O diabo em forma de prostituta

 

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“Cervejola rasca”, ajuizou Rodrigues, torcendo o nariz e escarrando fininho para o balde do lixo plantado meio metro ao lado da lambisgoia que lhe fisgara duas notas de gorjeta. Que zurrapa, a cerveja, nem para bochechar, ou varrer a comida dos dentes, prestava. “Traz-me outra, toucinho”, berrou, e o colosso de oitenta quilos chapou-lhe mesmo no queixo fresquinha garrafa de xarope de cevada. Esteta, analista de erotismos, Rodrigues bufou ao ouvido de transeunte no balcão acotovelado, não fosse a testa bêbeda acertar em sítio que doesse, que contemplar a boneca dançando, abanando os pneus de caminhão que faziam de barriga, era como mirar múmias com a expectativa de ganhar erecção.

Rodrigues cuspia fininho, não perdendo de vista os seus objectivos: encher o caldeiro de verde muco, dobrar nota entre os seios de garina de sexo fácil, beber até esquecer que o dia presente havia sido pior do que o dia anterior, que, descendo degrau a degrau, o seu caminho inclinadamente se nublava. “Esta música tola mói-me o juízo”, comentou para ninguém ouvir, entre o atirar de amendoim para a goela e uma chupada no cigarro. Música pateta de mexicano ou dominicano ou outra mistela de semelhante envergadura, com ritmos de mexericar a anca, com falsetes dignos de raspar as orelhas numa parede até ensurdecer. Um estábulo autêntico. Choldra abastecida de camionistas e pedreiros e pintores e badalhocas, horrendas e gordurosas peruas que lhe traziam um inverno antártico ao órgão sexual. Que fazia ali ele, poeta da cena real, editor do destino, professor de galdérias, artista de banalidades, intelectual de água barrenta, que fazia ali tão eminente figura? “Ainda não ganhei o Nobel.” Rodrigues, o cérebro, o génio por detrás de tantos génios, inato influenciador de mentecaptos, cultor de escrita pós-Joyce, de pensar pós-Barthes. Que se encontrava naquela estrebaria a fazer essa eminência, para além de se desgraçar? Afundava o nariz na bebida a ver se perdia de vista a obsessão pelo fracasso de, cinquenta anos após ter sido metido no mundo pela figura divina de Deus Nosso Senhor, permanecer ainda vinculado a duas situações que lhe chamavam o cano da pistola à boca: o casamento com Raquel, a Mata Pénis (nas redondezas era assim que denominavam a ninfomaníaca), e o trabalho de quarenta e cinco horas semanais na carpintaria de Xavier, cavalheiro deveras idoso que, convencido de que entraria no Céu carregando o quinhão amealhado em vida, evitava despender mais do que zero em salários.

Ainda que lhe esfregasse os seios na mão que prendia o dinheiro, a boneca hispânica não botaria outra garrafa à frente de Rodrigues. “Não me embebedas hoje”, rosnava. Nem pensar em bebedeiras, em esfrangalhar o resto do dinheiro, em acordar no dia seguinte atolado em gordura de mulher feia. Rodrigues enfurecia-se medindo o tédio, revistando os bolsos vazios, mirando mulheres boçais como a sua Raquel, esposa de tão merecida má fama, que àquela precisa hora deambularia por aí, em rituais de acasalamento com outro, ou outros, cada um mais imbecil e asqueroso do que o outro. Ele, cobarde, acabrunhado, aos escarros num balde, disparando cascas de amendoim para o decote da peçonhenta, mergulhava em nuvens depressivas. Escrever. Havia escrito uma historinha ainda moço e pouco mais. Uma frase aqui, uns versitos ali. Escreveria sobre o raio da esposa, sobre traição, facadas nas costas e degredos. O tanas é que escreveria. Ela não lhe merecia tanta consideração. “Ainda serei do tamanho do Camões”, afirmou, fazendo-se acompanhar por estalada no rabiosque da mulher e nova cuspidela para o balde.

