Vox propria (Um homem e um pássaro de barro)

Vox propria (Um homem e um pássaro de barro)
Pedro Braga Falcão

Estava à espera deste momento sabes

há anos ou já há tanto tempo que o tempo

tem ângulos ou um calafrio ou morto

há anos levava tempo demais

posso tratar-te por tu deverei?

tempo demais para te fazer ver aqui fingido

aqui bem fingido como a minha letra que te afaga

e te ilude e te deforma e te escrutina

tinhas ou tens porque para quem escreve é o mesmo

já muito tempo e pegas numa coisa de barro

e finges que é um pássaro ou ao contrário

quem sabe agora que estás escrito bem podiam

ser todas as aves do mundo ou um deus

que decidiu descarnar num voo de elefante

e rebentavas a tarde com o cheiro de um pássaro

de barro ou o seu som tão cheio de água

como outra coisa qualquer tinhas barros nos lábios

e um pássaro que se diria mecânico se voz tivesse

e mesmo junto por cima por dentro ou ao lado

centenas milhares ou mesmo duas ou uma

criança parecia que ouvia um pássaro de barro

e olhava e contava a mesma história dos pais

tenho de ter aquilo por aquilo e a tua mulher

porque tens sempre uma mulher que ainda não morreu

não percebes estás aqui fechado estás aqui no barro

fingido em qualquer recuo da rua em qualquer criança

que te crava o olhar com a mesma força

com a mesma força com que forjaste o teu banco

da tua mulher que puseste junto ao parque no infinito

da queda como se parasses todos os momentos

todos os momentos do barro numa ave entre crianças

entre berros entre birras e as cultivasses com o seu voo

que as aves o seu canto há muito tempo

seriam anos ou dias ou segundos ou o mundo

já há muito tempo eram barro cozido

domesticado reduzido aos teus lábios que o sopravam.

(Olivier Messiaen, Livre d'orgue: No. 4, Chants d'oiseaux)

 

Vox propria (Phantasia a seis)

Phantasias commigo
Pedro Braga Falcão

Phantasias commigo mas não tens seis

não tens seis que excappam à vez e nem se

nem se o Thamisa fosse outra torre seriam septe

por isso aspiras e manténs-te devagar trauliteira

que à frente sempre se dorme melhor e respiras

não que respirasse fosse melhor commigo na altura

descaías sempre que phantasiavas e desferias

círculos no ar não que houvesse rios nem pedras

tudo o que atirávamos aos círculos rodava

não porque não tivessem geometrias apenas

apenas o sabíamos apanhar quando tocavam

no chão no chão lembras-te de lá estarmos

do outro lado da terra do lado das libações

de sentirmos na pelle o phantasma dos outros

dos mortais dos cadáveres dos prontos

a virem ter connosco não que os esperássemos

não que isto não que aquillo não somos deuses

ou melhor não és deusa nenhuma phantasias

como sempre fizeste mas só quando se põe o sol

que antes estás dentro das trevas engolliste as trevas

e tens aquele ar de quem já passou por isto

quando phantasio contigo já não tens seios

vives na tua cabeça que não tem phantasmas

escorre ao longo do rio com ar de ribeiro

mas quando tens sede phantasias commigo e eu

do outro lado da ilha ignoro-te como sempre

como sempre fiz desde criança quando soube

que estavas phantasiosa phantasma phantástica

como quando as florestas não ardem ou divagam

como fraccas estudantes de aenigmas e reclamas

reclamas agora pelos seis pelas seis phantasias

e pelo pobre Thamisa que te tropeçou te escandalizou

com os seus cemitérios mas lembra-te dos milhões

que nunca se enterraram não que os não amassem

mas porque morreram ao sol e à chuva

e mesmo assim talvez nunca tivessem phantasiado

commigo que os abriguei da chuva milhões de annos

milhões de annos depois nos meus versos mas tu

tu já não phantasias commigo caíste na noite

que eu formei nos teus lábios mesmo que os não

que os não pintasses com a mesma phantasia dos teus olhos

e ainda assim quase pathético quase moderno

deixei que a minha letra pousasse em ti

e deixei que me deixasses um nome o meu

e que me phantasiasses como só tu na névoa

poderias dizer acerca deste infinito.

