Risco de Falência

Sonja Valentina

Sonja Valentina

 

Já tinham terminado a refeição há algum tempo mas permanecem sentados à mesa, olhando silenciosamente para a televisão. O noticiário abrira com pormenores sobre um novo caso de corrupção envolvendo políticos e, logo de seguida, passara a antecipar e detalhar a forte possibilidade de duas ou três agências de rating descerem a notação de alguns bancos. Ouvem, indiferentes e apáticos, como se o que escutam nada tenha a ver com as suas vidas e apenas se mantenham aparentemente atentos porque não se lembram de nenhuma alternativa.

Então, por fim, ela levanta-se da mesa e leva os pratos cobertos de restos de salmão para a cozinha, cambaleando ligeiramente; ele deixa-se estar sentado durante uns segundos mas, de repente, acaba por se decidir a ir à casa de banho, onde lava as mãos cuidadosamente, até sentir que extinguiu o odor a casca de laranja. Quando ambos regressam à sala (quase em simultâneo, o que não deixa de ser peculiar: se a companhia do outro não é desejada, por que não aproveitaram a oportunidade para se refugiarem num qualquer recanto seguro da casa?), a televisão ainda fala de agências de rating e aumentos de juros e possibilidades de falências. Ele desliza para o sofá e deixa-se estar, imóvel e inerte, talvez pretendendo desligar-se do mundo (ou apenas da vida familiar), entrando numa espécie de hibernação protectora; ela, por seu lado, recolhe algumas migalhas acumuladas na mesa (migalhas dele, que ela nunca toca em pão), uma a uma, com excessiva e desnecessária concentração; e apanha, também, uma microscópica fibra de casca de laranja (dele), que caíra ao chão e fora inadvertidamente esmagada.

Quando passa junto da televisão (migalhas e casca de laranja bem presas na mão), diz sem o olhar:

– Espanta-me que nunca ninguém se tenha lembrado de criar uma agência de rating que se dedique a prever os riscos de falência dos casamentos. Que analise uma relação e diga: prevejo consideráveis riscos de incumprimento a curto prazo. Ou: na actual conjuntura, é altamente previsível que as expectativas se deteriorem.

Ele continua prostrado no sofá, estático e silencioso, respirando devagarinho, com os olhos fechados; mas acaba por sorrir timidamente, quase com gosto. E responde:

– Uma escala que meça o risco de falência dos casamentos? E o faça antes das pessoas casarem? Realmente, parece boa ideia. Na verdade, ter-nos-ia dado muito jeito, não achas?

Ela aproxima-se dele e estende a mão na direcção do seu rosto, como se o fosse acariciar; mas não lhe toca: limita-se a abrir a mão e deixar cair sobre o seu cabelo desgrenhado as migalhas e a casquinha de laranja que tinha recolhido. Ele abre os olhos mas não se mexe, olhando-a com alguma curiosidade, com alguma surpresa, com (alguma?) vontade de se indignar; e ela, quando percebe que ele nem se irá dar ao trabalho de sacudir as migalhas do cabelo, suspira em silêncio (um suspiro interior, simultaneamente secreto e ostensivo) e marcha para a cozinha, onde liga a máquina de lavar louça e fica à espera durante cinquenta minutos para de lá retirar dois pratos, quatro talheres e um copo; os mesmos que servirão para o jantar do dia seguinte, de todos os dias seguintes. E enquanto espera, lembra-se mais uma vez do lamento que a mãe repetia com frequência: o casamento é uma fábula.

 

Arquivo

sonja valentina

sonja valentina

- Se alguma vez escrevesse um livro, chamava-lhe “Arquivo”.
- Porquê?
- Porque um livro é precisamente isso, um arquivo. Um arquivo de ideias e pensamentos, de ilusões, de fantasias, de segredos, de disfarces, de medos e esperanças. Percebes? Como se fosse um legado, uma herança; como se fosse um testamento de sentimentos e emoções. Algo concreto que se deixa ao outro, para que ele use ou não. Uma dádiva. 
- Por acaso, não concordo com essa perspectiva.
- Não?
- Nem por isso. Penso que não gostaria que a minha herança para os outros fosse um arquivo. Um arquivo é sempre algo extático e definitivo, não achas? E um livro também, por acaso. Sabes que preferia deixar como legado? Um caderno em branco, um caderno vazio, um caderno novinho; um caderno, para que o outro o pudesse preencher como desejasse, construindo o seu próprio arquivo. Preferia deixar possibilidades e não arquivos. 

