Os educadores que nos libertam

Nietzsche leu, em profunda admiração e embriaguez filosófica, O Mundo Como Vontade e Como Representação de Schopenhauer em 1864

Deus morreu, os monoteísmos, foram-no envenenando até o tornarem ou anódino ou fanático (o excesso revela o desespero perante o féretro). Libertos da figura tutelar (iconográfica, bibliográfica e ritualógica), parecia que finalmente corríamos o grande, heroico risco de sermos livres, tornando-nos aquilo que somos. Depois, sem nos apercebermos, surgiram os influenciadores globais, exímios gestores do senso comum. Iniciou-se uma nova era de alienação, aliviando o stress aos mais ansiosos.

Conhecemos o «Como nos tornarmos aquilo que somos» (Wie man wird, was man ist) do subtítulo de Ecce Homo de Friedrich Nietzsche (1888). Mas todas a sua obra é pontuada por uma tensão para se ser o que se é, impondo-nos a responsabilidade pela nossa vida (só tornando-nos aquilo que somos confirmamos o seu valor). A vocação de cada um é, antes de mais, tornar-se aquilo que é, única forma de nos diferenciarmos da massa humana dos iguais, humanos, demasiado humanos. Pelas ações, como queria Píndaro (e os Gregos, para os quais o «cogito ergo sum» de Descartes seria quase incompreensível, viviam num mundo agonístico, no qual cada indivíduo corria o constante o risco de cair na desmesura, dele ou de outrem, humano ou divino, cada grego era mais um elemento do grandioso pathos trágico, feito de uma poiética do sofrimento), mais do que pela reflexão, mesmo reconhecendo a qualidade e a força da autoanálise crítica nietzschiana.

Tornarmo-nos aquilo que somos (werde, der du bist) parece ser um paralogismo, dedicado a manipular uma racionalidade exaurida de dispositivos críticos. Como podemos tornar-nos aquilo que já somos? Talvez Nietzsche queira renovar, noutros termos e noutra trama vital e filosófica, o «Eu sou aquele que (quem) sou» do Antigo Testamento. Manter a potência, talvez trágica, da autonomia individual (sou eu que me torno aquele que sou), acrescentando-lhe (o que é uma revolução ontológica) o processo, dentro do tempo, e da temporalidade, do eterno retorno, de me tornar, de me ir transformando, autotransformando, modelando um qualquer barro original, feito de genética, de social e de vontade.

Na terceira Consideração Intempestiva, Schopenhauer Educador (1874), consagrada à figura solitária do mestre filósofo, o seu mestre, Nietzsche defende, a partir de uma conceção da genialidade romântica, evitando o pessimismo niilista schopenhaueriano, isto é, um pessimismo insolúvel, que se os jovens querem ser livres devem saber o seguinte: «Um homem nunca se eleva tão alto como quando não sabe aonde o levará o caminho que escolheu» (citação de Ralph Waldo Emerson, que foi emulando ao longo da sua vida). E não sabe porque os impulsos que o levam a escolher vão sendo definidos, não por uma qualquer essência, alojada no centro do seu eu, que seria ou não possível reconhecer, mas pelas influências, tantas vezes paradoxais, dos mestres, dos educadores, como Schopenhauer. Mestres que devemos seguir, com certeza, mas também trair, com o mesmo grau de necessidade.

