Rebanhos rebeldes; Relógios; Teologia para peixes; Meditações metalinguísticas

Rebanhos rebeldes

Almas desesperadas eu vos amo.
Murilo Mendes, Mapa

Isto não é um poema.
Isto é uma compilação
de bilhetes suicidas.

Homens aflitos,
meus irmãos de lama,
emprestai-me

        vossos oráculos.

Anjos degredados das Américas,

ex-votos irrecuperáveis,
andrajos em romaria,
somos a membrana esticada sobre o fuste,
não o som que o tambor produz.

Gloriosas vozes da África,

    o que é o talento
        para os acumuladores compulsivos?

– Ave, parricidas sanguinários!
– Ave, renitente pedra de Sísifo!
– Ave, Imperator, morituri te salutant!

Totens – sem tabus – da Europa,

cujas fornalhas devoram
os melhores exemplares
das melhores estirpes
                e cospem

    peles & ossos & falos
            condecorados,

lede, na fachada
das repartições públicas
e nas sedes
das burocracias,
as austeras letras garrafais:

        ARBEIT MACHT FREI.

Sábios camaleônicos da Ásia,
Crusoés tatuados da Oceania,

Manoel de Barros está morto.
E morreu porque ainda preferimos
a funcionalidade dos manuais de especulação financeira
à beleza humilde

                das lagartas.

Inércia, meu único destino.
Inércia, o único destino dos homens
de meu tempo, de meus iguais.
Ao menos, conforta-me a fantasia de que os mártires também
teriam lamentado a partida definitiva do poeta se tivessem
idade suficiente para entender o que ela representa.

Gondwanas tresloucadas,
Laurásias perplexas,

em uma surrada tira de papel, designei-vos
algumas tarefas:

    1. arrancar da mão do professor misericordioso o giz;
    2. ressuscitar Lázaro;
    3. trocar a lâmpada queimada no quarto de hóspedes;
    4. do barro, fazer um deus que se admita negligente.

Sou aquele a quem tentam convencer
de que não sou,
uma palavra à qual se impõe

                univocidade.

Falsas Pangeias globalizadas,

deixai-me admirar, delirantes
como magníficas alucinações,

    as hecatombes.

Ei-las, à sombra imortal
das pirâmides do tempo,

    as hecatombes!


Relógios


All those times I was bored
out of my mind.

Margaret Atwood, Bored


Em cima do piano, eis um relógio. A cada rotação,
                seus ponteiros
                    me massacram.

    Alguém me fala sobre doenças
    e sobre consultas médicas, 
    sobre planos de saúde
    e sobre seguros de vida.

Alguém me fala sobre os preços dos remédios,
        que aumentaram por causa dos altos índices
                        de inflação.

            Alguém me fala sobre meus amigos;
e, ao que parece, quase todos já honraram
    o famigerado axioma bíblico: ao pó retornaram.

            Alguém me fala sobre reencarnação.

        E salienta que, de acordo com determinadas
                            [religiões,
o fenômeno do crescimento vegetativo a nível mundial
                explica-se
            com base na transmigração dos espíritos.

    Confesso: com o fim do espaço público,
    a ideia de um amplo câmbio interplanetário de almas
    (versus a intimidade de minha casa)
                    me tira o sono.

        Prefiro ser enganado pelas manchetes
        e pelos anúncios publicitários
        de meu próprio planeta.
        Prefiro os mortos
        de meu próprio planeta.
        Prefiro também os relógios cruéis
        de meu próprio planeta,

muito embora suas engrenagens,
gáveas de presas anônimas,
ainda conspirem por minha capitulação,
independentemente de qualquer teoria fabulosa
acerca do além-túmulo.

            A arquitetura da tabacaria
            é rude, quase vulgar,
            mas preciso reconhecer: tê-la,
            em sua frouxa metafísica, põe
            minhas cicatrizes em estado
            de graça.

    Olho para mim.
    Olho para meus mortos.
    Olho para o relógio em cima do piano.
    Que tédio.


Teologia para peixes


Minhas nadadeiras, na forma de arpéus,
Enfrentam as surdas correntes do mar.
Arrastando grãos de sal e de areia,
Guelras e escamas seguem a riscar
As águas turvas, a noite cheia.