O corpo diz o que as palavras não conseguem (ou não querem ou não podem)

© sonja valentina

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Finalmente, beijámo-nos. 

Há muito que havia trocas de olhares e de sorrisos, toques cúmplices e abraços demorados, conversas que apenas não duravam indefinidamente porque eram sempre interrompidas por alguém. Há muito que havia vontade. Há muito que o primeiro beijo era imaginado e antecipado, desejado, fantasiado. Mas apenas hoje aconteceu. 

E foi uma decepção. Quando nos separávamos, ainda sentia o sabor da sua saliva na minha boca; mas o que pensava era isto: será possível anular um beijo? Como voltar atrás, como retirar um beijo que demos a alguém?

Não sei o que esperava; mas julgo que sempre acreditei que o primeiro beijo que dou a alguém deverá ser mágico, deverá ser insuportavelmente intenso e transcendental; deverá fazer-me tremer, fazer-me voar, deverá fazer-me morrer e ressuscitar em simultâneo. Talvez seja excessivamente romântica, talvez seja excessivamente idiota; mas acredito que um primeiro beijo deverá ser tão forte que me faça sentir que, após esse beijo, nada mais será igual, algo mudará de forma subliminar mas inquestionável e irreversível. Contudo, nada disso aconteceu; o nosso primeiro beijo foi, simplesmente, murcho. Tão murcho que desejei apagá-lo, eliminá-lo; para que depois pudesse haver uma segunda tentativa de primeiro beijo? Ou para que o pudesse esquecer para sempre? Não importava, queria apenas retirar algo que dera.

O que me decepcionou mais foi a sua apatia; um beijo sem paixão, sem amor, sem desejo, sem voracidade, sem desespero, sem fome; apenas algo rotineiro e eficiente, algo necessário, algo agradável; na verdade, apenas mais um beijo (pior: apenas mais um toque). Foi isso que me decepcionou: perceber que, para ele, um beijo, cada beijo, não é algo único e irrepetível, mágico, sagrado. Perceber que, para ele, um beijo pode ser apenas uma rotina. Perceber que, para ele, o primeiro beijo pode ser tão indiferente e banal, tão mecanizado, como os beijos de um casal que vive junto há cinquenta anos e não se ama há quarenta. Porque foi algo semelhante a isso que senti: o seu beijo pareceu-me o de um velho que já deixara de acreditar, desejar, sentir.

E o que fazer depois de um beijo assim? O passado não se apaga, é impossível anulá-lo ou cancelá-lo. Contudo, o pior é a incapacidade de apagar a memória; afinal, o passado talvez seja inofensivo e inócuo, o que nos perturba e destabiliza é a memória. Mas como impedir que o passado, ou a memória desse passado, nos condicione o presente, nos faça infelizes agora? 

Recordava a forma mole como a sua língua acariciara a minha e perguntava-me se, apesar da completa inaptidão do seu beijo, aquele poderia ser o homem da minha vida. E se estivesse a permitir que um mau beijo condicionasse todo o meu futuro? Afinal, até ao momento em que os nossos lábios se tocaram acreditara (ou melhor, fantasiara) que aquele homem poderia ser o meu futuro. E se o beijo tivesse sido apenas um erro momentâneo, um equívoco passageiro? Já se sabe que, por vezes (muitas vezes), o corpo diz aquilo que as palavras são incapazes de transmitir; deveria, por isso, escutar o que o seu corpo me dissera. As suas palavras tinham-me comunicado desejo e amor (sim, amor), enquanto o seu corpo transmitira-me rotina e apatia (na verdade, o seu corpo gritara-me: “foge”). Mas será que os corpos não se enganam, por vezes? Será que apenas as palavras são ilusórias e ardilosas? E os corpos, não?

Porque deveremos sempre acreditar nos corpos? Será que eles nunca mentem?