Eis o que Nietzsche diz nessa Intempestiva, cap. 1, depois de perguntar sobre como nos encontramos a nós mesmos («Aber wie finden wir uns selbst wieder?»): «O que é que realmente amaste até agora, que coisas te atraíram, o que é que te dominou e, ao mesmo tempo, o que é que te preencheu? Observa a série completa desses objetos venerados e talvez eles te revelem, pela sua natureza e sucessão, uma lei, a lei fundamental do teu verdadeiro eu (eigentlichen Selbst). Compara estes objetos, vê como eles se completam, se ampliam, se ultrapassam, se transfiguram, como formam uma escada pela qual subiste até ao teu eu. Porque a verdadeira essência não está escondida no teu íntimo, mas incomensuravelmente acima de ti ou, pelo menos, daquilo que tu consideras habitualmente o teu eu. Os teus verdadeiros educadores e formadores (Erzieher und Bildner), aqueles que te formarão, revelarão aquilo que é verdadeiramente o sentido original e a substância fundamental da tua essência, em todo o caso aquilo que é de difícil acesso, como um feixe atado e rígido: os teus educadores não podem ser outra coisa que não os teus libertadores (deine Erzieher vermögen nichts zu sein als deine Befreier).»

Manhã e Noite, Jon Fosse, nota de leitura

Acabei de ler, chegando tarde, como quase sempre me acontece, sem nenhuma virtude especial, relativamente ao que entra em ebulição, Manhã e Noite, um romance do último prémio Nobel da Literatura, o norueguês Jon Fosse, editado pela Cavalo de Ferro, tradução de Manuel Alberto Vieira, com 111 páginas divididas em duas partes. Na primeira, curta, descreve, quase em direto, o nascimento de Johannes, filho do pescador Olaï e da sua mulher Marta, relato pontuado pelas observações, práticas e determinadas, da parteira, uma voz de quem sabe mais do que ajudar a dar à Luz. Johannes nasce no meio de uma frase, o pai ouve os sons do parto, pensa em Deus e no filho que se tornará pescador, como ele. Na segunda parte, o autor narra um dia no qual Johannes, já velho (um salto no tempo que vai sendo preenchido, mas não muito, ao longo do livro), reformado, depois de criar sete filhos e da mulher, Erna, haver morrido, encontra o seu amigo Peter (não se sabe imediatamente se está vivo ou morto), também pescador, na praia, embarcando com ele para pescar caranguejos. No regresso experimenta, entre outras coisas, um encontro espectral com a filha querida, Signe, que passa através dele sem o ver (é um livro sobre passagens). A história começa, pois, com um nascimento e termina com a morte, ou melhor, com o morrer.

Um livro com poucas, pouquíssimas peripécias, aposta antes num movimento fluido entre o mar e a terra, as recordações e a realidade tangível, o sonho e a vigília. O protagonista viaja entre a frugalidade do passado no limiar da pobreza mas com a casa cheia de vida e o conforto de reformado solitário, hoje. Todos os filhos foram bem-sucedidos, Signe mora perto e encontra-a muitas vezes. Johannes ainda pesca, por recriação, agora. Fuma e bebe café. Mas a casa não aquece, por mais lenha que queime. Através de uma escrita minimalista, quase um processo de criação automático, o narrador «descobre as coisas à medida que as escreve», compondo como fosse uma espécie de improvisação musical.

O estilo, marcado pela repetição, pela pontuação inesperada (aproximando-se, sem complexos, da oralidade, mas também de outra coisa que não isso, como se quisesse encontrar ritmos e significados mais arcaicos) e pela alternância de perspectivas (sem ser verdadeiramente polifónico), é perfeito para esta deambulação, lenta e resignada, entre a vida e a morte, com a qual ele diz aquilo que tem para dizer. A derradeira jornada de um impreparado ser para a morte, impressa numa prosa original e honesta. As paixões tristes dominam o romance, mas, contra Espinosa, elas trazem uma vitalidade tranquila (acrescentam ser), a que se pode chamar melancolia criadora, ou bela melancolia, fortalecendo os leitores. Este livro permite sentir as vibrações dos abismos da vida, essenciais para completar o ciclo, ou ciclos, da existência. Sem a intenção, todavia, de abalar, quando nos resgata da banalidade não o faz arrastando-nos para novos mundos, reorienta somente, de forma ligeiramente iconoclasta e através de uma arqueologia sobre o viver, a viagem interior que prosseguimos desde que nascemos. Não pegamos fogo ao lê-lo, é verdade. Mas é um bom mergulho, e podemos tomá-lo por si mesmo ou como um meio para pensarmos sobre o profundo sem a ditadura do fundamento.