 

(Orlando Gibbons, Fantazia in G minor a 6 (32), L’Achéron)

Eis mousikên (para voz própria)

Pedes-me que te resguarde da escuridão
Pedro Braga Falcão

(Pedes-me que te resguarde da escuridão

mas entras-me nas veias e paras

onde te ilumina o silêncio

e dizes suplicas toda a poesia morre

e enquanto me bate o coração escureces

e fazes três sombras quando era jovem.

Disseste arrepiei-me e guardaste-me

porque lá havia sempre uma janela

por onde sempre deixaste entrar o sol

e um gato sempre houve um gato

no resguardo da escuridão e dizias

ainda hoje te peço um resguardo da escuridão

mesmo quando estamos sós ou lentos

e tropeças no meu sorriso forçado

porque tenho os lábios cansados de fingir

que te conheço que te sei que te meço

quando sempre me deixaste em contraponto

com um resto de floresta de um pinheiro

que se desfez em caruncho e se enterrou

onde nunca nada cresceu e resguardo-me

resguarda-me peço-te desta morte mórbida

que em nada morre não porque não veja

não porque não tenha fé mas porque sabes

que qualquer palavra é um gesto possível

que nunca alcança o deus que te repousa

e te reúne por mim por isso me dizes

protege-me desta noite protege-me desta noite

e tu bem sabes tu bem sabes

andamos assim há já algum tempo

sem contraponto sem forma sem pulso

ao menos disso tivemos coragem

até aquele quintal em que refizeste

o meu passado o meu passado ouviste

e deixaste-me lá parado procurando abrigo

e agora agora meu amor pedes-me

que te resguarde da escuridão agora

agora mesmo que todo o tempo

me rouba as entranhas me entra no quarto

onde sempre há um gato um simples gato

que rouba as entranhas de quase todo

de quase todo o tempo e ainda te suplico

salva-me resguarda-me da escuridão

mas tu murchas como sempre murcha

a semente a caminho da brusquidão

do impossível do inconcebível e gritas

como gritas comigo como se eu soubesse

menos de escuridão do que tu como se

como se eu não te chegasse como se nunca

como se nunca te tivesse dito carrega-me

resguarda-me desta solidão atira-me

atira-me tão longe quanto possam meus braços

e que caibam neles a tempestade.)

Not me

Artur,

 

   lembro-me de ti, estarias sentado ou serias a escada em que te sentavas? desculpa-me a pergunta, hoje acho que é parva, na altura julguei que a escada se tinha desmoronado em ti, ainda sinto os degraus. 

 

   A primeira coisa que te disse?... há coisas primeiras?... julguei que tinhas pouca experiência nestas coisas do “eu era” ou do “quando”... eu não estava aqui, ainda não estava aqui, tinha-te aclamado, e distorcido a tua voz a um ponto em que não tinhas degraus (ou serias uma escada?).

 

   Disseste-me: “sou um amigo”.

 

   Um amigo?... Fiquei embrulhada. Olhei-te nos olhos, havia algo de estranho nos teus olhos, reflectiam demasiada coisa, ou eram demasiado mortos... e então, bateu-me, é claro, pensei que já tinhas morrido, há muito, muito tempo. Não posso dizer que não estivesse surpreendida. Soube que todas as histórias, desde agora, começariam por “há muito tempo”, porque de facto tinham tempo demais. Por isso me senti sozinha, porque estava sozinha contigo, há muito, muito tempo.

 

   Vieste? Sorri com a tua arrogância de cometa: não fui eu, disseste, enquanto destruías lá de cima todos os astros que alguma vez caíram. “Nunca perdi o controlo”, como se fosses filho do sol, ou coisa assim. Olhei-te nos olhos: vendeste o mundo por um punhado de ideias. Imbecil. Dei-te a mão, um inócuo passa-bem, e voltei a casa com a tua arrogância na cabeça. Filho do sol o caralho. E durante anos aquilo ficou-me na cabeça, o filho do sol, quem diria, durante anos olhei-te com um olhar parado, e quando dei por mim estava a caminhar contigo durante um milhão de anos.

 

   Disseste: “agora estamos mortos juntos”.