 

Uma viagem de carro para a Carolina do Norte

Ouvi, certa vez, de professor algo irrelevante no que diz respeito ao meu desenvolvimento intelectual – não é mentira que não me recordo da aparência física ou do nome deste professor, mas também não é mentira que estar sentado na sala de aula, naquelas bafientas salas de aula lisboetas em que não se punha em causa a sapiência ou a autoridade, em que nos sentávamos a fingir respeito extremo por aqueles intocáveis intelectuais, era razão para ler os romances que não lia na rua-, que qualquer trabalho académico começa com questões. Não sei ainda se esse questionar académico tem relação com a vida prática, uma vez que me parece incompatível atingir paz de espírito e, ao mesmo tempo, procurar respostas e sentidos para uma vida pouco atreita a racionalizações. Porém, quando, há duas ou três semanas, decidir mudar de posto de trabalho e, por conseguinte, de casa, de cidade e de Estado, uma primeira pergunta me aguçou a curiosidade: como seria viajar de carro de Newark para Chapel Hill, na Carolina do Norte?

Dir-me-ia o tal professor, sulfatador de banalidades, que procuramos fontes para responder a interrogações. Quiçá viver consista, entre outra coisas vãs, em procurar razões que anulem a vontade de responder a tão essencial pergunta: que faço aqui nesta terra, neste planeta? Instalado em faustosa moradia de quatro metros quadrados situada no Ironbound, zona antigamente portuguesa, agora hispano-americana, inquiri os meus vizinhos, a maior parte falante (unicamente) de português e amante das tradições lusitanas (rancho, fado, vinho, maledicência), sobre as dificuldades de tal empreitada. “Não custa nada”, assegurou-me vizinho experimentado nas lides da vida, não sem a bazófia alfacinha, típica de quem não sente dor alguma, mesmo que lhe espetem uma faca no braço. É bom avisar que o motivo pelo qual o vizinho não sente dores, nem mesmo se lhe cravarmos punhal na carne, prende-se ao facto de ter passado a vida a mover o braço para actividades como levar o cigarro à boca ou procurar o comando da televisão enterrado no sofá. “São oito horas a conduzir, tomas um par de cafés e estás lá”, sentenciou outro vizinho, nortenho, pintor de interiores de apartamentos e vítima de fenómeno estranho, caracterizável por temporárias manifestações de raiva quando, nos intervalos do trabalho, se cruza com a própria esposa. No geral optimistas, as sugestões tendiam para a abundante toma de café e para a prática de rituais que reforçassem o foco do condutor, como misturar coca-cola com uns comprimidos energéticos (talvez Viagra). Somente um vizinho, por todos recomendado como aquele que, por ter trabalhado nas obras na Flórida, sabia um mundo sobre viajar e conduzir, me preveniu com sageza curta mas esclarecedora: “Cuidado.”

O heroísmo latente da vizinhança encorajou-me a enfiar no interior de um Honda Accord toda a mobília, livros, roupa e tralha que encontrei no apartamento. Ainda que não me tenha sido possível acartar mais do que roupa, uma torradeira e uma máquina de café, sobrou-me espaço na viatura para uma mulher a rondar o metro e sessenta de altura e uma criança de três anos e um mês. Como não me restava mais espaço, e porque meu coração já ardia de saudade e nostalgia de Newark, de Nova Iorque, e até de coisas surreais como a padaria portuguesa da esquina, arranquei num domingo à noite, convicto de que oito horas de viagem se fariam como uma ida à praia.

