Lourdes Castro: dar a ver o enigma

Lourdes Castro, Odalisque  d'après Ingres (1964)

Num testemunho intitulado Sombras Projectadas e Contornos, Lourdes Castro diz-nos o seguinte:

“A sombra ainda é palpável. O contorno já não é. (…) [o contorno] é, creio, um novo olhar sobre o que me rodeia. 
A sombra projectada como contorno interessa-me muito mais do que a sua simples representação. Porque o contorno da sombra é ainda mais fantasmático, fugitivo, ainda mais ausente. (…) Enquanto um contorno é qualquer coisa que foi feita com a presença da sombra, mas que dela se liberta. O contorno sugere ausência, verdadeira e absolutamente. E, para mim, é ir ainda mais longe. O contorno é o Menos que posso ter de alguma coisa, de alguém, conservando as suas características.” (p. 41)

A ênfase posta no contorno mostra um importante tópico de problematização. Desde logo, o contorno não se confunde com a sombra, mas também não se revela como intenção que postule alienação ou transcendência; não sendo também marca de qualquer polarização, o contorno será o entre a total dependência que elide a diferença e a ingénua tentativa de rompimento com o referencial.

Ora, a presença do contorno faz sentir-se aqui em primeira instância no e com a visão – o tal “novo olhar sobre o que me rodeia”. Permanência no mundo, o contorno não equivalerá à circunferência, ou seja, ao limite que elide a aproximação, mas sim ao acentuar das possibilidades de (re)conhecimento. 

Porém, seria talvez precipitado encarar a visão como sentido único, ou sequer privilegiado, no que tange a prossecução do entendimento – além de que “olhar” e “ver” não se anulam. Do que se trata é da articulação de um caminho, a saber, a visão que se relaciona com “o que me rodeia”, com a “ausência” e com “o Menos”; e nenhum destes movimentos se sobrepõe aos demais. O contorno acrescenta: “é ainda mais” e “ é ir ainda mais longe”; ou talvez possamos dizer que nesta obra, o contorno é a instância que, longe de um poder judicativo, instaura o aproximar-distanciar.

Com efeito, o que “rodeia” poder-se-á materializar no tipo de espacialização que (se) disponibiliza; a “ausência” não redundará na incomunicabilidade, antes consistindo na abordagem que des-constrói o sujeito; finalmente, “o Menos” inaugura e abre. Heidegger, nomeadamente no ensaio A Origem da Obra de Arte, apresenta algumas conexões originais que se prestam a interessantes pontos de contacto com o que vamos dizendo.

Partindo da agressão (racional) relativamente à “Stimmung”, que no ensaio surge traduzida por “impressão ou disposição afectiva” (p. 18) - e note-se porventura o eco kantiano da “algemeine stimme” contida na Crítica da Faculdade do Juízo -, Heidegger diz-nos que o “aparecer das coisas” (p. 19), i.e., a sua “consistência”, deve muito à forma “como contorno” que é a tradução da “especificação” e do “entrelaçamento de forma e matéria” (p.  21). Aí, “contorno” ancora-se em larga medida no caminho que o filósofo trilha, o qual se insere na “coisidade da coisa”: a ideia de “contorno”, juntamente com a de “utensílio” ou “produto”, pretendem desvelar, em primeira linha, o teor misto da obra-de-arte como “espontaneidade” e “fabrico”. Daí decorre que o contorno em Lourdes Castro se associe mais intimamente com um outro conceito heideggeriano: “Esta fenda abarca e mantém em conjunto na sua separação (…) o traço-fenda é o conjunto unificante de sulcos do esboço e do traçado fundamental, do rasgão e do contorno” (p. 66). O traçar-fenda, o “traço-fenda”, consubstancializa, assim, um modo possível de inscrição que foge ao lugar-comum e ao “habitual”: é a “clareia” e o “encobrimento” que a obra-de-arte projecta, é um co-povoar. 

O contorno em Lourdes Castro e o traço-fenda em Heidegger não sequestram, antes convidam a instaurar, precisamente porque contrariam a dominação da resposta que se pretende definitiva. O que Heidegger veio a cunhar de “habitar poético”, e de arte como “ditado poético”, serão abordagens à finitude do homem, ao “ser-para-a-morte” que salvaguarda o “mistério” e que, por isso, não poderá cessar de questionar o como do aí-ser de e em cada um de nós. “Ver o enigma” (p. 85) é a resposta que o filósofo dá à pergunta “Em que medida arte” (p. 58): haverá arte se e quando o ser rejeitar a elipse para a qual a excessiva subjectividade pode resvalar, optando – ou tomando para si – o “círculo” que, para Heidegger, abre o indivíduo ao estar-no-mundo poiético. 