Polarização

Quadrado branco sobre fundo branco, 1918, Museum of Modern Art

A crónica da Philosophie Magazine de 30 de abril de 2024, escrita, e pensada, por Martin Legros, foi sobre a «polarização». Parece-me excelente. Traduzo-a para trazer um pouco de sentido aos que lutam, sem saber muito bem como, contra as engrenagens do niilismo, agnóstico ou militante, do «I would prefer not to» bartlebyano ao fanatismo desbragado do «basta querer!». Ambos são niilistas porque se esgotam na forma, não conseguem produzir, ou reter, nenhum conteúdo. Um pouco como a arte contemporânea. Um niilismo que preside à polarização, como é entendida por Bart Brandsma, quando sai dos eixos.

 «“Não sou a favor nem contra a polarização. Sem ela, não haveria democracia nem civilização. Mas pode ficar fora de controlo...”, diz Bart Brandsma, que cunhou este conceito tão em voga. Nascido em 1967 nos Países Baixos, Brandsma tornou-se realizador de documentários depois de estudar filosofia na Universidade de Groningen (“o meu objetivo era usar o jornalismo para levar o poder e a beleza da filosofia à sociedade”). Começou a sua vida profissional na Dutch Muslim Broadcasting Corporation, onde era “o único não muçulmano” – um estatuto e uma experiência que o inspirariam a desenvolver o seu modelo teórico de “polarização” (Polarisation. Understanding the Dynamics of Us Versus Them, 2017). Em seguida, colocou-o à prova como “formador”, uma vez que era cada vez mais solicitado por pessoas envolvidas na vida pública – agentes da polícia encarregados de traçar “perfis étnicos”, professores sujeitos às dificuldades de integração [dos alunos], presidentes de câmara e até ministros confrontados com as divisões em relação ao terrorismo.

O que é a polarização? É uma divisão baseada na oposição entre “nós” e “eles”. Deve ser distinguida do conflito – e um dos erros fundamentais, de acordo com Brandsma, é acreditar que a polarização pode ser tratada com as velhas e conhecidas ferramentas de gestão de conflitos. Qual é a diferença? Um conflito envolve partes diretamente envolvidas e identificáveis do exterior – os “donos do problema”. “Quando uma briga começa a meio da noite num bar, há ‘donos do problema’ e, portanto, um conflito. Toda a gente com um olho negro ou um ferimento qualquer pode ser considerada envolvida”, escreve Brandsma. Enquanto na polarização os indivíduos têm a opção de se considerarem ou não envolvidos. “A escolha de participar é mesmo um momento crucial para os ‘atores’.” No rescaldo de um atentado do Daesh, por exemplo, os muçulmanos europeus são chamados a condenar esses atos, mesmo que não se considerem co-autores nem adversários. Ao mesmo tempo, outros posicionam-se como porta-vozes da civilização ou da liberdade.

Para caraterizar a polarização, Brandsma não hesita em formular três “leis fundamentais”. Primeira lei: a polarização é uma “construção mental”; a oposição entre “nós” e “eles” não é observável na realidade, é uma abstração, baseada essencialmente em identidades. Mesmo que se baseie em grupos reais (homens e mulheres, europeus e migrantes, defensores e opositores do laicismo, etc.), “o ponto de viragem para a polarização ocorre quando estas diferenças são acompanhadas por significados que são apresentados como típicos das identidades em questão”. Segunda lei: a polarização precisa constantemente de “combustível”. “Se deixarmos de a alimentar, ela definha. Diminui de intensidade e acaba por se extinguir”. Terceira lei: finalmente, a polarização é regida por uma “dinâmica emocional”. Isto explica por que razão a argumentação, factual ou racional, tem pouco efeito sobre ela. Quando os factos põem em causa a crença dos apoiantes de Trump na sua vitória, “continua a ser possível recorrer a teorias da conspiração”.