O beijo aconteceu ontem ao fim do dia, no escritório. Separámo-nos e durante a noite, pela primeira vez em muito tempo, não trocámos mensagens. Dormi mal, acordei mal. Apeteceu-me fugir (o que é um desejo estúpido, já que a decepção e a dúvida me perseguiriam, pois estão dentro de mim, são parte de mim); mas, neste momento, aguardo que a porta do elevador abra; entrarei no escritório e ele estará lá, à minha espera. Não sei o que acontecerá; o que dirão os corpos? E as palavras que acabarão por ser ditas que significado verdadeiro terão? Não sei mesmo o que acontecerá, apenas que no princípio haverá um olhar.

E tenho medo.

Alienação

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                                                                   © sonja valentina

- Para que serve a caixa de fósforos?

Era a quarta vez que ele dormia lá em casa. E como em todas as outras ocasiões, tivera um pequeno gesto que a intrigara: colocava na mesinha de cabeceira, à distância da mão, o telemóvel e uma pequena caixa de fósforos. Desde o primeiro momento que sentira uma enorme empatia e cumplicidade com ele; mas a cada dia que passava, a cada conversa, a cada abraço, a cada sorriso, sentia que estava mais próxima de se apaixonar irremediavelmente; com ele, sentia-se acompanhada e compreendida, apoiada, mimada. Sempre receara a palavra mas, por vezes, dizia-a a si própria, baixinho, embrulhada num sorriso: sentia-se um pouco amada. Quando passavam a noite juntos, tudo corria com uma naturalidade que a inebriava; não acontecia nada de extraordinário mas sabia que a verdadeira felicidade era composta por banalidades; o que importava era que cada uma dessas banalidades fosse partilhada com a pessoa adequada; não interessava tanto o acontecimento mas a companhia. Tudo corria bem, portanto; e apenas aquela insignificante mas enigmática questão da caixa de fósforos na mesa-de-cabeceira a impedia de se apaixonar definitivamente; era um foco de incerteza mínimo e inexplicável, quase disparatado; mas que existia.

E por isso, perguntou. Tinham jantado, tinham visto um filme, tinham rido, tinham conversado, tinham feito amor. Depois, ficaram enroscados, partilhando o calor e a penumbra do quarto; tão próximos quanto possível, os corpos aconchegados e entrelaçados, escutando e cheirando a presença do outro; lá fora, chovia com intensidade, talvez se aproximasse uma tempestade. E ela perguntava-se: será demasiado cedo para lhe pedir que venha viver comigo? Perguntava-se e queria perguntar-lhe. Mas havia a presença da caixa de fósforos a perturbá-la, ali mesmo ao lado; um foco de apreensão que poderia contaminar a sua felicidade. Não resistiu a perguntar, portanto: para que serve a caixa de fósforos?

Quando ouviu a pergunta, o corpo dele não se manifestou, não denunciou contrariedade ou receio. Não viu o seu rosto mas suspeitou que talvez tivesse sorrido; e isso serenou-a.

- Não receias a escuridão? -, perguntou ele.

- A escuridão? Claro que sim.

- Eu também.

E depois explicou.

- Penso nisso muitas vezes, há muitas perguntas que me bailam no espírito. Por exemplo. Como conviver com a escuridão? Não tanto com a escuridão que nos envolve, a escuridão do mundo, mas principalmente com aquela que existe dentro de nós, que trazemos connosco, que alimentamos e perpetuamos pelo simples facto de estarmos vivos; como aprender a conviver com ela e torná-la uma presença positiva e construtiva? Penso nisso, por vezes. E preocupo-me um pouco com esse eterno duelo entre luz e escuridão, que é travado no interior de cada pessoa. Afinal, de que é feita a luz? Como se forma, como se multiplica e reproduz? De que se alimenta, como se alimenta? E, no fundo, como a reconhecemos? Nunca te interrogaste sobre isto? Nunca te perguntaste: que parte de mim é feita de luz? Nunca te perguntaste: e se um dia, sem querer, permitir que esta luz que existe em mim se extinga e desapareça? Como seria viver na escuridão? Para onde nos empurraria, de que forma nos condicionaria? Afinal, porque vivemos tão obcecados pela busca da luz?

