ELA ESTÁ EM TODA A PARTE - ALGUMAS NOTAS SOBRE POESIA

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Fui ao talho. Queria comprar carne para grelhar. O talhante pegou num pedaço de carne e disse que era muito bom, de qualidade. Pegou na faca que lhe pareceu mais afiada e cortou um bife. Era um grande bife. Cheguei a casa e temperei-o: sal, ervas aromáticas, alho. Fiz as brasas. Deixei que elas esmorecessem um pouco, para que a carne grelhasse lentamente. A carne lá grelhou. Parecia suculento, tinha boa cor. Era rijo. Pensei no talhante. Será que alguma vez leu um verso? É possível. Será que alguma vez escreveu um verso, um poema? É possível. Mas, certeza, só tenho esta: ele pegou na faca que lhe pareceu mais afiada, cortou um bife, entregou-mo e eu paguei.

 

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Quando se fala de poesia também se fala de poetas, como se um fosse impossível sem o outro, e vice-versa. Quando falamos de poesia temos «tendência a olhar para ela como um ente metafísico que escapa às regras do raciocínio» (João Camilo); quando falamos de poetas temos tendência a encará-los como os únicos seres capazes de “captar” esse ente metafísico. Aí reside o problema: a poesia e os poetas são demasiado “divinizados”.

 

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Se aceitarmos o pressuposto de que vivemos numa época de dúvida, aceitamos que toda a verdade é hipotética e provisória. Daí chegamos à poesia. Não quero com isto dizer que a poesia é a verdade, nem tão pouco que é hipotética e provisória. A poesia é. As poéticas — essas sim — são hipotéticas e, sobretudo, provisórias. Não nos podemos esquecer que «uma coisa é a poesia, e outra coisa são as formas que ela adquire em cada cultura ou época» (Antonio Cicero). Podemos perguntar: que forma para a poesia hoje? que poética? Responder a estas duas questões implicaria, em primeiro lugar, definir poesia. Contudo, não podemos colocar de lado o risco que é tentar definir algo que, porventura, não é susceptível de ser definido, explicado, reduzido a compêndios. Tentar definir poesia será um esforço inútil, pois muito dificilmente será encontrada uma definição geradora de consenso. É claro que eu tenho uma definição de poesia, mas é a minha definição de poesia. Ela é susceptível de conter todas as contradições e fragilidades inerentes a uma definição não geradora de consenso (se é que existem definições geradoras de consenso). Assim, qualquer tentativa para estabelecer uma poética é, também, inútil.

 

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A poesia é, na maior parte das vezes, confundida com a forma que pode adquirir. A poesia é independente da forma. Mas a forma não é independente da poesia. A poesia é a essência da forma e não o acidente. Eu posso argumentar, ou até mesmo afirmar, que esta ou aquela forma é ou não é válida. Todavia, eu não posso argumentar, ou até mesmo afirmar, que este ou aquele poema é ou não é poesia.

 

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É claro que ao defender isto eu poderei cair naquilo que alguns chamam de banalização da poesia. Sempre considerei este termo infeliz, pois ele deriva duma mentalidade que ainda acredita na sacralização e divinização da poesia. Nada há, quanto a mim, de mais errado. A poesia, sendo, está acessível a todos. Não é necessário conhecer uma qualquer ciência oculta para a poder decifrar, pois todas as tentativas para decifrar a poesia são, quanto a mim, inúteis: a poesia nunca foi, nem é, indecifrável. Ela apenas é.

 

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A sacralização da poesia, por parte de alguns pensadores, é a principal responsável pelo afastamento dos leitores. Dessacralizar a poesia é fundamental. Dessacralizar o poeta também. O poeta não é um super-homem, nem é alguém que comunica com os deuses. Ele é apenas humano. Como ser humano que é: incorre em erros. E um desses erros talvez seja dedicar-se à poesia.