Também Lourdes Castro vê o enigma e toma para si o confronto com as forças de dissipação inerentes à vida; ser capaz de atingir a “ausência” é o “Menos”, a saber, o vestígio, e não o esquecimento. É que o contorno “conserva”, ou seja, vivifica, e o retratar feito pela artista não copia, antes celebra a identidade. Essa espécie de concentração, leia-se, o esforço de procura do húmus que desencadeia e apreende, joga concretamente com o visível, ou melhor, com o habitualmente visível – o retrato. 

Todavia, Lourdes Castro controverte o jogo: deseja o in-habitualmente visível, graças à sombra e especialmente ao contorno; atribui consistência, ou seja, dá a ver. O “entre” será o que Heidegger designa de “clarear e pôr-a-coberto” (p. 39), que na artista passa pelo clarear para pôr-a-coberto. O contorno participa no assinalar daquela relação entre os entes quese caracteriza pela comunhão atenta e que desapossa, porque como diz Lourdes Castro: “Alguns têm a mesma idade, mas nenhum tem o mesmo coração” (p. 47).

A presença em si de Johannes

O diálogo demasiadas vezes forçado entre a Literatura e o cinema consegue ser interrompido por excepções relevantes. A Palavra, livro a partir do filme homónimo de Carl T. Dreyer, é um desses casos.

Datando de 2007, A Palavra reúne um texto introdutório de João Bénard da Costa, fotografias de Rita Azevedo Gomes, desenhos de José Loureiro e poemas e testemunhos de João Miguel Fernandes Jorge. E é a presença aí do poeta João Miguel Fernandes Jorge que queremos destacar. Chamamos-lhes “testemunhos”, na medida em que serão apontamentos, re-leituras do filme: o poeta parte dessa obra de Dreyer, mas não lhe cingindo já que se acrescenta intimamente. É em especial em torno de Johannes, protagonista do filme, que JMFJ forja o testemunho aporético da sua própria leitura.

O poema Duas Rosas começa com os seguintes versos: “No caminho para deus viu-se obrigado/a parar várias vezes./Vinha do tempo das quimeras./Partia, a passos rápidos, sem direcção/definida”. Assim, o poema não narra – não tem um começo definidor -, antes surge num interstício, a saber, a revelação desde logo do objectivo de Johannes: a procura do encontro com o transcendente; para mais, essa “procura” alude à persistência – caminho não linearmente progressivo. 

Porque “Levava dentro de si a cumplicidade de um/relâmpago, trazia recados de si mesmo/para mais dentro de si próprio./ todas as suas forças ficaram isoladas/e o tempo tinha o valor físico de um deserto.”, a dialéctica interior-exterior mostra-se com especial vigor, uma vez que o “para mais dentro de si próprio” se relaciona (motivo?) com o isolamento das forças e com o tempo, aqui veemente e indómito - “valor físico de um deserto”.

Os últimos versos não finalizam, antes reforçam o carácter des-regulado do objectivo de Johannes: “Vivia sob lentidão extrema,/ não muito longe do que jamais acontecera./ Regressou ao inanimado do seu corpo, aos objectos do próprio quarto.”

Regresso que não fecha ou baliza, antes amplia e interrompe, o poema de JMFJ, na sua linguagem específica – rente, pouco ou mesmo nada metafórica e cujo teor performativo é discreto se bem que impressivo -, postula a discordância com um tempo saturado e impossibilitador da escolha por um caminho singular. Por isso, Johannes serve de arquétipo ao consentimento relativamente a um Logos não necessariamente revelado, como o é, nomeadamente, para o cristianismo.

Com efeito, o poema referido é complementado pelo texto O Lustre, sendo ambos, porém, autónomos. Aí, JMFJ considera A Palavra “o melhor exercício que conheço de deus; sobre a suspensão do tempo”, acrescentando depois que “Johannes pertence a esse meu corpo de intenções de escrita.” (p. 21). Esta última expressão - “corpo de intenções de escrita” - mostra-se sintomática da ressonância que a linguagem poética tem. Desejo que pode nem se concretizar (intenção), a escrita de JMFJ salienta o comprometimento, tal como Johannes para quem o tempo é indissociável do gesto de Deus (aí-ser que não significa de modo nenhum alheamento). Tratar-se-á, assim, da certeza absoluta de quem acredita.