Caracterizada por árvores, motéis, restaurantes de fast-food e infinita estrada plana, a paisagem torna algo monótona a travessia dos Estados Unidos através de autoestrada. Quando, depois de mais ou menos quarenta e cinco minutos a conduzir, o GPS indica que estou perto de Filadélfia, fico com a sensação de me terem mentido, que chegar à Carolina do Norte será fácil. De Delaware retenho uma longa ponte vazia, pelo carro atravessada a uma velocidade bastante superior à permitida por lei. Às vezes chove, chove muito, ao ponto de não ver dois palmos à frente. Outras vezes faz um calor húmido, e sempre o carro rasga a autoestrada como um míssil destinado a só parar no destino final. A criança dorme durante as primeiras três horas e meia de viagem, e a mulher, preocupada com a segurança de todos, vai perguntando se não será tempo de parar. “Só mais vinte milhas, só mais trinta milhas”, vou dizendo, concentrado na música e armado em John Wayne, como se fizesse ideia do que estou a fazer.

Passamos por Maryland. A noite escura pouco permite vislumbrar para além de prédios longínquos. Ao volante vêm-me memórias de Stringer Bell e outras personagens de The Wire, e com essa imagem de droga e corrupção deixo Baltimore adormecida. De repente, contrastando com o deserto contínuo, surge Washington. Embora já passe da meia-noite, e o cansaço me impeça de prestar real atenção ao que me rodeia, sinto que a capital americana surpreende pela imponência e modernidade. “Olha, o Capitólio”, ouço, mas mal tenho tempo de virar a cabeça, pois meti na cabeça que, se não abrandar o ritmo, chegarei depressa ao destino. Com a imponência de Washington para trás, outra vez abafado pelas árvores e pela solitária estrada, paramos na Virgínia, não para o par de cafés recomendado pelo vizinho, mas para dormir num motel, que isto de trazer bebés num carro tem a sua ciência. Após breve duche da praxe, que serve essencialmente para dar uso aos sabões e ao resto a que o cliente tem direito num estabelecimento do género, medito sobre a arte de viajar de carro. Nunca antes me passara pela cabeça que conduzir durante tantas horas pudesse ser viciante, que atravessar tantas cidades e Estados me pudesse estimular como um videojogo. Adormeço a assistir ao preço certo americano.

Tomamos o pequeno almoço e, porque o Estado é vasto, almoçamos na Virgínia. Os habitantes locais observam-nos como se fossemos extraterrestres. Também eles, vindos de um filme barato, fardados com botas de cowboy, apetrechados de bigodaça, cabeleiras fartas e vestes de trabalhador rural, nos surgem como figuras exóticas. Demoramos cerca de três horas a chegar à Carolina do Norte. Felizmente, em certas estradas é possível conduzir a setenta milhas por hora, o que para um português ciente do cumprimento das regras, equivale a oitenta e cinco milhas por hora. Incorporando na figura de Michael Knight, evito pensar que a Virgínia me aborrece. Mas agora, à distância de uma semana, aquilo que era uma impressão ficou em mim cravado quase como certeza: eu e a Virgínia não fomos feitos um para o outro.  

Antigamente, julgava que guiar um carro não era para mim. Agora pago um carro a prestações, aprecio guiar a velocidades imoderadas, palmilho estrada de olhos fechados, como se o volante me soprasse ao ouvido para onde ir. Ensinam os budistas que estamos em constante mudança, que nem sequer existe um eu, que somos um rio em movimento. A minha vida melhorou desde que aceitei fazer parte desse rio, ou melhor, desde que deixei de resistir à mudança e parei de acreditar que a minha personalidade era x e nunca assim deixaria de ser (se era teimoso, achava que não poderia deixar de ser teimoso). A história não se repete, a minha personalidade adapta-se ao tempo e ao espaço, deixo-me ir, o que faz com que mudar de cidade, de casa, deixar para trás centenas de livros, conhecer novas pessoas ou adaptar-me a novas realidades, não seja difícil, porque fácil, difícil, entre outros adjectivos ou formas de categorização, abandonaram o meu jogo.