 

   E ninguém nos disse. Quem sabe?... Eu não. Nunca perdi o controlo, especialmente quando falei com os teus olhos, há muito, muito tempo, como todas as histórias que morreram antes de nós, antes de teres vendido o mundo para dares umas voltas no carro do teu pai. Com o homem que vendeu o mundo. Olhos nos olhos.

 

Desculpa.

 

Isabel

Isabel responde a Artur

Artur,

 

 

   Artur, Artur, como estava enganada. Nesse quarto escuro tu não me tiraste a virgindade, tu emprestaste-ma. Lembras-te talvez das paredes cheias de mofo, daquela cadeira empoeirada e coçada, desfeita, da tua cama que rangia sem consequência?

   Pois eu lembro-me de ti. Lembro-me de estares gordo, não de seres. Lembro-me dos teus olhos castanhos. Sempre disseste que eram banais. Não percebes nada de mulheres.

   Nunca te perguntei se era feliz? Pergunto-te agora: sou feliz?

   Os meus filhos estão quase a chegar a casa, cheios de merda na cabeça, espetaram-lhes os mallsno fígado e agora cospem prendas baratas, têm vírgulas nos crânios e enfrascam-se contra as paredes, mesmo sem carro. Boston é nojenta. Não tenhas dúvidas. É nojenta. Detesto americanos, e agora sou um deles. Que horror.

   E o meu marido é mais flácido do que tu. E fode bastante menos que tu, ainda bem. Tu ao menos davas-te ao trabalho de fingir que estavas comigo. Ele, nem por isso.

   Sou feliz? Nunca te perguntei se era feliz?... E é agora que o dizes!... Agora!... Agora?... Não tenho medo, ou melhor, duvido que tenha medo de te escrever, como sempre te escrevi. É que nessa tarde já me tinhas perdido. Naquele café, que tu tão bem descreveste. Perdi-te até no empregado. Não me lembro do cão, estava demasiado preocupada com o resto da tarde. Só tu para olhares para a merda do cão. Ah, mas demorei anos a perceber; não era, não era, não era nem virgem antes de te conhecer, nem qualquer outra coisa. E, no entanto, deste-me algum tipo de pureza – não aquela pureza parva dos homens que tentam o mundo sem o penduricalho que lhes entristece as pernas – não, deste-me o peso do teu corpo. Aí percebi que gostava de homens. E que tu nem de mulheres nem de homens. Mas isso, Artur, não faz de ti o infeliz que pensas que és. Também tu tens algo de estupidamente feliz em ti: não és perfeitamente infeliz.

   Sou feliz?

   Idiota.

   Sempre fui feliz ao teu lado. Não percebes nada de mulheres. Nada. Deve ser por isso que és tão gordo. Mas nem que fosses perfeitamente gordo serias totalmente infeliz. E se calhar nem te lembras, que digo eu?, claro que não te lembras, de como o fizeste. Como de facto foi. Lembras-te da cama, do quarto, do mofo, do cheiro, do raio do cão, do empregado de café, de tudo, menos do que aconteceu. O que aconteceu? Despimo-nos um ao outro. Beijámo-nos. Eu sei que tu fingias beijar, querias saber se eu queria ou não fazer aquilo. Eu não. Eu beijava-te. Não pusemos música. Deitamo-nos. Abri as pernas. Puseste-te em cima de mim. Beijavas-me, sempre a fingir, e perguntaste-me milhares de vezes se eu tinha a certeza. Que porra. Claro que sim. Não percebes nada de mulheres. Senti o teu corpo e mais do que a ti, uma dor intensa. Desapareceste e deste lugar àquela dor, mas continuaste lá com ar culpado. Foi aí que percebi que não era virgem. Que nunca fui virgem desde que me conheço.

   Se sou feliz?

   Ainda agora quase me matei a beber. Uísque, cerveja, que o vinho aqui fica muito caro. Os meus filhos nem percebem que estou bêbeda. O John muito menos. Tinha que se chamar John, pois está claro. John. Banal, banal, banal.

   Se sou feliz?

   Não me ofendas, gorducho, fofinho. Não percebes nada de mulheres.

 

 

   Isabel

 

P.S.

 

vai-te tratar