 

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Imaginemos que o verdadeiro e único objectivo da poesia é comunicar. Ora muito ficaria por dizer, dirão alguns. Ou: tudo ficaria dito, dirão outros. Assim sendo, imaginemos antes que o verdadeiro e único objectivo da poesia é não ter qualquer verdadeiro e único objectivo. Digo isto pela simples razão de acreditar (e reitero mais uma vez) que a poesia é: «Não é útil, nem inútil. É.» (Henrique Fialho). Mas, questionemos: será possível atribuir objectivos à poesia? Terá, de facto, a poesia um objectivo? Acredito que não, pois penso que atribuir um objectivo (ou objectivos) à poesia é/será reduzi-la a algo que ela não é. Uma coisa é certa (embora nada em poesia o seja): a poesia é tudo aquilo que é, menos aquilo que querem que ela seja.

 

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Dilthey defende que a poesia tem uma relação especial com a concepção do mundo, relação essa que deriva do facto da poesia usar a linguagem como meio, o que possibilita a sua expressão lírica. Para este autor a poesia tem um único objectivo: compreender a vida a partir de si mesma, «deixando que as suas grandes impressões nela actuem em plena liberdade.». Chamo a atenção para a última parte da frase: plena liberdade. A liberdade é, sem dúvida, um elemento fundamental em toda a expressão poética. Acreditando que não existe uma única forma para a poesia (pois isso seria contrário à poesia), mas sim formas, a poesia tem em si a possibilidade de ver, valorizar e configurar a vida de modo ilimitado. Deste modo, a forma que a poesia pode adquirir parte, sem dúvida, da experiência vital, única e livre do poeta.

 

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O poeta. Esse ser que é capaz de ver para lá do ver, pois do alto da sua torre de marfim — longe da turba embrutecida, inculta, barulhenta, incapaz de vislumbrar a beleza de um verso — constrói um mundo melhor. O poeta sabe que a poesia pode salvar o mundo. Não lhe basta que salve o dia. É claro que esta ideia de poeta não me interessa. Ser poeta não é ser mais alto, nem maior,  nem toda essa bazófia que nos impingiram na escola. Ser poeta é ser um homem, ou mulher, como os outros. E por falar em escola (e quando digo escola também poderia dizer academia): ela é, talvez, uma das maiores inimigas do poeta e da poesia. Contudo, o seu papel pode passar pela desmistificação do poeta e da poesia. Só através de uma desmistificação é que se pode fruir livremente a poesia, compreender (se possível) livremente o poeta.

 

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Quando menos espera, o homem «realiza um dia o encontro decisivo com os seus limites» (Eduardo Lourenço). Um desses limites, quanto a mim, é a poesia. Não quero com isto dizer que a poesia é limitadora ou limitada, muito pelo contrário. Mas é ao confrontar-se com a poesia — com as suas infinitas possibilidades e formas —, que o homem é confrontado com um dos seus limites. Simplificando: o homem, na verdade, nunca aprendeu a nadar, e quando chega à poesia deixa de ter pé.

 

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Pensemos, um pouco, sobre a chamada poesia hermética. Afinal, o que é isso de poesia hermética? Pensemos em Peirce quando se refere à clareza ou não das ideias e dá um exemplo de terminologia filosófica: «uma ideia clara é definida como uma que é apreendida de tal forma que será reconhecida onde quer que se encontre, de modo que nunca será confundida com outra. Se esta clareza faltar, dir-se-á então que é obscura». Apesar de Peirce dar este exemplo para criticar uma certa falta de clareza de alguns lógicos, o mesmo não será feito para criticar uma certa falta de clareza de alguns poetas. Contudo, é nesta questão da clareza que surge toda a polémica em torno das actuais formas da poesia: se um poema não é suficientemente claro, é obscuro e logo hermético; quando um poema é demasiado claro, acontece o oposto, com a desvantagem de poder ser considerado como um não-poema (o que não deixa de ser poético) ou poesia de urinol (o que também tem a sua piada).