Começou a sentir-se desconfortável com aquele inesperado discurso, quando na verdade esperara uma explicação disparatada, que a fizesse rir; escutava-o e sentia que, de repente, ele se transformara em algo diferente (no seu verdadeiro eu?), como se se esquecesse dela e falasse consigo próprio. E era desconfortável porque sentia como se estivesse a surpreender alguém que se imaginava sozinho, que fazia algo que nunca faria se se soubesse acompanhado, observado, avaliado, julgado. E escutava a sua dissertação sobre luz, sério e pomposo, quando, subitamente, se fez sentir o primeiro relâmpago da anunciada tempestade, invadindo inesperadamente o quarto com uma luz fantasmagórica durante um fragmento de segundo; e apeteceu-lhe rir, na verdade custou-lhe um pouco engolir o riso. Mas ele nem reparou na sua ameaça de riso ou no relâmpago, de tão embrenhado que estava na sua seriedade.

- Preocupo-me com a ténue fronteira que existe entre luz e escuridão; em tentar perceber onde começa uma e termina a outra. E a verdade é que não podemos fugir à escuridão, não podemos fugir àquilo que somos; e, do mesmo modo, não devemos procurar a luz no exterior mas dentro de nós próprios. Por isso, é importante conseguirmos ver para além de nós, afastarmo-nos, para nos vermos melhor, para nos conhecermos verdadeiramente. Já tentaste fazer isso? Ser espectadora de ti? É preciso perceber que a verdadeira luz reside em nós, é em nós que temos que a encontrar e, depois, protegê-la, alimentá-la, perpetuá-la. E é aqui que entra a simbologia da vela. Nunca te falei disto, pois não?

Vela? Devagarinho, o desconforto transformou-se em incómodo. Sentia-se distante e sentia-o distante, como se lhe fugisse; como se estivesse a assistir a uma espécie de alienação, a uma entrada noutro mundo. Um mundo – o seu verdadeiro mundo? – que a excluía, de que na verdade não queria fazer parte.

- É como se trouxéssemos uma vela acesa dentro de nós, que devemos cuidar como algo precioso e vulnerável; uma vela encaixada entre o fígado e o estômago e as costelas, frágil e periclitante como apenas uma vela pode ser. Consegues imaginar isto? Uma vela que nos ilumina interiormente; e se alguma vez permitirmos que se apague, extingue-se a nossa luz e seremos apenas escuridão interior. Esta vela ilumina-nos e guia-nos, se desaparecer é como se ficássemos cegos; apagamo-nos por dentro e deixamos de ver, sentir, ser. Percebes? É uma pequena luz mas, por mais minúscula que seja, faz toda a diferença na imensidão da escuridão. Basta um pequeno foco, que depois poderá sempre crescer, para aniquilar o poder da escuridão; um foco que é um início, um ponto de partida; e uma forma de resistência, também. Nunca poderemos, portanto, permitir que este foco se extinga. Este foco, esta luz, esta vela metafórica, é, no fundo, a nossa alma. Aquilo a que chamamos alma.

- E a caixa de fósforos?

- Um outro símbolo, claro. Andar sempre acompanhado por uma caixa de fósforos é um forma de nunca esquecer que a minha vela interior é frágil, exige o meu esforço e empenho permanente para se manter acesa. É uma segurança, também; lembra-me que detenho as ferramentas para me manter sempre iluminado. Enfim, tenho consciência de que tudo isto é uma coisa um bocado esotérica, um bocado simbólica. Aceito isso. Mas todos temos os nossos pequenos e inofensivos estratagemas para manter um certo equilíbrio, não é?

