Um funcionário

Agora que voltei ao escritório, voltarei também ao lirismo?
Dobrar-me-ão de passagem para a copa
as vergas
d'O Cântico dos Cânticos, As Mil e Uma Noites,
certa nota de jornal enfiada à carteira

a versar sobre a infinita divisibilidade de Homero
agora com postulados algébricos?
Ora, merda.
A quem cantarei agora estas maravilhas?
pergunto-me
fixando abobado um glossário de termos petrolíferos
uma fotocópia
largada sobre minha mesa, encarquilhada de manuseio
 
(falando-me do manuseio, falando-me a muitas mãos. Quase tomando-a por algo belo)
gongo à garganta da ascensorista
“desce”
uma malha de corredores vazios, espalha-se a ordem por
lajotas de mármore
maravilhas?
Coisas tão miscíveis em seu próprio tempo,

que tipo de operação as dissociaria de tão entramada geral?
Eu tratava o divórcio entre as coisas.
Eu tinha tempo.
Estava ainda por topar a palavra Absoluto
em meio a uma interminável lista de aromatizantes...

(Era embasbacá-la –, era um dever moral).
A quem cantarei agora
                                    Óleo absoluto de rosa damascena

                                    Óleo absoluto de rosa damascena?                                   
Bem que me disseram que esta era a cidade das coincidências,
que não havia meios de escapar,
que, como toda a gente, eu ainda reencontraria no metrô algum velho conhecido dos tempos de colégio
abotoado dos pés à cabeça,
que eu seria levado a pensar, forçosamente, na fraternidade dos homens,
nestas partilhas ásperas,
minuciosas,
levadas a cabo no mais entalado silêncio.
Eu sabia destas coisas,
julgava-me – em alguma medida – preparado,
inclinava as pupilas com a luz branca,
recebia dócil, alegre até, o beco trabalhado em minha testa.
Mas eu olho para baixo e o que vejo, ao fim do dia, são os sapatos de um outro.
O verniz de um outro.