Árvore erguida, jorrada dos teus ossos de granito vivo, eco e forma do sangue, arranhada, ferida pelos quatros ventos e as sete estrelas, árvore de granito, sacudida por todas as correntes de arte, mas que teimas em ser a tua pedra, poema.
Poema de cinco sentidos que todos os dias me arrancas à morte. Ergue-te mais, ainda mais, ainda mais uma vez. Cantemos.
E tu poeta que dizem obscuro os que te lêem e não te escutam, a quem roubaram três vezes a vida e a morte até que as consumaste por tuas mãos, mas continuas a viver dentro de nós, do poema. Quero levar¬-te comigo, erguer¬-te o corpo de terra, da terra, e levar-te comigo como a voz sem preço.
E tu também que iluminaste as palavras na luz mais negra, também tu pedra viva, como aquela pedra que é navio e navega pelo tempo, sujeita a uma bela longevidade que não é sem fim, porque a água cava nela a rota que a leva e que ela traz consigo, mas que mesmo assim perdura quanto pode. Quero levar-te comigo, porque é preciso gritar à beira do abismo, inaudito dom de humanidade, tu, outra voz que só morrerá de viver noutras vozes.
Vós sabeis que a vitória é nossa inimiga e que a sua hedionda face jovial é o nosso pesadelo – nós estamos do lado da derrota. Vós sabeis que não queremos a verdade, porque, hoje, a verdade fala a fria fala da noite da noite, da morte morta, da morte sem vida, sem olhos, nem boca, nem mãos.
Fixámos um destino, um destino pequeno, um destino que cabe nas mãos, uma pequena pedra que ninguém conhece, nem nós, que a descobrimos como um cego descobre a pele funda de cada coisa. Essa pedra é o côncavo, a concha, o aconchego da mão, a pressão na mão, da mão. Não procuramos a verdade, porque somos irmãos das coisas, vivemos com elas, e com elas e por elas respiramos, terra, ar, mar e fogo.
Um raio de luz, o raio de luz que não se consegue separar nas suas fibras. Chega¬ se às coisas, está nas coisas, afeiçoa¬ se a elas, transforma¬ se na sua forma, aquece¬ as.
A verdade existe, deixá-la existir. Hoje, porém, os que a perseguem com todos os seus poderosos instrumentos, são capazes de a encontrar, mas deixaram-na em que estado?
Uma frase obscena não me sai da cabeça: os gloriosos malucos das máquinas voadoras. Mais alto, mais forte, mais rápido. Aí, tão altos, tão fortes, tão rápidos, estais tão fortes, tão altos, tão rápidos, ó arcanjos da morte branca, que não conseguimos sequer imaginar-vos. Por mim, desço, deve ser isso, umas escadas escuras, penetrada de estilhaços, com a cabeça a rebentar de ordens loucas, sirenes, poeira e fogo sem sentido, fugida de mil guerras. Só quero sair daqui, não pedi isto, não encomendei esta comida.
E de novo nessas terras de nomes estranhos se formam os rios humanos de estropiados, com raras palavras coladas aos lábios como beatas apagadas. Voltam as mesmas imagens, que é como se nascessem cá dentro e para nascer me rasgassem de novo a carne como outras tantas farpas de fogo. Chegámos a um ponto em que até a piedade, a compaixão, o riso ou as lágrimas, são matéria de vergonha e estão a mais.
Que raio de reportagem insuportável pode ainda extrair um resto de humanidade destes fragmentos, destas letras que se espalham pelas estradas, quando as bombas dispersaram a fala e as poucas palavras? Por vezes, das janelas altas fico a olhar quem passa cruzando-se com as línguas de aço que saem da bocarra das ruas. Não se ouve nada por detrás das janelas. Estarão a escrever um livro, o livro, lá em baixo?
Civilização, quero ser, quero ser, o único escravo, o único escravo no teu mundo de homens livres. Um escravo ao menos ainda pode aspirar à liberdade, à liberdade, trazê-la, trazê¬ la consigo, escondida, fazer-lhe um abrigo, na sua própria carne. Foram os escravos, os escravos, que a fizeram.
Casas de terra tornando à terra, como os mortos que cavaram a própria cova, fazendo no chão o lugar do corpo, sujos da terra que os iria cobrir. Não tinham o direito de se calar nem de falar. Porque havemos nós de falar ou de nos calar? Mas que falar ou que calar?
Arcanjos da morte, deixais grandes marcas no chão e nos corpos. Vincais o tempo com as marcas que deixais e às ruínas dizeis: "Sois passado". Ficam no ar paredes imperfeitas, a provar que por ali passou o tempo irrevogável, imaturo, o que não foi crescendo nas nossas memórias nem teve tempo de se fundir em nós. Um tempo que não fizemos, nem nos fez. Um que está ali fora, como um exército ocupante. Minutos que a custo expulsamos para uma rua vazia como nós.
Quero crer que uma noite o piloto de um bombardeiro soluçou. Quero crer que uma bomba humana está desfigurada, num hospital, a repetir sem fim: "A minha alma está morta". Palavras irrisórias, tardias, onde se precipita e se esmaga tudo, como num buraco negro. Movimento dos corpos despojados de si, despossuídos, que se retorcem ainda como se estivessem vivos.
Ou melhor, se posso dizer isto, corpos que caem connosco nas cataratas, levados num remoinho sem sentido mas que tem por destino fatal o abismo.
Archeiro, verga o teu arco, prepara as flechas. A violência que é vida é o teu alvo e o teu voo.