Mais interessante ainda é o facto de, ao formalizar o seu modelo, Brandsma desenvolver personagens conceptuais reais que não podem deixar de aparecer no cenário da polarização. Distingue cinco. Em primeiro lugar, o instigador [the puscher]: movido pela convicção moral de que tem razão e de que o outro está errado, resistente à moderação ou às nuances, fornece incansavelmente o combustível para cada nova polémica que surge. Depois, há o aderente [the joiner], que toma partido sem concordar com tudo o que o instigador diz: “Nem sempre concordo com ele, mas tem o mérito de pôr os pontos nos is”, diz para justificar a sua posição. Depois vem o grupo dos silenciosos, a maioria silenciosa que não toma partido, por vezes por razões profissionais (polícias, professores, juízes, presidentes de câmara, etc.), mas mais frequentemente por prudência, e que, para Brandsma, é o alvo principal do instigador – este último não procura convencer o seu adversário, ao contrário do que parece, mas influenciar a maioria e trazê-la para o seu lado. A lógica continua com o construtor de pontes, que tenta manter o diálogo entre os dois campos, salientando pontos de convergência ou propondo contra-narrativas. Por fim, o bode expiatório: quando as tensões aumentam e o risco de guerra civil se aproxima, qualquer pessoa que não pertença a um dos dois campos pode ser acusada e tornar-se alvo de ataques (polícias, professores, etc.).

Como desativar esta dinâmica infernal, perguntamo-nos, num universo mediático – o das redes sociais – expressamente concebido pelos seus operadores para fornecer o máximo de “combustível” de que a polarização necessita para se inflamar? A resposta de Brandsma não é moral ou mesmo política, mas intelectual, poder-se-ia dizer. “Para despolarizar”, defende, “é preciso compreender que não é preciso lutar contra os polos, mas sim reforçar o grupo silencioso do meio”. Dito de uma forma um pouco mais ofensiva, não será o mesmo que dizer ao partido das nuances e da moderação que deve encontrar uma saída para o silêncio no qual está confinado?»

25 de Abril Sempre! 1ª parte

Estivemos na Avenida da Liberdade, ritual de atualização da nossa Revolução. Havia mais gente, ou melhor, mais cidadãos, do que em anos anteriores. Mais em número e em convicção. Caramba, o 25 de Abril foi maior do que alguma vez imaginamos. Maior porque atualizou, sem grandes níveis de violência e de revanchismo, uma mudança de regime político-social, maior porque nunca confundiu a revolução com os revolucionários. Foi, à falta de melhor termo, uma revolução civilizada (continua a sê-lo, bastou ver todas as lojas de luxo abertas ao longo da Avenida, como se nada fosse). Se os seus ideais são a priori, se existem de forma autotranscendente, tiveram, contudo, de ser materializados. É aqui que muitas vezes, por exemplo na Revolução Francesa, tudo se precipita para o abismo do terror, porque se liberta a vingança acumulada numa enorme economia do ressentimento. No nosso caso, a Revolução foi conduzida por ser humanos calmos, com sentido do relativo e do finito, não impuseram uma redenção, antes projetaram um futuro radioso e bondoso, longe, bem longe, do passado e do presente. É por isto que devia ser, simultaneamente, um ritual de atualização (continuação) e de iniciação. Vincando que ninguém é dono do 25 de Abril, somos nós que lhe pertencemos. Pertencemos-lhe, mas sem nós não se cumpre. Portanto, quando se afirma que «falta cumprir Abril», queremos dizer que nós, cada um de nós, ainda não o cumpriu, nos gestos e ações de cada dia.