Ao propor formas que permitam pôr-em-causa a finitude, JMFJ coloca a personagem de Dreyer em Madrid; “Mãos de condutor de sonhos, mais do que de almas” (p. 23), Johannes cria o que é da ordem do difusor, ou seja, passagem e passagens que re-fazem o curso da vida: “É verdade que há um futuro, mas o tempo em que um rosto vive não é um tempo absoluto. Não vai além de um momento: o da passagem da transparência da mão à circunstância quietante do lustre” (p. 23). A irredutibilidade do diferenciado faz-se como Johannes pelo tal caminho instável mas múltiplo, pela busca do presente em si, i.e., repetindo.

Em Kierkegaard – presença no livro e no filme – a repetição marca o salto ético precisamente através de um comprometimento, ou seja, a possibilidade estética materializa-se eticamente. Ao contrário da anamnese que é em grande medida um dado, a repetição pressupõe a (re)confirmação não-sistemática; será excepcional e em constante relação com a memória (passado vertido no presente): “porque a excepção não justificada reconhece-se precisamente pelo facto de querer contornar o universal. Este combate é extremamente dialéctico e infinitamente matizado” (A Repetição, p. 137). Não obedecendo a um programa, o salto ético repetido efectiva-se, como salienta José Miranda Justo, no kayros (momento oportuno) que, como bem se entende, afigura-se aqui complexo por definição. Será, cremos, muito através da presença em si que a singularidade da repetição acontece. Para Kierkegaard, “O infeliz está sempre ausente de si mesmo” porquanto “está num tempo passado ou num tempo futuro” (Ou-Ou I, p. 258). O indivíduo, contaminado pela memória e pela expectativa, não consegue des-unificar o tempo e, por isso, mergulha na infelicidade ou angústia.

“Falta-me sempre tempo para perseguir até final uma imagem, um sentido, uma cor” (p. 21); este lamento de JMFJ encontra saída, ou espaço de sucessão, na figura de Johannes e na sua repetição até Deus. Investigação aproximativa, a linguagem póetica dos testemunhos de JMFJ exercita(-se) na revelação por si que o poema inventa. Não se trata de copiar a personagem do filme, mas sim da comutação com o indivíduo que os espaços de reflexão abertos pela poesia consentem. É que a linguagem não tem de ser uma amarra ou um mal necessário para o poeta; a doxa do Logos assimilado a um princípio fundador – o Verbo – não impossibilita que a presença em si do autor jogue com o determinismo. No fundo, o que JMFJ nos diz é que a poesia se coloca de modo original em relação com a referida falta de tempo, ou seja, com a perda.

O modo de dizer o tempo

                                                                                                                        

                                                                                                À Capitolina, também pelo livro

 

 

A poesia inscreve(-se) e afirma(-se); é a demarcação cuja capacidade de desdobramento rejeita lógicas de identificação e, por isso, persiste nos intervalos que encerram em si margens de indeterminabilidade. É o “rapto” de que fala Herberto Helder, ou seja, o exercício resistente de captura de intensidades que descodificam: o interrogativo que segrega o que se presume, ou seja, a poesia terá de ser experimentação.

No poema Introdução ao Tempo, de Luiza Neto Jorge, também esse poder evocativo nos aparece com especial incandescência logo no primeiro verso: “Façamos greve de tempo”. Da ordem do apelo/manifesto, e não do ideológico que se confinará, mais cedo ou mais tarde, ao programado, a relação com o temporalizado, neste caso, não se faz necessariamente através da imobilização. E também não se enceta com a representatividade que imita, na medida em que neste poema o tempo nunca se dá a ver enquanto significado.

Através de instâncias concretas – e não lineares – como sejam “pulmões”, “olhos”, “mar”, “papoilas”, entre outras, o poema de Luiza Neto Jorge dissemina esses mesmos elementos em cruzamentos de modo a poderem encontrar-se; contudo, esse encontro evidencia incontáveis tons. Quando lemos “Porque ficou oceânico/ o escasso momento de nós?”, a composição faz-se por antinomia e não tanto graças a qualquer disjunção: ao tentar medir-se o incomensurável, o tempo torna-se compacto e por isso infecundo, daí o empenho em primeira linha no esforço de suspensão através da tal greve de tempo. “Fechemos os olhos dentro”, i.e., não que nos tornemos cegos mas que se estabeleçam condições para a inflexão, para a conexão entre múltiplos modos de existência temporal no mundo. É que não parece tratar-se de um vamos parar o tempo (negação ingénua do mesmo), mas antes daquela abertura iniciada e susceptível de admitir o acentuar do acontecimento: “Quando as papoilas tiverem searas (…) Quando nós formos outrora”. Passado-presente-futuro, não diluídos no unívoco, mas prolongados singularmente na desestabilização de uma relação com a vida, se feita através da estruturação.