Dou meio giro, viro-me e miro,
No rosto do céu, sardas prateadas.
Abre-se a mim constelada cidade;
Porém, peixe genioso, prefiro as arcadas
Do santuário devotado à eternidade

Que os pescadores, funestos algozes,
Conhecem pelo nome de estaleiro.
Suas sólidas vigas de ferro fundido
Formam o mapa de um reino estrangeiro,
Abstração cartográfica de autor esquecido.

Confabulemos, companheiros de cardume:
O que são pontos acesos em infinita
Abóbada, isolados, intangíveis, distantes,
Se comparados ao espetáculo que agita
A razão de todos nós, os navegantes?

Pois se volto contra o inquebrantável
Colosso a ponta de meu atrevido nariz,
Tremo em ardoroso, íntimo clamor.
Suas luzes são raras crisálidas febris
A pender das pálpebras do Criador.

E que Criador seria esse, ó mar confidente,
Se me assalta a nítida impressão de que fora
O próprio estaleiro o artesão de todas as coisas?
Perdoe-me tamanho desabafo, mas a aurora,
Quando desponta, sujeita-me a tão duras inquisas.


Meditações metalinguísticas


[ a ]

Fazer poesia é observar a criança levar
a maçã madura à boca e mordê-la
com excepcional ímpeto.

Fazer poesia é dizer à criança da estrofe
anterior: menino, tome cuidado que,
se cair na roupa, deixa nódoa.

Fazer poesia é pendurar os versos
no varal, oferecê-los ao Sol, esperá-los secar;
e, depois, retirá-los, um a um, para sentir
o cheiro fresco de lavanda, que é efeito
do novo amaciante.

[ b ]

Fazer poesia é desfazer nós na garganta
e atá-los e desfazê-los novamente,
sucessivamente, remexidamente,
até a corda puir e sobrar apenas
a garganta.

[ c ]

Fazer poesia é sair à rua para cometer
pequenos delitos, como surrupiar
o volume de preço astronômico que
acumula poeira na estante da livraria.

[ d ]

Fazer poesia é desvendar a paixão
que esteia os sobreviventes
das grandes catástrofes
        – mistério telúrico.

[ e ]

Fazer poesia é saber a hora de parar de
fazer poesia é saber a hora de parar de
fazer poesia.


entre certos instantes de brahms e uma cloaca, III; Copérnico; Radar

entre certos instantes de brahms e uma cloaca, III

O curumim se pendura no avental de Hera
para tentar escalar suas tranças graciosas.
E são fundadas acrópoles a partir dos inefáveis
desejos humanos,
as caçarolas de alumínio
sobre bocas de dragões furiosos.
O contorno da romã se desfaz
em linhas,
e o curumim consegue, afinal,
vislumbrar os paralelos que fatiam
a superfície do planeta.
Como é fácil se encantar pelos Trópicos!
Gira-se a torneira
e a água molda o espaço,
e a água molda as ideias & os sentidos
do curumim.
O ralo da pia bebe vastos açudes de provações
e desaparece.
A carne plástica das dobras do sifão
recobre o túnel de aros de uma tranqueia
esganada.

            “Incêndio em mares de água disfarçado!
            Rio de neve em fogo convertido!”

Hera senta
o curumim à mesa, serve
o almoço e reza
pela alma do marido,
que deu o couro às varas
faz poucas semanas.
                        Sim:
todos respondemos pelas escolhas
daqueles que pisaram estas campanhas
estéreis antes de nós.
                        Sim: 
nossos escritos são medíocres
reproduções dos palimpsestos que abarrotam
a biblioteca suspensa pela sobreposição
dos anos.
                        Sim:
este cheiro de serragem molhada,
que tanto me incomoda as narinas
sensíveis ao fracasso, também atordoará
os belos deuses do futuro.

E o curumim marcha entre trovões.


Copérnico

Com o intuito de estancar a sede irresistível
que me pôs acordado
        no momento exato do alvorecer,
recorro ao catálogo das variedades
            anarquicamente dispostas
    nos compartimentos da geladeira.