 

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A necessidade de um halo metafísico na palavra poética não é, quanto a mim, assim tão necessário. Às vezes é impedimento para o fruir da poesia: «a mais velha ideia ainda em voga é/que se não consegues entender um poema é/quase certo que é/um bom poema» (Charles Bukowski). Socorri-me destes versos para exemplificar uma ideia que ainda hoje perdura entre nós. Tal ideia, muitas vezes, degenera em preconceito — algo que é muito feio em poesia, pois a poesia é tudo menos preconceituosa. Não me revejo na ideia de que a palavra poética deva cortar com a representação da realidade, procurando, dessa maneira, transgredir. E não me revejo na ideia de que a representação da realidade é sinónimo de segurança, tranquilidade, certeza. Haverá algo mais inseguro, intranquilo e incerto do que a realidade?

 

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Será possível uma renovação das “actuais” formas da poesia? Será possível uma poesia livre, sem estar agrilhoada a estéticas, a manifestos? Tendo em conta o que se passa com as “actuais” formas da poesia portuguesa, parece que tal é impossível, pois essas “actuais” formas perduram há mais de 25 anos. Isto é: existe uma clara divisão, divisão essa fruto de supostas estéticas e supostos manifestos. De um lado, aqueles que vêem na metáfora exagerada, nas imagens mirabolantes, a única possível e válida forma poética. Do outro, aqueles que recusam a metáfora exagerada e as imagens mirabolantes, preferindo antes a “realidade”. No entanto, a poesia é só uma. A forma de a representar é que é diferente.

 

Contra o optimismo

A base do optimismo é simplesmente o terror.

Oscar Wilde 

I don't believe illusions 'cos too much is real

The Sex Pistols 

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 Leio algures: «As pedras são degraus de outros caminhos...». Nunca fui muito com este género de ideia. Pedras são pedras em qualquer parte. Não acredito que exista alguém que goste de caminhar por um caminho cheio de pedras. Podem ser muito optimistas e mais tarde pensar que são «degraus de outros caminhos...». Mas, enquanto percorrem o caminho, duvido que não pensem: «Ora aqui está uma boa merda.».

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Não foi necessário ler Cândido de Voltaire para saber que sou pessimista. O optimismo nunca me atraiu. Sempre o considerei sem sal. E vendo bem as coisas é. Por exemplo: a chamada grande literatura é, toda ela, pessimista. Onde é que existe optimismo nos livros de Kafka, Dostoievski, Céline, Mishima, Hemingway, Faulkner, Cossery, Bernhard? Não me lembro. O mundo é irremediavelmente absurdo e está irremediavelmente condenado. E a esperança? A esperança é outra coisa. Talvez um dia fale sobre ela. Mas não associo esperança a optimismo. Um pessimista pode ter esperança. É possível. Só que a esperança não o cega. Por outras palavras: um pessimista é alguém que tem os olhos bem abertos.

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Os pessimistas são sempre mais criticados do que os optimistas. Se um pessimista chama a atenção para possíveis obstáculos na vida, há logo alguém que exclama: «Ai! És tão pessimista!». Mas o contrário não se verifica. Ninguém diz: «Ai! És tão optimista!». Ou: «Lá vens tu com o teu optimismo!». Os pessimistas são discriminados. São acusados de ver obstáculos em tudo, quando na realidade isso (o facto de ver obstáculos) só traz vantagens: os pessimistas são mais rápidos a desviarem-se deles. Os optimistas não. Tropeçam, caem, lamentam-se, depois vão ler Paulo Coelho e esperam, com isso, aprender a "caminhar".

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 Não acredito que a leitura de Nietzsche ou Schopenhauer tenha influenciado o meu inerente pessimismo.  Li-os pela simples razão de estar na moda, de ser aquilo que era esperado de mim. Andar com o Anticristo no bolso de umas calças de ganga rafadas fez milagres junto das raparigas mais susceptíveis. Vestir o preto, também. Mas voltemos ao meu pessimismo. Não sei qual será a sua razão, origem. Sinceramente, não me interessa. Mas sei que é inerente.