Não sou bom, nem santo, nem herói, nem pretendo sê-lo. Apenas estava a instalar-me na casa nova, a arrumar a roupa nos armários e ia abrir a janela por onde entraria a luz. Havia uma janela para a luz entrar. Tinha tudo bem pensado: passaria a mão pelos móveis devagar até me impregnar de móveis, havia tudo de cheirar a lavado até o meu corpo se desfazer no ar e ser ar, as paredes iam aquecer-me com o seu sol.
Subitamente, e não tenho a desculpa de estar numa ilha exótica, nem de haver tornados, a casa ruiu. Fito o focinho estranho do céu que me fita e ocupa todo o espaço, outro abismo para o alto. Quer uma palavra minha, mas tenho de lha comprar, é o dono das palavras. Não posso dizer que são palavras de contrabando, nem que as envenenou. São as mesmas palavras que eu tinha, as mesmíssimas. Quem não as cantou?
"O meu coração que odiava a guerra" - disse o poeta. E quando deixou de a odiar, entrou-lhe dentro o sangue do inimigo, a voz do inimigo, o coração do inimigo, do odiado odioso inimigo. É esse o momento do perigo e temos de passar por ele.
Verga o arco, archeiro, pois também tu vais ter de odiar. Não esqueças, não perdoes, não fraquejes. O teu ódio há-de ser um ódio meticuloso, gelado, mudo. Vais ser imperfeito como estas casas, como estes mutilados, como todos os injustiçados. É urgente, não há tempo para mais. Ergue-te da terra, sujo, cansado, sem amor, morto de sono.
Tu que, ao cruzares uma desconhecida, sentes crescer em ti uma roseira de luz. Tu cujas mãos choram de alegria diante dum gato só por ser gato. Tu que, na bicha da padaria, secretamente sentes a padeira nascer e crescer em ti durante anos, com um amor de vidro transparente.
Vais ter de odiar.
Odeia com um ódio gelado, feroz, eficaz, certeiro, um ódio das mãos, da cabeça, de todos os teus órgãos, como os nenúfares, os jardins de estrelas, o frio das vidraças, a paisagem oca dos desertos, tudo o que tu queiras, mas mantém-no longe do coração, não lhe abras a porta, tem-no como um armário fechado numa cave que nem exista.
A violência, que é vida, seja o teu alvo e o teu voo.
Tu sempre aqui a reviver os mesmos momentos, como quem revira o colarinho gasto duma camisa velha, querendo dar¬ lhe nova vida, mas só para o gastar ainda mais. O mar dança sobre si próprio, de novo e de novo, vai e vem. Dobra-se como um guardanapo de medusas, chama o Inverno, o Verão, a Primavera, o Outono. Pulsa, mas mesmo assim não aprendeu o tempo e tu também não: a onda precisaria de encontrar as ondas antigas, deitar-se longamente sobre elas, sentir o seu molhado. Tactear o rasto delas na areia, bebê-lo.
Tu precisas de sentir um sentimento pesado, denso e líquido como o ferro em fogo ou a lava, a puxar-te para ti, para o fundo. Fundar-te num chão duro para te ergueres outra vez. Seja o ódio esse salto.
Chamam paz à guerra e guerra à paz os que peroram contra a violência.
Um eléctrico na noite leva na barriga as suas esculturas de luz e com elas pedaços de ti, quem sabe a última esperança de beleza. E na janela da frente reflecte¬ se a tua janela, a única iluminada, e tu nela que te fitas a ti próprio, tentando perceber¬ te a ti próprio. Havia uma maneira de fazeres as pazes: estares assim cansado, cansado como estás. Mas quanto tempo podes estar cansado, com essas facas de fogo frio que remexem em ti?
Vê, vê como eu fui apanhado com a lista das compras, ou meio nu, ou a recitar palavras incompreensíveis no meio das bestas joviais armadas. Escreve isto, por favor. Escreve: andou a aprender a lentidão dos gestos, passava horas, semanas e anos a ver surgir o mundo das mãos, como um fruto. Era como uma reserva, um verdadeiro pudor. Escreve, escreve. Não te cales. Era como um recato, um autêntico pudor. Suspendia o gesto, sem o parar, apenas um esboço de carícia que ia ser, tinha tempo, tinha todo o tempo, tinha o tempo. Era tudo fácil e preguiçoso. Não tocava nas coisas, elas nasciam-lhe como um fruto. Elas nasciam-lhe como um fruto.
Isso, isso, escreve. Uma pétala nos lábios, uma pétala nos olhos, uma nuvem que assoa a montanha. Uma mulher, uns olhos de vidro vivo. Vós, escreve, escreve, vós roubastes¬ nos o dom mais precioso, mas virá uma inundação, um animal grande como o mundo, que é o mundo. O céu ficará escuro, porque nos roubastes o que era mais nosso, o que não se pode possuir. Hᬠde vir um mundo animal com uma voz rouca e profunda e caninos de fogo.
Roubastes¬ nos essa pétala nos lábios e nos olhos e o vidro vivo que nos consolava com a sua brisa loura quando lhe dava o vento quente. Um grande deserto sai dos vossos peitos e derrama¬ se por todo o lado. Mas os rios vão entrar nas cidades, crescerá a bela erva selvagem nos prédios abandonados, assim o quisestes.
A água e o fogo serão o vosso desastre. E quando não houver mais nada, apagarão o vosso nome até à quinta geração, mas haveis de sobreviver também vazios nesse mundo vazio, sem sequer o humano conforto da dor.