Faltará, então, o povo (como gostava de repetir Gilles Deleuze)? Um povo que mereça esta Revolução? Sim e não. Sim porque se nota cada vez mais que uma franja significativa da população portuguesa não vai, ou já não vai, ao 25 de Abril. Eu e Tatiana Faia comentávamos que a manifestação era da burguesia, média burguesia (desculpem-me a categorização apressada), a que mais facilmente se revê nos ideais da liberdade e da igualdade, a que reconhece as vantagens de uma sociedade cosmopolita, a que lê e reflete, sabendo, por isso, que a omnipotência messiânica só quer dizer brutalidade e miséria, a que não se deixa facilmente embriagar com promessas de ordem e progresso guinando em direção ao passado. Sim porque, em concreto, não esteve nem a alta burguesia (sem surpresas), nem o proletariado (continuo a simplificar as categorizações sociais). Este último deixou-se alienar pelo canto das sereias desafinadas da direita populista, que lhe prometem, literalmente, este e o outro mundo, uma união mística. Quanto à alta burguesia, ela vive no céu, quer lá saber dos problemas humanos. Por outro lado, não falta o povo. Esteve na manifestação quem devia estar, um povo que representa o que de melhor foi possível fazer com a massa humana, com um aglomerado de forças tanto inventivas, cooperativas e construtivas, quanto destrutivas. Um povo a que tenho a sorte (e trata-se mesmo disto) de pertencer.

Mas esses que faltam são um sintoma do enfraquecimento do sopro democrático, desta vez faltaram não por indiferença, mas por repulsa. Não será tanto porque querem substituí-la pelo 25 de Novembro, as duas datas são compatíveis, devem, aliás, ser tomadas como irmãs que se complementaram para construírem a nossa democracia parlamentar. Os que agora combatem o 25 de Abril são, antes, os verdadeiros reacionários, nacionalistas primários que apostam tudo numa velhíssima luta de raças, produto da dialética sem saída do «nós» contra «eles», «puros» contra «impuros». Mas esses que se julgam únicos nada mais fazem do que cavalgar a onda antidemocrática que agora percorre o mundo, sobretudo a Europa, Continente onde a democracia estava, está, mais consolidada. Se tomarmos O Choque das Civilizações de Samuel Huntington como referência, revemos aqui o princípio da ação-reação: uma onda democrática tardia que começou, justamente, no 25 de Abril, seguindo-se a Grécia e a Espanha, passando depois para a América Latina e a Europa de Leste, substituindo regimes autoritários por democracias representativas; uma onda reacionária, antidemocrática, com claras tendências autoritárias, iniciada em França há cerca de vinte anos, depois Itália, Áustria, alguns ex-países de Leste, Países Baixos, Suécia, Alemanha, Espanha e, entre outros, Portugal (com uma aceleração incrível).

Não pretendo ver nisto uma qualquer variação do materialismo histórico, sou muito pouco historicista. Parece tudo simultaneamente mais simples e mais complexo. Por um lado, como aconteceu nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, um cansaço relativamente ao statu quo político, do regime e dos políticos que o incarnam, dispostos a quase tudo para manterem os privilégios, fazendo da política um emprego sem termo fixo. Por outro, uma má gestão de expetativas, exigindo demasiado à democracia, querendo que ela roce a perfeição, no sentido de dissolver todas as disfunções e antagonismos. Oscila-se, pois, entre «antes a barbárie do que o tédio do mesmo» e o «estamos muito longe de o melhor dos mundos possíveis». Lassidão (o cansaço pessoano) e euforia reivindicativa. Quase ao mesmo tempo, na brecha que se abriu, a esquerda abandonou a questão da identidade à direita, deu-lhe de mão beijada os campos nos quais se prolongam as narrações sociopolíticas e míticas do Estado-Nação, mas também a simbologia, principalmente iconográfica. Bastante do que define horizontes de sentido, emoldurando-os com uma esperança incondicional (modus operandi do populismo).