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O meu pessimismo explica-se sem dificuldade: a minha total descrença na bondade humana. É claro que há excepções: conheci, na minha curta vida (trinta e seis anos até ao momento em que escrevo estas linhas), pessoas muito boas, altruístas até à medula (embora ainda não tenha resolvido em mim a questão entre altruísmo e egoísmo, pois considero-os indissociáveis, numa relação simbiótica). O oposto também é verdadeiro: pessoas más não faltam. Conheci umas quantas e suplantam, sem dúvida, as boas. Exemplo: éramos crianças e jogávamos à bola no parque infantil do bairro. Sempre que uma bola ia parar a um certo e determinado quintal, surgia uma faca — vinda não sei de onde  — que a rasgava. Quem é que rasga, destrói, uma bola com a qual crianças brincam? Lá no bairro não havia só essa criatura. Havia uma outra, muito mais cruel, que, para além de rasgar bolas, também cortava as asas às crias dos pássaros que apanhava a fazer ninho nas “suas” árvores e no beiral da “sua” casa. Vi, tudo isso, com os meus próprios olhos.

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 Se tentasse justificar o meu pessimismo, com uma base filosófica, seria incapaz. Ainda não li o suficiente para estabelecer um “programa” — algo que parece ser muito necessário para resolver tais questões e para que os outros nos levem a sério. No entanto, penso que ele, o meu pessimismo, é indissociável da minha precariedade existencial: saber que a vida é um milagre e saber que ela é um absurdo. Viver nesse limbo.

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 Pessimismo pressupõe sofrimento? Há quem acredite que sim. Cioran acreditava que se podia ser pessimista sem sofrimento. Para defender a sua posição, Cioran estabeleceu algumas linhas de pensamento. Uma delas é deveras interessante: com as desilusões criar um sistema. O sistema do pessimista é baseado nisso mesmo: nas suas desilusões. É claro que poderemos contra-argumentar dizendo que para ter desilusões o pessimista teve, em primeiro, que ter ilusões. É um argumento válido, com o qual não concordo. A desilusão é, no pessimista, sempre a priori.

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O discurso político português (principalmente do Governo e de alguns representantes do Estado) foi invadido pelo optimismo. E isso deixa-me a pensar. Como considero que todo o discurso político é falacioso, considero o optimismo — inerente ao discurso — falacioso. É claro que esta ideia aplica-se, também, a qualquer tipo de optimismo. Pois o optimismo é isso mesmo: uma falácia.

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 Por que razão o pessimismo? Porque o optimismo assim me obriga. O optimismo (que eu atrevo-me a designar de hipócrita) mais não é do que um mecanismo coercivo. O optimismo, nomeadamente aquele patente no discurso político, só serve um propósito: acalmar a massa, submete-la a uma vontade que é, muitas vezes, pouco clara. Todo o discurso optimista é falacioso. Ao contrário do optimista, o pessimista não recusa a realidade tal como ela é. Assim, ser pessimista, escolher o pessimismo, é um acto de resistência.

Naufrágios - Breves notas sobre Thomas Bernhard


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Um dia li que Thomas Bernhard tinha mau feitio, que não era um pessoa de trato fácil, que dizia o que tinha a dizer sem ceder à hipocrisia, ao cinismo. — e parece que isso, na Áustria, não é lá muito bem visto (cf.Os Meus Prémios, 2009). Para Bernhard a Áustria era o inferno na terra. E os austríacos só tinham o que mereciam: «(…) eles são, num país assim, incapazes de desenvolvimento e têm também permanentemente consciência dessa incapacidade de desenvolvimento, um país assim precisa de pessoas que não se revoltem contra a pouca-vergonha de um tal país, contra a irresponsabilidade de um tal país e de um tal Estado (…)»(in Correcção: 2007, 34). Sempre tive uma tendência para escritores com mau feitio, que dizem o que têm a dizer. Doa a quem doer.

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Várias questões são levantadas quando lemos Thomas Bernhard. Em primeiro lugar, o ritmo que o autor confere à sua escrita. Bernhard era um grande apreciador de música. Nos seus vários romances isso está bem presente, nomeadamente através das várias repetições — palavras, ideias, frases —  lembrando partituras. Em segundo lugar, as obsessões. Morte, suicídio, absurdo, o papel da História no destino de uma nação (Áustria). Em terceiro lugar, a estrutura sólida dos seus textos. Páginas e páginas sem um único parágrafo. Um corpo único, orgânico, que se estende e desenvolve ao longo das páginas.

