiências que pudesse. Descartes aventurou-se no desconhecido porque não lhe bastava o que conhecia, nem o modo como conhecia. É verdade que as viagens não lhe trouxeram nenhuma ideia clara e distinta, mas foi essa aventura intelectual que lhe permitiu, mais tarde, focar-se no conhecimento das capacidades da razão; uma outra forma de aventura.
Para Blaise Pascal, «Nada é tão insuportável para o homem como estar em pleno repouso, sem paixões, sem ocupações, sem divertimentos, sem incumbências.» (Pensées) Mais próximo de nós, Vladimir Jankélévitch em L’Aventure, L’Ennui, le Sérieux, explica bem o que nos impele, o que o levou à aventura: «Por um lado, o terror do risco desconfortável ameaça a economia das nossas rotinas diárias; por outro, há um desejo louco de profanar um segredo, decifrar o mistério do futuro.» Esta ambivalência inebria. A liberdade vence a determinação, o novo vence o velho, a desconstrução vence a repetição. A conclusão a que podemos chegar é que devemos viver de forma a que haja sempre um pouco de vertigem, de aventura na nossa vida. E também aqui, em primeiro lugar, uma aventura do pensamento, mas um pensamento cheio de mundo. Cheio de caminhos sem Ítacas.
Tudo isto para chegarmos a Friedrich Nietzsche, que só pode ser considerado um ponto de partida. Chegarmos como se chega a um começo. Nietzsche não fechou nada, não fez mais do que distribuir verdades-relâmpago, por isso continua vivo, ao nosso lado, para nos ajudar a interpretar o humano, mas também a experimentar formas de sobre-humano.
Nietzsche viajou sempre pelo corredor central da Europa que liga o Norte (Alemanha) ao Sul (Itália). Naumburg, Bona, Leipzig, Bayreuth (circuito da sua proveniência cultural); Basileia, Lucerna (Tribschen) e a Alta Engadina alpina (sobretudo a adorada Sils‑Maria, no Cantão de Graubünden) na Suíça; Nápoles / Sorrento, Roma, Génova, Veneza, Turim, a Sicília (apenas uma vez), em Itália; Nice em França. No entanto, fez projetos bem mais aventureiros que nunca foram realizados: Paris, Córsega, México, Espanha, Polónia... Por curiosidade e necessidade, viveu uma parcela importante da sua existência imerso em paisagens naturais, percorreu-as e mergulhou o seu corpo, uma «grande razão», no seio desses corpos paisageiros. Caminhante compulsivo, deambulava várias horas por dia nas montanhas da Alta Engadina, ou nas cidades do sul da Europa. Essa disposição refletia também o desejo de romper com o velho estilo lógico-racional da filosofia, inventando uma nova escola peripatética, na qual o pensar seguisse ritmos e tópicos mais próximos de fluxos vitais originários. Durante as suas caminhadas, parava bruscamente, e com o joelho no chão grafitava um ou outro enunciado no caderno de notas.
Nietzsche contribuiu para a reabilitação filosófica do corpo, opondo-se ao «corpo-alienação» de Platão, «corpo-erro» de Descartes e Pascal ou ao «corpo-pecado» do Cristianismo. Com o auxílio de alguns lampejos de outros pensadores (Espinosa, com certeza, talvez um pouco de Rousseau), iniciou a aventura de abandonar o cogito, o solipsismo megalómano da razão, e regressar à Terra, pensando com ela, sobre ela e por ela. Um regresso que, verdade seja dita, ainda não foi totalmente consumado. Encontramos, criamos outras alienações, amamos outras intangibilidades. Vivemos agora mais para produzir e consumir, do que para pensar, sentir e passear. Contemplamos mais facilmente a nossa conta bancária do que uma paisagem. Frequentamos os gabinetes dos psicólogos como antes frequentávamos os confessionários. E quando viajamos vamos ver postais.
É por isso que o ouvimos dizer no «Prefácio» de Humano, Demasiado Humano I, § 4, enquanto discute a doutrina da grande saúde: «é precisamente o sinal de uma grande saúde [grossen Gesundheit], aquele excedente que dá ao espírito livre [freien Geist] o perigoso privilégio de poder viver por tentativas [Versuch] e de se entregar à aventura [Abenteuer]: a prerrogativa da mestria do espírito livre!» (a tradução é nossa, disponível nas Edições 70 no verão de 2025). Este «Prefácio» foi escrito em 1886 e integra a reedição do livro de 1878, início da sua segunda grande linha de aventura, depois dos anos d’O Nascimento da Tragédia (1872), da docência na Universidade de Basileia, da amizade com Richard Wagner e do patrocínio intelectual de Schopenhauer. Virão outras: as de Assim Falou Zaratustra, da Genealogia da Moral, de Ecce Homo. Mas não foi uma aventura de aperfeiçoamento (como queriam Kant ou Montaigne), antes uma traição. Trair-se para experimentar, tentar outra coisa, sem vislumbrar uma meta. Haverá maior princípio de aventura do que este? Uma traição que deve continuar, não faz sentido colocarmos Nietzsche no congelador académico. Cada leitor do filósofo errante deve traí-lo, experimentar plantá-lo, de estaca, noutros solos. A sua obra é um começo, ainda que não se descortinem os alicerces, um impulso, um trampolim, não um fecho ou um fim. Porque, como declara nesse mesmo «Prefácio»: «é o futuro que dá as regras ao nosso presente.» (§ 7)
E se a aventura se medir, como acreditamos, por essa abertura ao que está por vir, incógnita perfeita e poderosa, tomemos novamente as palavras do nosso autor e façamos delas, com o peso de um determinismo que, ainda assim, exige escolha, o nosso lema de vida: «Quem alcançou, mesmo que só num certo grau, a liberdade da razão não pode sentir-se senão um viajante na Terra — uma viagem, contudo, que não tende para uma meta: porque não as há.» (Humano, Demasiado Humano I, § 638).
Aconselhamos apenas, indo de Wilhelm von Humbolt a Robert Musil, passando, naturalmente, por Nietzsche, que assumam «a grande individualidade como força espiritual». Que saibam, assim, manter viva uma relação produtiva com o caos, conjurando-o e aproveitando-o. Vivendo, talvez, como sugerem bons leitores nietzschianos (Joyce, Deleuze e Guattari) num caosmos. Ou, para dar um toque contemporâneo à nossa análise, no work in progress de que fala James Joyce em Finnegans Wake.
Victor Gonçalves
19/10/2024