Afastemos, porém, o fatalismo. Podemos mitigar a embriaguez de fantasias oferecidas, sem esforço, pelos antidemocráticos. Mostrando, demonstrando que a omnipotência, a pureza étnica e a riqueza abundante não passam de slogans retirados de uma cartilha que tem tanto de velha quanto de funesta, uma distopia revisitada. Regressando, também, ao espírito conciliador e utópico dos pais revolucionários, em vez de cair na tentação de exacerbar antagonismos, os sectarismos estão mais do que testados, nada de bom proveio deles. Lançar uma onda de veracidade, honestidade, respeito e solidariedade. Um antídoto contra a vociferação dos pequenos esbirros ungidos pela miséria moral. Devemos projetar um futuro mais do que mitificar o passado. Mesmo que o mundo pareça dobrar-se sobre si e não arrastar-se obstinadamente para a frente. Mas são dobras em espiral, um eterno retorno que seleciona, capaz de edificar uma ética, um ethos no qual cada vida só valha tanto quanto outra vida, nunca mais, nunca mais.

25 de Abril sempre!

Ripley

Ripley, de Steven Zaillian, é uma série americana de thriller psicológico em oito episódios de 55 minutos, criada por Steven Zaillian e transmitida desde 4 de abril de 2024 na plataforma Netflix. É uma adaptação do romance policial Mr Ripley, de Patricia Highsmith (1955), e prolonga as versões cinematográficas Plein Soleil (1960) e The Talented Mr Ripley (1999).

Sinopse (com spoilers)

Em Nova Iorque, no início dos anos 1960, Tom Ripley (magnífico Andrew Scott), um trafulha solitário, abandonado, com pouca sorte (um looser), é abordado por um detetive privado que lhe transmite o desejo de um rico armador, Herbert Greenleaf, de se encontrar com ele. Este último foi informado, equivocadamente, de que Ripley era um velho amigo do seu filho, Richard Greenleaf (Johnny Flynn), apelidado Dickie, que vive, há vários anos, a dolce vita em Atrani, Itália, com a sua namorada, escritora de viagens, Marge Sherwood (Dakota Fanning), sonhando em ser pintor. Quer contratá-lo para convencer Dickie a regressar aos Estados Unidos. Apesar de Tom não conhecer Dickie, aceita, pela aventura e pela recompensa financeira.

A descoberta que Tom faz do estilo de vida confortável, hedonista e elegante de Dickie inicia uma trama complexa de mentiras, manipulação e morte. Mas parte de uma admiração verdadeira por Dickie. Tom insinua-se na relação entre Dickie e Marge, o jovem casal, e semeia alguma discórdia. Numa viagem a San Remo, enquanto Richard tenta afastá-lo da sua vida, Tom assassina-o em alto mar num bote alugado, afundando depois o seu corpo amarrado à âncora. Esconde o bote e apanha o comboio de volta a Atrani e começa a fazer-se passar por ele, substituindo-o na dolce vita (sem Marge), que ele acredita merecer.

Marge, Dickie e Tom Ripley em Atrani

Ripley é uma personagem que percorre vários livros de Highsmith, e se este diz respeito ao livro de 1955 citado acima, tem contudo a espessura de várias camadas que ultrapassam o Mr Ripley. Por isto e porque os filmes anteriores — Plein Soleil (um Alain Delon vingativo e sedutor) e The Talented Mr Ripley (um Matt Damon que se vê ultrapassado pelas circunstâncias e muito mais dependente do talento e ousadia, também performativas, de Jude Law) — lhe abrem oportunidades estéticas (narrativas, iconográficas e cinematográficas) que talvez não tivesse se fosse originário (a primeira obra deve ser mais escorada no verosímil do que as versões que lhe possam seguir). Nesta série, a opção pelo preto e branco, um claro-escuro com inúmeras gradações, recusa a ideia de uma Itália de sol e praia (central nas duas versões anteriores) sem parecer arbitrário, como se fosse um lance de dados estético inoportuno. A fotografia, Robert Elswit, pôde, assim, ser composta a partir dos princípios das pinturas de Caravaggio: um fundo escuro com iluminações intensas de partes dos elementos que as compõem, incandescências. Um Caravaggio omnipresente, pelo que acabei de dizer, mas também pelas citações diretas, história dentro da história e a circunstância de ter sido um assassino perseguido (matar eleva tanto quanto rebaixa). Ripley é, pois, sombrio e luminoso. Mas como o fio narrativo se desenrola a partir do ressentimento (em Plein Soleil talvez seja a vingança), um Ripley desconsiderado que tem mais talento do que os senhores (Dickie, Marge, o inspetor). Um Ripley que não é reconhecido, mesmo quando só pretende ser o melhor amigo de Dickie. Ser reconhecido como o cão de Dickie. É a escolha desta variação, que com certeza muito deve à Andrew Scott (que conhece Hamlet de trás para a frente), que justifica tudo o resto.