Ela ficou calada, sem saber o que responder. Sentia o corpo dele (o corpo iluminado dele) envolvendo o seu e pensava: isso não é uma coisa um bocado esotérica, é uma coisa profundamente estúpida; não é uma forma de manter um certo equilíbrio mas a manifestação de um enorme desequilíbrio. Pensava: é muito simbolista, este homem; ou será simplesmente doido? E de repente (é impressionante como estas coisas acontecem sempre de repente), percebeu que se tinha enganado totalmente, que se tinha iludido infantilmente; percebeu que tudo aquilo fora uma forma de fuga à realidade, uma alienação. (Afinal, a alienação é uma fuga ou uma procura?) Claro que não estava apaixonada. Como seria possível estar apaixonada por um homem que, depois de fazer amor, fala de velas interiores e caixas de fósforos metafóricas? Como fora possível percebê-lo tão mal? Na verdade – uma verdade que compreendia enquanto ele ainda a abraçava –, não houvera empatia e cumplicidade nenhuma, apenas ilusão e equívoco, fantasia; carência. E um pouco assustada, questionou-se sobre o que teria acontecido se não tivesse perguntado pela caixa de fósforos; ficariam abraçados, foderiam ao som da chuva e acabaria por lhe pedir para se mudar para sua casa. Passaria, então, a viver com um homem que oculta uma vela perto do fígado. E ao pensar isto, não quis conter o riso. Pensou: afinal, a caixa de fósforos, que para ele representa luz, fora o único ponto de dúvida, o foco de escuridão, que corroera a claridade ilusória em que me deixei envolver. E riu, riu tanto que teve um ataque de tosse; e depois da tosse passar, continuou a rir, enquanto a tempestade se aproximava. 

 

 

Olhar sem ver

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                                                                                 © sonja valentina

Aguardo junto da janela, à espera que chegues; estás atrasado, para não variar. Como sempre, olho lá para fora, para a rua e para o céu, para o vazio, para nada em concreto, apenas porque olhar para algures (olhar sem ver) é uma forma eficaz de distrair o pensamento, de ocupar a passagem do tempo. Por vezes, a cortina acaricia-me o rosto, movendo-se quase imperceptivalmente ao ritmo da minha respiração (como se houvesse uma tempestade dentro de mim, a querer sair; como se a minha expiração fosse um vento incontrolável); e nada mais acontece: pensamentos e expirações em turbulência, ténues movimentos, suspensão da vida.

Mas de repente, ao sentir a ocasional carícia da cortina na minha face, surge-me no espírito uma questão súbita e inesperada (como se alguém invisível a gritasse com tal veemência que fosse impossível fugir-lhe): porque haveremos de usar cortinas, porque nos protegemos da luz? Porque não procuramos a luz? Não seria esse um desejo mais natural, uma necessidade mais natural? Afinal, a luz nunca deveria ser demasiada, deveríamos viver sôfregos por ela. Mas não: usamos cortinas. Porquê?

Paro um momento para pensar (ou seja: excluo todos os outros pensamentos da minha mente), percebendo que não estou a ser ensombrada por uma fútil e passageira questão mas por várias e múltiplas perplexidades, que se vão desdobrando, enredando-me em dúvidas. Na verdade, gostaria de estar a conversar estes assuntos contigo. (Lembras-te quando passávamos noites a discutir aquelas irrelevâncias que tanto nos entusiasmavam e comoviam? Teremos alguma vez falado de cortinas? Certamente que sim, porque na nossa primeira casa optámos por não usar cortinados; lembras-te?) Mas estás atrasado, como sempre; e, por isso, terei que conversar sozinha; comigo própria.

Que absurdo é pensar em cortinas; ou talvez não. Na realidade, um pensamento é uma parte de nós, nasce de nós e apenas existe porque nós existimos; deveremos, por isso, assumi-lo como nosso, pois afinal é uma mera exteriorização do que somos; cada pensamento é um pedaço de nós, tal como as mãos, o cabelo, as unhas; ou, noutra dimensão, como cada palavra que dizemos, como o cheiro que emanamos, como cada acção que executamos. Nós somos tudo isso; não apenas corpo e espírito mas também som e cheiro, tudo o que fazemos e sentimos e pensamos.