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Bernhard nunca se perdoou por ser austríaco. Nunca perdoou à Áustria a incompreensão pela sua obra, mas também o nacional-socialismo que a Alemanha Nazi lhe "impôs". Educado entre colégios católicos e um nacional-socialista, Bernhard cedo percebeu que o mundo era absurdo e incompreensível. Se de um lado sentia a opressão imposta ao "eu" pelo catolicismo, do outro sentia essa mesma opressão vinda do nacional-socialismo. Thomas Bernhard passou a combater esses dois tipos de anulação. Começou a escrever poesia.

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A doença foi outra obsessão. Não o podemos censurar. Muito cedo sofreu de uma doença pulmonar,  que o acompanhou toda a vida e que, por fim, o conduziu à morte. Desde cedo conheceu hospitais, o branco das paredes, o cheiro a Morte pairando pelos corredores, o corpo e a sua degradação. O espectro da Morte condicionou-lhe a Vida, obrigou-o a “refugiar-se” no campo, quando era a cidade que o chamava. O eu via-se, dessa maneira, dividido, condicionado. Anulado.

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Thomas Bernhard procurou a não-institucionalização da sua obra, do seu pensamento. Um escritor (ou artista) institucionalizado deixa de ter voz própria: ela passa a ser a voz da instituição. A independência era muito apreciada por Bernhard. Só dessa maneira podia escrever o que bem entendia, sem estar condicionado, limitado, pelo deve-e-haver da troca de galhardetes culturais. Apesar de ser um dos mais importantes escritores austríacos do século XX – ou talvez o mais importante – Bernhard nunca foi muito bem aceite pela chamada intelligentsia do seu país (ainda hoje é um escritor polémico e pouco amado). O livro Os Meus Prémios é disso um bom exemplo. Bernhard denunciou sempre a hipocrisia institucional (bem como a geral, a bem da verdade, também institucionalizada), o seguidismo, o caciquismo.

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Em Perturbação — segundo romance de Thomas Bernhard —, o narrador acompanha o seu pai — um médico de província — nas suas visitas diárias aos seus pacientes. O narrador é confrontado com personagens grotescas que, de certo modo, traduzem a visão bernhardiana do Homem e do Mundo. Todas as personagens encontram-se, de uma ou outra forma, confinadas a um determinado espaço, não se aventurando no mundo exterior (o mesmo acontece com o personagem da peça de teatro Simplesmente Complicado). Eles encontram-se fechados em si mesmo, presas às suas doenças, obsessões e incapacidades. O Homem, segundo Bernhard, é isso mesmo: doente, obsessivo e incapaz.

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A personagem Saurau — em Perturbação — serve todos os propósitos de Thomas Bernhard. Em primeiro lugar, é através do monólogo de Saurau que Bernhard começa a desenvolver a sua técnica narrativa baseada na repetição, nos longos períodos, frases (não podemos esquecer que este é apenas o segundo romance de Bernhard); em segundo, é através de Saurau que Bernhard dá a sua visão do mundo. Saurau não poupa ninguém: Homem, Deus, Estado. A torrente de impropérios é avassaladora. Bernhard serve-se, ainda, de outro artifício: Saurau é um louco. Aos loucos, como sabemos, tudo se perdoa (um pouco à maneira do Parvo de Gil Vicente em Auto da Barca do Inferno). Saurau vive obcecado com o seu filho e com aquilo que ele poderá fazer, no futuro, com o legado de Saurau. É evidente a clivagem entre gerações, entre o velho e o novo, entre uma Áustria imperial e uma Áustria republicana. No entanto, Bernhard não toma o partido de nenhum dos lados, pois o que resta — na realidade — é o nada. Todavia, não podemos cair na tentação de interpretar “Áustria” como o espaço geográfico e político desse país. “Áustria” é, no fundo, uma metáfora para toda a civilização ocidental. Uma civilização em declínio, queda.