Tom Ripley em Roma

Em primeiro lugar, a demora. Diálogos, com o dito e o não dito, prolongados (de uma precisão semântica e performativa incrível, só assim o inspetor parece estar próximo de descobrir o que acaba por ficar encoberto). A câmara que espera pelas personagens, ou fixa longos planos (contra o frenesim atual dos planos curtos, multiperspetívicos, em movimento), planos fotográficos mais do que cinematográficos. Cenas em que sentimos o tempo longo, quase angustiante, de uma subida dificílima para dentro de um bote, ou as várias escadas que se sobem e descem, marcando um cansaço (e simbolicamente uma moral icariana) que só pode ser sentido se a câmara e a montagem aceitarem mostrar quase todos os degraus. O tempo que é necessário para os micromovimentos do rosto serem reveladores. O tempo que domina e é dominado, domesticado pelo olhar de Ripley, quando passa da afeição e observação para a geometria da manipulação, da omissão e da previsão (neste caso parece um olhar vazio, mas é apenas um olhar que se desvia da culpa e da descoberta que outrem pode fazer, é o olhar de um assassino que se quer safar e, por isso, não tem tempo a perder com a vidinha). Para este tempo da demora também contribui uma banda sonora frugal, com alguma música ligeira italiana da época (1960). Em contraste absoluto com o histrionismo do jazz (Miles Davis e Charlie Parker) de The Talented Mr Ripley. O ritmo lento contribui para uma hipnose que o espetador aceita como forma de aceder, talvez sem sucesso, ao mistério de Ripley. Não ao de um assassino que quer escapar, mas ao seu para lá bem e mal, de uma contenção emocional que fere as leis da humanidade.

Ripley no barco para palermo

Patricia Highsmith escreveu livros policiais, mas escreveu mais do que isso. Escreveu sobre direitos e deveres humanos, sobre a forma de subvertermos o que somos e o que devemos ser. Sobre uma maldade banal que só desordena, sem força para converter, para originar novos mundos. Tom Ripley só pretende que o reconheçam e deixem viver não outra vida realmente única, mas repetir e prolongar a vida de Dickie (arruinar a ordem da identidade). No limite, será uma vida falsa, um falso Dickie (de quem se liberta no final). E como em tudo o que é falso, reduz-se a intensidade vital, até na composição dos exteriores feitos numa Itália sem enxames de vespas e magotes de crianças e adolescentes capazes de enganar, sem remorsos, os mais incautos. O ruido italiano é abafado pelas sombras do mal e pelo desvanecimento do autêntico. Dickie é, aliás, um pintor medíocre que tem um Picasso em casa mas que quase o omite para destacar, sem convicção, as imitações grotescas que realiza. O cunho da verdade está em Marge (diferente no último episódio), mas falta-lhe a força e o talento para a impor, e em Caravaggio. Só este último nos mostra, sem rodeios, como as lâminas são cortantes e a vida se faz com reais golfadas de sangue. Nos mostra como a arte (engano) é mais viva do que a vida.