Entrei na Carolina do Norte exausto, necessitado de jacuzzi, piscina, praia, massagens, e de tudo o mais que deus permite. A paisagem não me fascinou logo. Parecia-me mais do mesmo.  E a casa alugada só estaria pronta para entrar dois dias depois, catástrofe que me obrigaria a dormir mais duas noites em motéis e a levar a torradeira e a máquina do café para todo o lado. Não ter casa permitiu-me deambular sem destino. Conheci Carrboro, Durham, Chapel Hill e Raleigh. Não descreverei aqui os sítios que agora frequento. Atenho-me à viagem de carro. Como tantos outros portugueses, julguei que os GPS enganavam as pessoas, que induziam em erro, que quando se dizia que ir de Newark a Chapel Hill levaria cerca de oito horas, tal significava que essa viagem demoraria não mais de seis horitas. Mas o GPS não falhou. Demorei o tempo que estava previsto demorar. Não me enganei em nenhuma saída. O GPS falhou-me menos do que qualquer pessoa que tenha conhecido (deixemo-nos de passivo-agressividade). Duvido que repita esta aventura tão cedo. Mais uma vez imbuído de estupidez, imagino que, com o carro menos pesado e sem um bebé a precisar de constante atenção, retiraria duas horas à viagem. Esqueço que não dá para fechar os olhos em Newark e abri-los, cinco minutos depois, com quatrocentas e muitas milhas calcorreadas. Esta foi das mais estimulantes experiências que vivi.

 

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Consolo na miséria

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Quatro meses e meio a limar bruxuleante prosa, cento e vinte maços de tabaco esventrados, três quilos de café conferindo tons acastanhados à dentadura, iracundas jornadas de bulha com a esposa, tudo em vão, suspirava o vencido Quirino. Ainda que soubesse das virtudes da paciência, não podia mais dar de caras com a repugnância ou, ainda pior, com o desinteresse de editores impreparados para literatura como a sua, por si próprio apontada como avant la lettre. Que país, declamava ao vento, que não premiava os melhores, que secava à fome merencório artista de dimensão planetária, que nem permitia que relevantíssimo artigo, dedicado ao tema da deglutição de nozes no tempo do rei D. Carlos, tivesse direito a publicação em revista de modesta circulação.

Jacinta, hirsuta e escravizada esposa do escriba, digeria com cada vez maior desgosto uma realidade confirmada pela natureza como facto científico: além de não contribuir com tostão para as despesas domésticas ou de não se envolver, por questões éticas, religiosas e sabia-se lá mais o quê, com tarefas profissionais relacionadas com dinheiro, a patética figura do marido não era abastecida de talento que lhe valesse aquele inane quotidiano de inactividade. Aquando de particularmente intensa explosão emocional de Quirino, que meteu lágrimas, berros, pratos partidos e patadas nos móveis, consequência directa da rejeição editorial do tal pedaço de arte que lhe custara quatro meses e picos a redigir, a senhora, imbuída de espírito heróico, decretou a seguinte sentença: a partir do dia de hoje, pagas o que comes, os banhos que tomas, o detergente gasto na lavagem dessa tua encardida roupa e, todos os meses, pouco antes do dia quatro, pousas cem notas na mesa de jantar, de maneira a que a renda seja paga sem meu prejuízo. Trespassado pelas mortíferas palavras da mulher, Quirino torceu o lábio, enrugou a testa, ajoelhou-se, como que prenunciando enfarte, embora de enfarte nem sinal, rebolou copiosamente na carpete, na esperança de que Nosso Senhor ou mesmo Jacinta se apiedassem de seus padecimentos, e clamou que a arte lhe consumia os nervos, que o problema no joelho lhe tolhia o andar, que um início de demência lhe subtraía expectativas, e que a mera hipótese de se imiscuir no mercado de trabalho, assim do nada, com trinta e oito anos no corpo, lhe metia medo, tanto medo que preferia permanecer como estava, apático, na dependência de uma limpadeira, preso ao ordenado mínimo de terceiros. Outra vez de coração amolecido, Jacinta calou a boca, afagou o cabelo do marido e, num meigo tom de voz, trouxe paz à casa: Meu chocolate branco, que culpa tens tu de ter nascido estúpido como uma porta?