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A vida é sofrimento. Bernhard sabia isso. Em Perturbação esse sofrimento está presente em todas as personagens. Todos eles sofrem de uma ou outra forma. O sofrimento, em alguns casos, é físico; mas, em todos eles, também o é psicológico. Bernhard descreve homens e mulheres incapazes, débeis, derrotados, conformados com a sua existência. A derrota é uma constante no universo bernhardiano. Thomas Bernhard sabe que nada no Homem o pode redimir da sua condição. Por muito que o Homem faça, ele será sempre um ser sujeito à angústia, doença, estupidez, Morte. O Homem é — no seu âmago — um ser absurdo.

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Outra questão que se levanta com a leitura de Thomas Bernhard é a sensação de estarmos sempre a ler o mesmo livro, a ler a mesma “história”. Tal facto não deve ser tido como um “defeito”. Há em Bernhard todo um “programa de escrita”. Mas que programa é esse? Bernhard parece pregar sermões. Só que não são sermões morais nem “moralizantes”. Antes “consciencializantes”. Na peça de teatro Simplesmente Complicado, Bernhard dá-nos a conhecer as obsessões, traumas, angústias de um velho homem enclausurado na sua própria casa, que cria e recria à sua imagem e semelhança. A personagem debate-se com a doença, a velhice e a proximidade do fim. Bernhard coloca o dedo na ferida: a loucura está mais perto de nós do que aquilo que pensamos; rapidamente se pode apoderar do nosso corpo e mente. Simplesmente Complicado é uma alegoria à nossa frágil e perene condição humana.

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Apesar do esforço de algumas editoras portuguesas, Thomas Bernhard continua a ser pouco conhecido do comum leitor. Acredito que não seja fácil “cativar” o leitor português — que na sua maioria despreza os seus grandes autores — para a escrita/obra de Bernhard. O reconhecido mérito das traduções de José A. Palma Caetano não é o suficiente para cativar leitores. Não é fácil (e por mim falo) folhear um romance como Correcção ou Extinção e ser confrontado com a solidez das suas páginas. Thomas Bernhard escreveu uma obra baseada na “solidez” do corpo de texto. Se o comum leitor português — que nunca leu Saramago — diz que Saramago não sabe pontuar, o que dirá de Thomas Bernhard?

 

Alfa

Um rapaz e uma rapariga. Ele chora. É um Domingo à tarde. O rapaz continua a chorar. A rapariga parece que lhe diz algo ao ouvido. O rapaz sorri. Continua a chorar. Chegam à linha. O comboio ainda não. Ele abraça a rapariga. Ela retribui com um beijo na boca. Não pára de chorar. Sim. Isto é uma despedida. O comboio aproxima-se. Eles abraçam-se. Agora mais forte do que a primeira vez. O comboio aproxima-se cada vez mais. Outro abraço. Mais forte ainda. O comboio pára. Ele olha para ela que olha para ele. Sobe para o comboio. É um Alfa. Continua a chorar. As portas fecham-se. Ele diz que a ama. Ela que o ama também. O comboio inicia a sua marcha. Ele caminha com o passo apressado. Tenta acompanhar o comboio e diz amo-te, amo-te. Ela? Não sei. Não consigo ouvir daqui. Ele continua. Agora corre. Amo-te. O comboio deixa a estação. Ele chora. Leva a mão à cara. Limpa as lágrimas e diz amo-te outra vez.

Inevitável


Não sei como aqui vim parar. Dói-me a cara do lado esquerdo, sinto-a inchada e mal consigo abrir o olho. Não me recordo de nada. Estou sentado numa cadeira. Tenho as mãos atadas atrás das costas. Sinto os pulsos em ferida. Ardem. Os pés estão atados. Sinto-me molhado. Cheiro a mijo. A sala onde me encontro é ampla. Parece um velho armazém. Existem janelas. Não sei quantas, quase todas com vidros partidos. É noite. Ouço vozes ao longe. Falam numa língua que não consigo identificar. Falam alto e repetem muitas vezes a mesma palavra. É uma palavra que fere quando se ouve. Tento libertar-me. Ouço passos. Consigo distinguir ao longe, na escuridão, dois corpos. Um deles aproxima-se. Diz qualquer coisa que não compreendo. Aponta-me uma arma à cabeça. Dispara.