Deparo-me com uma jarra de vidro
                quase vazia.

No fundo desse crisol ilegítimo,
    a emular o resultado
    de ensaios químicos frustrados,
    o resto do suco de laranja
    que eu mesmo havia preparado
    antes de dormir.

Uma quantidade ínfima do líquido
em cuja acidez estão concentradas
        todas as minhas perversas manias.

                Ralho comigo. 

Por que não bebera tudo de uma só vez?
Por que guardara o último gole
            para depois?

Preocupo-me somente
        com as sobras,
        com os resíduos,
        com os resquícios.
        A abundância das horas, deixo-a

aos que ainda esperam muito da vida,
aos que anseiam por algum clímax
ou por alguma absolvição,
aos que não puderam estar presentes
no velório de Ivan Ilitch.

Meus inimigos dizem que não tenho ambições.
    E eles têm razão.
    (Eu não quero ter razão.)

Prefiro o resto do suco de laranja
à revolução da laranjeira,

        espécie ímpar em um bestiário
        de leviandades,
        utopia petulante a servir-se
        de uma filigrana lexical

que ora descreve
a mecânica dos corpos celestes,
ora retém
o anelo dos corpos históricos
por mudanças drásticas.

Mal sabem os filólogos ocidentais que, 

            em termos ontológicos,

não há diferença
entre a lente arguta do telescópio
& a lâmina implacável da guilhotina.

                A tradução da liturgia
                na diagonal deve ser feita
                porque graça não há
                em seguir da ordem canônica
                a tradição (da liturgia).

    Se a guerra & a poesia
    constituem, por excelência,
    os espaços de negação
    do tempo e dos arquétipos
    partidos que veneramos,

            os restos já são, por si, revolucionários.


Radar


O evento cósmico que, segundo o âncora do principal
                    [noticiário do país,
era apenas um clarão no céu,

                    chaga & recorte,

            rompeu a atmosfera

        e fez um buraco
                na terra
        e fez um buraco
                na menina
        e fez um buraco
                nos segredos da atriz,

    um fragmento de meteoro agarrado à pele-película
                    [sob tuas unhas pintadas,
    espada de um Dâmocles sideral em rota de colisão
            [com tua cabeça perfeitamente redonda.

Naquele dia quente,
naquele simpósio organizado pelo Departamento
                        [de Astronomia,
além de ter me confidenciado
tuas maiores inquietações, disseras:

                    olhe,

    sou mãos de mulher & pernas de centauro
                        [& caráter de pirata.

                Concordo com a última parte.

Gostaria de te apresentar a meus pais,
porém sei que tu danarias a discorrer sobre as vantagens
do neoliberalismo,
sendo que os velhos ainda choram

        a perda do camarada Lênin
        & os mais de noventa soviéticos mortos
        no naufrágio do K-129
        & a implementação da Perestroika.

Também sei que te aborrece meu hábito arcaico de utilizar
a segunda pessoa do singular em qualquer conversa,
e eu nada posso fazer quanto a isso.

            O inquilino paranoico do n° 105
            me fala que eu deveria te pedir
                        [em casamento

porque és uma moça muito bonita porque aparentas ser uma boa cozinheira porque te vestes bem porque não tens planos fúteis porque escreves de forma legível porque, embora as qualidades que ele te atribuiu não me sejam caras, tenho orgulho de ti.

    Abro o escaninho
    à procura de faturas vincendas,
    e me surpreendo
    com um telegrama
    que anuncia:

ESTA NOITE.
ECLIPSE LUNAR.
APRECIÁVEL A OLHO NU.

                    Silhuetas metálicas.

                E a Lua vai se alojar sob tuas unhas
                        [quando sentires medo.
                Imagina as crateras da Lua sob tuas unhas
                                [roídas.
                O eclipse & o meteoro,
                simultaneamente.

Imagina, menina atriz, essas
unhas roídas e sujas como
espadas de um Dâmocles
soviético, como letras
legíveis, tão siderais.
Imagina a terra que
preenche todos os
teus segredos e
deixa chover
sobre ela.
Imagina
a Lua.