pondo as cartas na mesa

todos os truques de mágica consistem em três atos/ a primeira parte é chamada o sinal/ o mágico mostra um objeto/ um maço de cartas um pássaro ou um homem/ talvez peça para examiná-lo/ para provar que é real/ mas provavelmente não é/ a segunda parte chama-se a oportunidade/ o mágico pega a coisa inalterável e faz algo extraordinário/ agora você procura pelo segredo mas não encontrará porque você não está de fato procurando/ você não quer saber/ você quer ser enganado/ mas fazer algo desaparecer não é o suficiente/ você tem que trazê-lo de volta/ por isso todo truque de mágica tem o terceiro ato/ a parte mais difícil a parte que chamamos o prestígio/ mesmo para um engenheiro de ilusões às vezes algo sai errado  

tacked on his wings and laid his cards on the table

Patti Smith

a cidade foi cercada

a cidade foi cercada
e vem a noite
e de milhares de leões
um
a cidade foi devastada
e de milhares de barrigas
uma
e vem a manhã 
o mar arredou
há uma concha trincada
debaixo de tão pequeno pé 
há séculos a cidade sangra pelos teu canais
porque a poeira
que sempre vaza os lençóis
assim desejou
a cidade foi inundada
também
pelos teus canais  
agora a noite precisa ser mentida   

tão pequenos os pés os ovos tão moles
tão perfeitos os talos
desfigurado o ombro
tão limpinhas as cuias a cidade o leão e o peixe  

fragmentos sobre o tempo

 

 São mesmo as coisas que envelhecem
ou é o nosso olhar que envelhece as coisas? 
A nossa insistência em procurar o tempo
ou em perdê-lo?  

2

Quem procura o tempo pode vir a encontrá-lo, 
mas antes encontrará a confusão.  

Já quem perde o tempo talvez nunca mais o encontre. 

Mas quem precisa do tempo
enquanto se diverte
com a confusão?  

3

Não se pode abraçar o tempo
como se abraça uma árvore, 
mas como se abraça um poema.  

4

Um poema é o que acontece
enquanto o tempo esquece
de existir.  

Por isso
     enquanto o tempo se distrai
                 poemas não envelhecem.

outros nós – nós nas bolhas

como um bebê 
eu haveria de passar pelos dias  
sentir cócegas nos ossos  
não enxergar a tradução dos letreiros  
subir as escadas pelos olhos dos outros
engatinhando para apanhar o frasco de aspirinas  
os ansiolíticos  
vomitar no álbum de lembranças que não são minhas  
esperar que cresçam unhas nas pontas dos dedos  
e arranhar as gengivas  
brincar com as pernas no ar  
dar nós nas bolhas de baba  
morder o dedo do médico  
não enxergar a tradução no que dizem  
vomitar no teu ombro  
me cagar de dez em dez minutos  
chorar só um pouquinho  
engolir moedas  

não enxergar a tradução no que dançam e cantam
ter os sentimentos cercados de barras
e tomar um bom trago de vodca barata no fim da manhã 
antes da papinha cheia de saliva da mamãe
 
como um poeta
eu haveria de passar pelos dias 

nuvens, etc

curtido todo o dia 
procurando a personalidade 
nos pingos da chuva  

você se atreveria 
a apontar qual gota 
mais impressionou?  

um par de nuvens brinca 
com os esplêndidos futuros que teriam 
caso fossem ursos 
 
enquanto eu e você e um pensamento insistente 
passeamos curiosamente distraídos 
com a despreocupação que teríamos 
caso fôssemos nuvens.  

como se no negro do céu 
fôssemos encontrar a Solução 
investigávamos os detalhes 
por infinitos instantes 

que como o depois ou o antes 
viriam a ser todos 

& nenhum.  

é tão claro e evidente 
quanto potencialmente falso 
que as nuvens vagueiam e desvanecem 
quase como a memória foge 
bêbados se equilibram 
espasmos deixam rastros 
acidentes espreitam.  

5  

seja imitação de Bartleby 
seja prática do wu-wei 
seja cortejo à preguiça 
ou deixar o nada acontecer:  

antes de pensar em fazer algo 
prefiro pensar em não fazer.