Ao tratar-se de uma “Introdução”, cremos que constituiria uma leitura superficial e enganadora encarar este poema enquanto regulamentação de um estar no mundo, consequentemente, calculado. Pelo contrário, o poema circula des-apropriando: “no ar um tempo frustre/a sequência dos sons/perdidos nos degraus”. O inesgotável da escrita da poesia apresenta-se a-sistemático, já  que aí a linguagem desagrega o ruído, precipita a retoma e promove o novo: a linguagem (poética) cria porque se põe em frente à realidade, faz parte integrante dela. Nos últimos versos deparamo-nos com a inconclusividade da poesia, que nem à metáfora pode estar agrilhoada: “Simples é a dor/e nós, nascidos”.

 Corpo sem organismo, este Introdução ao Tempo acrescenta a sensação que propaga e, por isso, contesta o positivismo da significação, sem, todavia, cair na ignorância (ausência de relação) com o que de mais repetidamente interage com o humano, a saber, a experiência e o conhecimento temporais e, em certa medida, temporalizados. É por isso que o poema de Luiza Neto Jorge diz o tempo com a precisão do devir: “quando o sonho for granito.”

 


Introdução ao Tempo

I

Façamos greve de tempo

De pulmões castos não respiremos
As folhas trágicas veias
podem cair
Fechemos os olhos dentro

II

quando o sonho for granito
quando o mar em cinza desvendar
as plumas inúteis das gaivotas
quando a espuma depuser velas
longínquas sobre a areia
e das pontes cair o derradeiro homem

quando as papoilas tiverem searas
as janelas absortas mortalhas de luz
quando nós formos outrora
quando o luto marcar as ancas verdadeiras

III

Porque ficou oceânico
o escasso momento de nós?

Escorríamos pelas mãos
insatisfeitas e límpidas
nascentes
no ar um tempo frustre
a sequência dos sons
perdidos nos degraus

Simples é a dor
e nós, nascidos

Agustina e a adopção completa do fogo

João Vuvu, personagem principal de Vai e Vem, de João César Monteiro, diz a Fausta que “o mundo das quimeras” cheira a “mofo”. 

Em Agustina Bessa-Luís, também os discursos emancipadores sofrem um desmantelamento intenso, uma vez que postulam uma redução do humano que, mais do que absurda, é perigosa: a amálgama, pretensamente generosa e benéfica da igualdade, aniquila a capacidade de transfiguração, em grande medida assente nas estrias provocadas pelo atrito. A individualidade, e não o individualismo como algumas leituras precipitadas fazem crer, é o que aparece preservado na obra da autora.

Por definição, todos as incontáveis rotas levadas a cabo nos livros de Agustina só admitem uma aproximação que se faça de frente, i.e., a transversalidade acarreta sempre a desconsideração de algumas características demasiado importantes: passar por cima do caos não é, no fundo, relacionarmo-nos com ele. Escolhemos, por isso, a personagem Amélia, de O Sermão do Fogo (1962). 

Lemos que “(...) a vida humana significa só duas coisas: resistência e desistência. Entre uma e outra, quanta palavra inútil e sentimentos escusados” (p. 162). Ora, essa é a inscrição de Amélia no mundo: resistência que é levada a cabo enquanto prerrogativa, ou seja, como potencialidade ou hipótese. O que não a faz desaguar na mera gratuitidade da abertura que tudo se dispõe a agregar: Amélia vai densificando a sua experimentação tendo como “bandeira” a “esperança”.

Prometeu, segundo Ésquilo, deu aos humanos não apenas o fogo mas também, muito especialmente, a esperança; e a esperança e o fogo (aqui, esperança-fogo) animam igualmente a questionação do Logos por parte de Heráclito. Todavia, aí - e neste Sermão - “esperança” não se insere num autismo ou sequer paliativo como resposta à realidade: é pela esperança, pelo assumir da liberdade e dos seus riscos, que Amélia incorpora o Pathos e fustiga os alicerces do determinismo. Daí que o combate por parte dessa pulsão de rompimento em Amélia se trave quer contra lógicas de eficácia – pós-modernismo e o apagar da diferença graças ao significante –, quer contra enunciados mitificadores – oráculo inquestionável e o dogma hermenêutico da essencialidade. Mas também não será o meio-termo: é “irromper pelo meio”, pegando na expressão de Deleuze.

Com efeito, Amélia ao perguntar “Mas o que é natural senão a uniformidade, e, de qualquer maneira, o descentrarmo-nos do fogo?” (p. 229), identifica com clareza aquele que é para si o motivo do amesquinhamento do carácter humano. E só uma personagem em constante contacto com o Outro consegue aperceber-se disso mesmo, daí que a postura de Amélia seja tudo menos alheada: é, pelo contrário, comprometida. 