Pensemos em cortinas, então. (Detesto tanto os teus atrasos.) Usamo-las para nos protegermos do exterior, para não nos revelarmos demasiado; não concordas? Mas a verdade é que queremos revelar-nos um pouco (ou não teríamos janelas; recusaríamos o exterior; tentaríamos permanecer encerrados em nós, fugindo do mundo); queremos revelar-nos parcialmente e as cortinas protegem-nos, impedem que sejamos vistos inteiros e nítidos; as cortinas deformam-nos, desfocam-nos. É para isso que servem, é por isso que as usamos. Mas há um preço, infelizmente: também impedem que o mundo nos chegue completo e inteiro, pleno, fulgurante; filtram o que recebemos do mundo. Ou seja (digo eu a mim própria): o que nos protege também nos empobrece. E fico um instante a imaginar o que responderias a isto. Talvez dissesses: sim, tens razão; o que nos protege do mundo também protege o mundo de nós; e é uma ideia algo perturbadora, não achas? O mundo lá passa, sem nos ver completos, sem nos perceber completos; vê as nossas cortinas, apenas – e falo em cortinas como poderia falar em máscaras, não é? Protegemo-nos do mundo e, por isso, o mundo vê-nos parcialmente, vê um fragmento, uma sombra, uma aparência de nós. Mas será isso que desejamos verdadeiramente? Manipulamos o que o mundo vê de nós e achamos isso inteligente e sensato, pragmático; mas sê-lo-á?

Continuo a olhar lá para fora (o mundo a passar por mim, totalmente indiferente) e reflicto nesta tua ideia, nesta ideia que tive por ti: protegemo-nos com máscaras, como protegemos as janelas com cortinas. E depois, assim de repente e sem aviso, deixo de pensar nisso; não me apetece. Não me apetece pensar seja no que for porque, afinal, os pensamentos também podem ser como cortinas: separam-nos da realidade. E quando deixo de pensar, há algo que se torna óbvio: não me apetece esperar mais. O que desejo verdadeiramente – percebo-o sem surpresa nem receio, sem entusiasmo ou incredulidade – é dispensar a protecção das cortinas e abandonar a penumbra do nosso quarto; o que desejo é enfrentar o mundo e saborear toda a sua luz; mostrar-me ao mundo completa e inteira, ser luz. É isso o que desejo, assim de repente. Acreditas numa coisa destas? Atrasas-te, a cortina toque-o o rosto, os pensamentos atropelam-se: e é tudo; mas o suficiente para que a minha vida mude.

Saio sem sequer trancar a porta, corro pelas escadas e abandono o prédio, atravesso a rua como se fugisse a um qualquer perigo indefinido (ou como se corresse em direcção à felicidade?); mas depois paro, simplesmente paro: e fico a olhar para a nossa janela, vendo-a como nunca a vira antes, vendo-a do lado de fora. Estou parada no meio do passeio, há pessoas indiferentes e apáticas a passarem por mim (desviando-se, sem me tocarem; porque atemorizará tanto o toque de um estranho, o toque a um estranho?); o céu brilha, o ar resplandece de luz. E eu aqui parada, olhando a nossa janela: como se olhasse algo desconhecido e enigmático, algo que não fosse meu; tentando perceber como seria estar do lado de lá da cortina; tentando ver-me como os outros (o mundo) me veriam; olhando-me a mim própria – à versão pública de mim própria – mas sabendo que existe uma cortina pelo meio, a separar-nos. Perguntando-me: porque insistimos em manter duas versões de nós próprios, uma íntima e outra pública, versões irremediavelmente separadas por espessas cortinas inamovíveis? Porquê?

Eis-me, assim, chegada a este inesperado momento. Parada no passeio e sentindo a brisa no rosto, o vestido a esvoaçar ligeiramente, a luz a rodear-me, a envolver-me, a acariciar-me, a clarear-me, a inebriar-me: olho com ternura a nossa janela, a nossa cortina (sim, como se fosse uma despedida); mas não se trata de olhar sem ver, desta vez é algo diferente; olho e vejo mesmo. Vejo a realidade, sem o filtro de cortinas ou máscaras; apenas a realidade concreta e real, materializada numa banal janela, numa perspectiva diferente da mesma banal janela de sempre. E tu continuas sem chegar, atrasado; sempre apressado, apesar de irremediavelmente atrasado em relação à vida, a mim. Mas – e enquanto consciencializo isto talvez esteja a sorrir, o que é um pouco triste – o teu atraso deixa subitamente de ter qualquer importância; porque quando chegares, já não estarei à tua espera.