 Possivelmente por causa dos eclipses solares, pela astrologia considerados causadores dos mais fantásticos eventos, as semanas, caracterizadas por mudanças bruscas, tiveram pedido de divórcio, cabeçadas, narizes partidos, cadernos ardidos, paredes borradas de sangue e visitas aos serviços de urgência do hospital. Afastado do amor da sua vida, daquele matagal de pêlos que à noite o consolava, o homem buscou sossego nos braços de outra fêmea, Cidália, cega, surda, muda e morta, tão morta que todos, menos o entontecido Quirino, sempre em busca da frase perfeita, a tinham por fantasma.

 

O mundo a nosso favor

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Primeiramente visto por amigos e familiares como escriba promissor (uma década encavalitou-se noutra e de obra da sua autoria não se vislumbrou página), mais tarde, com o crânio ornamentado com farta cabeleira branca, descrito como estrela atormentada por sombras da infância que tardava em se afirmar e, num ponto mais avançado da carreira artística, como ocasional consumidor de aguardente, comentador desportivo na tasca do Eustáquio e adepto de estilo de vida baseado na estupidez, Jordão lacerava os céus de Lisboa com luminosidade de pedinte.

O astro literário reservava os fins de tarde para a partilha de saberes com Ramiro, discípulo, admirador e mamífero que, na ânsia de aprender cada vez mais, esbardalhava a reforma da tia a alimentar e embebedar o mentor. Em parte por ter lido Platão e admirar a figura de Sócrates, em parte pelo trauma de nunca ter conseguido transpor mais do que quatro frases da sua lavra para o papel, Jordão ensinava de cabeça, gabava-se de rasgar livros, de cuspir na poesia, de não abrir as cartas que lhe enviavam, inclusive as que continham contas por pagar, de possuir uma inteligência que dispensava leituras e memorizações, gozava com académicos e com críticos literários, por si apodados de tarefeiros. A aversão de Jordão à escrita - uma descomunal aversão entrelaçada com paranóia e impulsivas vontades de deitar fogo a tudo o que fosse papel – descomprometia-o de atitudes racionais. Jornal da bola dobrado em cima de mesa de café propiciava-lhe uma raiva que ascendia do estômago para os braços e punhos, e não havia quem lhe travasse o movimento dos dedos e dos dentes na altura de rasgar e de morder o periódico diário. Ramiro, o escolhido pelo mortal deus para eternizar um legado de idiotice, era quem mais lidava com esta falta de pensar: Jordão eriçava-se, ameaçava interromper as lições se descobrisse punhalada na relação, ou seja, se intuísse que o protegido se entregava a leituras, mesmo que essas leituras contemplassem a mera bula de medicamento. Modesto em termos de pensar, inibido no que tocava à busca de fonte de alimento intelectual, Ramiro seguia tão à risca as instruções do mestre que, gradualmente, até de saber ler se esqueceu.

Na manhã de 5 de Novembro de 1996, dia em que se comemorava o vigésimo aniversário do último dia em que pela última vez tocara numa caneta, Jordão vestiu-se a rigor, limpou a cera dos ouvidos, perfumou-se, botou gel e after-shave, e compareceu na estação de comboio em que se combinara encontrar com Ramiro para a lição final, ou espécie de graduação, que consistia em raptar, atar a uma árvore e incinerar aquele que para o mestre representava a maior ameaça à paz mundial, Lucrécio, o escritor mais premiado da aldeia. Delgado e nada viçoso, Lucrécio deixou-se iludir pela simpatia da dupla de falsos admiradores e, por isso, nem esboçou tentativa de resistência física. Regado de gasolina e já em chamas, miou que se martirizava pela sobrevivência da literatura. Jordão orgulhava-se do crime praticado, reduzir a cinzas o inimigo era obra maior, feito ao nível de Mozart, e ainda mais se comprazia por ter transmitido ao discípulo o que de mais profundo guardava na alma. “Destrói o sentido dos dias, prescinde da realidade que te ensinaram na escola”, desabafou, espezinhando as cinzas, “e o mundo muda a teu favor.”