O poder da relação dialógica com Maria Consolata é outro testemunho das cesuras através das quais Amélia vivencia o mundo: “O seu demónio mais pertinaz tinha sido enfim domado, e ela sabia que com ele se retiravam as mais profundas cláusulas do medo e da tristeza. A inconstância deixava enfim o seu coração, e havia nela agora uma identidade com Maria Consolata (…)” (p. 271). Aqui, não parece ser à derrota que se alude mas sim à superação da volatilidade dos temperamentos débeis. A criação de linhas de vida exige a elasticidade da deriva e, simultaneamente, a prudência anti-dissolução, uma vez que a desmesura anula, originando linhas de morte: a vontade de experienciar – obrigatória - convive com a imprevisibilidade.

Assim, a protagonista do romance O Sermão do Fogo ao fugir da tipificação literária canónica, serve de paradigma da insubmissão: “A vida, porém, aceite nessa nudez, a adopção completa do fogo, sem nomes líricos e sem fraternidades, a vida destacada em cada um na sua forma absoluta, isso é que faz as criaturas fantasmas divagadores.” (p. 192). Amélia, anti-Medusa, move-se pela procura instransigente do “ verdadeiro estado, alucinante estado de liberdade em que só o amor pode salvar” (p. 277).

Obra de paradoxo e de desafios éticos, a escrita de Agustina Bessa-Luís tem somente uma lição a dar-nos: a de que a atitude de recusa, para ter amplitude, carece da disponibilidade para o inapropriável, como acontece com a vida e com a Literatura

O som e a fúria

 Ao Tiago, amigo-irmão 

 

Como é geralmente considerado, Thomas Hobbes descreve o estado natural do Homem como um todos contra todos apenas apaziguado por um estado-leviatã, i.e., despótico ou, pelo menos, consideravelmente dominador. A descrença, vista como realística porque provada, justifica a inibição. Assim, contradizer a resignação será um fracasso, e a liberdade acaba por fatalmente dar lugar à mortificação do temperamento. Deste modo, o empirismo de Hobbes contextualiza e pressupõe a paralisia que é, scricto sensu, a ausência de movimento ou de gesto. 

Ora, Eleutheria (λευθερία), étimo da palavra “liberdade”, era para os gregos a liberdade de movimento, recusa de restrições que pretendessem manietar ou prender, literalmente, o corpo. Era também outra das denominações da deusa Ártemis. Claro está que o estado-natureza hobbesiano não prevê, menos ainda preconiza, o cativeiro; porém, como bem se nota, assenta namenorização emocional/emotiva, desligando o humano ao torná-lo encerrado, incomunicável. 

Concretamente, a dança era na Antiga Grécia não um mero vector, mas uma instância privilegiada de ligação ao patamar do imortal, ou seja, ao divino, como atestam as Leis platónicas. Os ritos iniciáticos dos deuses constituíam-se em grande medida dançando – Elêusis, Bacantes, etc. Aí a harmonia estabelecia-se pelo contacto humano, irredutível expressão a-temporal: a dança recusaria o apartar hobbesiano, por exemplo. A mutilação regenera-se e a propensão bélica inata ao ser humano não tem cabimento graças à convergência com a alteridade. 

A potente controversão de um qualquer estado de hostilidade latente só é possível graças a um compromisso intransigente de respeito pelo Outro. O ser diferente, entendido enquanto parte integrante daquela coerência na dissonância que se demarca do unanimismo a-crítico, só pode favorecer a criação do que é realmente novo. É por isso que o Lux Frágil, desde 1998, (re)afirma realmente um dos desejos mais eminentemente endógenos do ser humano: esse privilégio individual, mas não individualista, que é a liberdade. Para uns poderá ser catárctico, para outros paliativo; para mim o Lux é bem mais do que isso: é um encontro directo e vivo com a liberdade, essa que rejeita liminarmente anarquia e dogma. Ali, o salto é o que a entrega pressupõe, i.e., o desencadear do movimento, a negação do gueto. Nos espaços denominados de “diversão nocturna”, a vulgaridade e a mesmice não têm de ser uma inevitabilidade, muito menos um modelo que crie cópia e descendência. 

Desse modo, o Lux reivindica o singular numa aprendizagem através do incerto: o mundo em vez de qualquer promessa de paraíso. O ritmo proveniente das linhas de fuga melódicas e visuais, a dança que é simples dádiva sem interpretação, fúria que é indisponível modo de experimentar. Como no verso de Herberto Helder: “Não se pode tocar na dança.”