Ontem

Às nove horas da noite – réquiem
cansado – o poema falha
como fênix rediviva.
O que tenho. O que as mãos
concebem é ridículo
rouxinol domesticado.

Finda um dia em que não couberam
todos os seus cadáveres:
um poeta extinto, outros tantos
corpos destroçados
entre as rochas dos Alpes,
as homenagens, as vozes exaltadas,
as eternidades prometidas,
as catástrofes, os homens todos
furiosamente comovidos. 

Pela manhã iniciei a leitura
de um livro que já falhei
em ler anteriormente.
Às quatro horas, no escritório –
já as telas dos computadores se entupia
de urgentes obituários –
uma leitura clandestina
sobre a velocidade do infinito.
Foi calculado: as galáxias
afastam-se a uma velocidade
de 550 milhões de quilômetros horários.

Eu, futuro cadáver, às vezes
penso como as crianças -
único modo de falar com os mortos.
Onde estávamos ontem, desgarrados
irmãos do cinturão de asteróides?
Na queda, vimos
de onde ontem estava o sol
ou morremos antes de alcançá-lo?
Faço as contas, multiplico
o número de horas de um dia
pelo número de horas de um ano
pelo número de horas de todos os meus anos –
que distância impossível e ridícula,
terei me deslocado mais do que o espaço
entre a tabacaria da esquina e os mares congelados
das luas de Saturno? E o poeta morto, que viveu
muito mais do que eu, foi da Terra
ao além do Sol ou deixa átomos
do que foi, do que amou, de sua paixão
erradia no vazio enregelado de Netuno?
Ou estamos todos inertes e o espaço
que se dilata é uma desintegração da lei
que nos parecia irrevogável? Dispersam-se
nuvens de nebulosas
como debaixo da terra dispersam-se
unhas, cabelos, mandíbulas,
braços que ontem foram harpas
tangendo música imediata, telúrica, sensual.
Onde estaremos todos amanhã,
náufragos do eterno? São os peixes
multicoloridos as estrelas
e o nada morto – este vazio espesso
que tudo arrasta – talvez seja igual
a uma corrente marítima
 que amanhã vai trazer chuva e devastação
ou novos campos de girassóis
para enlouquecer os homens.

Que longa estação – que longo verão
mesmo agora que a luz está recolhida.
Às nove horas da noite, restos de poemas
nos pratos engordurados,
ofereço uma trégua:
é preciso ir ao vento, desfraldar bandeiras
aos gatos dos telhados, aos uivos lunares,
a deus tão dissoluto quanto os mortos.
É preciso, entre primaveras
que fincam raízes no arame enferrujado,
estender as roupas no varal.

CONDOMÍNIOS FECHADOS

Os condomínios fechados erradicam
as tabacarias diante das janelas
e os horizontes de becos à beira-mar.
Os prédios repetem-se, as sombras
parecem-se: são todas de homens.
Os gestos imitam-se e não há
mistério no mofo que se alastra
pelas paredes – provavelmente
foi um cano que se rompeu
e o zelador está sempre pronto.
O tempo não sangra. O instante
não alcança a crise: cristaliza-se,
multiplica a luz, os dias –
sou o de ontem, desde sempre.
Diante de qual parede esperar
a porta que não irá se abrir?
Se ao menos isso fosse claro.
Onde a criança que come chocolates?
Estão todos mortos, alheios, opacos.
São todos o universo a cair
sobre mim com um terror de fábula
infantil: leio sobre nebulosas,
sobre o brilho infindo dos quasares
e que jamais existiu um tempo
antes do tempo e então olho para o corpo
que ao lado dorme e penso
é mentira que exista amplidão maior
do que a do dia poeirento.
A noite continua. Queria
o meu coração fora de mim
apenas para dizer: é o luar,
é o rio em que os homens
lançam os seus excrementos
e os seus mortos mais queridos.
Mas não, o meu coração é ainda
menos do que um pássaro enjaulado;
é uma névoa apenas visível
em noites de puro espanto.
Abro a janela. Procuro o Esteves
para dizer Adeus, mas não, tudo
o que há diante da janela é o gato
vadio que dorme junto aos cactos.

 

Um funcionário

Agora que voltei ao escritório, voltarei também ao lirismo?
Dobrar-me-ão de passagem para a copa
as vergas
d'O Cântico dos Cânticos, As Mil e Uma Noites,
certa nota de jornal enfiada à carteira

a versar sobre a infinita divisibilidade de Homero
agora com postulados algébricos?
Ora, merda.
A quem cantarei agora estas maravilhas?
pergunto-me
fixando abobado um glossário de termos petrolíferos
uma fotocópia
largada sobre minha mesa, encarquilhada de manuseio
 
(falando-me do manuseio, falando-me a muitas mãos. Quase tomando-a por algo belo)
gongo à garganta da ascensorista
“desce”
uma malha de corredores vazios, espalha-se a ordem por
lajotas de mármore
maravilhas?
Coisas tão miscíveis em seu próprio tempo,

que tipo de operação as dissociaria de tão entramada geral?
Eu tratava o divórcio entre as coisas.
Eu tinha tempo.
Estava ainda por topar a palavra Absoluto
em meio a uma interminável lista de aromatizantes...

(Era embasbacá-la –, era um dever moral).
A quem cantarei agora
                                    Óleo absoluto de rosa damascena

                                    Óleo absoluto de rosa damascena?                                   
Bem que me disseram que esta era a cidade das coincidências,
que não havia meios de escapar,
que, como toda a gente, eu ainda reencontraria no metrô algum velho conhecido dos tempos de colégio
abotoado dos pés à cabeça,
que eu seria levado a pensar, forçosamente, na fraternidade dos homens,
nestas partilhas ásperas,
minuciosas,
levadas a cabo no mais entalado silêncio.
Eu sabia destas coisas,
julgava-me – em alguma medida – preparado,
inclinava as pupilas com a luz branca,
recebia dócil, alegre até, o beco trabalhado em minha testa.
Mas eu olho para baixo e o que vejo, ao fim do dia, são os sapatos de um outro.
O verniz de um outro.

o ser mineral ou forma espelhada

È venuto un momento che tutto si ferma
e matura.

Cesare Pavese 

p/ qualquer um

 

o ser mineral ou forma espelhada
do negro deserto (talhando
sempre
a mesma arquitetura)
indeiscente
contempla (áspera)
as coisas que (inda outra vez) ao chão
consagra (em espinhos empedernidos)
e não medram
como o mistério outrora e
(qual) além
recusado (o ato
próprio seu de amar)
contraindo infinito
o corpo são