O karma branco

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Ambrósio curava-se, havia mais de um milénio, de desgosto da alma, de cratera aberta pelo amor, pela aniquilação do amor às mãos de louca senhora, quando consigo essa mesma louca senhora se cruzou. À custa de intermináveis sonhos e rememorações mantidos vivos, os sentimentos que por ela nutria acudiram-lhe em simultâneo à boca, e por essa razão regurgitou e tombou, desmaiadíssimo, para o lado. Acudido por transeuntes versados na aplicação de palmadas em rosto desfalecido, Ambrósio safou-se de segunda morte causada por furo no peito, reergueu-se das trevas e, vexado, zonzo, cumprimentou a mulher que lhe partira o coração, soprou algo tolo como parabéns por te teres livrado de mim, ou parabéns por teres encontrado nesse gordo feio o amor que comigo não tinhas, ou parabéns por ainda me afogares em lágrimas como no dia em que fugiste. Nisto, o gordo feio, que comunicava com o mundo por via de zurros, zurrou, quiçá manifestando indignação – não se encontrava presente no evento qualquer intérprete de zurros -, e logo a senhora lhe espetou cenoura entre a dentadura, acto que, para surpresa geral, inclusive do zurrador, contribuiu para harmonizar-lhe as ideias. Ambrósio virou-lhes as costas. Por muito que desejasse ou amasse aquela mulher, nada voltaria a ser como fora, ou como imaginara que poderia ter sido, o passado existia porque ele próprio o mantinha aceso, a arder como uma fogueira, mas o passado era essa coisa invisível, uma energia de fogo que lhe consumia o pensamento, que lhe bloqueava o acesso a amigos, a outras mulheres, o passado era Ambrósio escavacado, anti-social, sonâmbulo, patético. “Amo-te sem saber como deixar de te amar”, despediu-se Ambrósio, sem olhar para trás, e caminhou, primeiro lentamente, à espera de ouvir alguma resposta desse irrecuperável passado, depois a ritmo mais acelerado, acatando o silêncio e o desprezo como formas de retribuição,  de não ser amado. Sem se aperceber de que a mulher o perseguia à distância, Ambrósio andava de cabeça pesada, prometia olvidar, virar a página, não perder mais noites de sono a alimentar fantasias, rasgar a imagem da louca, arrancá-la das profundezas do seu ser. Uma mão, a mão dela, pousou-lhe no ombro ao enfiar a chave na porta do prédio, e ele, esgotado, não encontrou palavras que acompanhassem os seus confusos sentimentos, que incluíam raiva, dor, repulsa, saudade, melancolia e desejo. “O que mudaria se te dissesse que continuas a ser o homem da minha vida?”, perguntou-lhe ela, despida de camuflagens, com aqueles lábios vermelhos prontos a engolir as estrelas, com aqueles olhos pretos como a noite mais escura. “O que se alteraria entre nós se te revelasse que nenhuma destas inutilidades com quem durmo e convivo contribuiu para te esquecer?”, voltou ela a perguntar, como se estivesse pronta para não obter resposta de indivíduo habituado mais a sentir do que a agir. Pela primeira vez em muito tempo, Ambrósio tocou na face da mulher, sentiu-lhe o cheiro com as narinas encostadas ao cabelo, deu-lhe a mão e afirmou que mudaria tudo, e ela beijou-o, e nesse momento o gordo feio explodiu num fogo de artifício que maravilhou a população.