2016 - 2017 

a praça inteira
lentamente
eu agora dentro do gelo do sonho
a baleia o chafariza catástrofe nos suspensórios
dos olhos
chibatando
arruinados pardais quando os pombos todos no chão  
namoram
uma mesma direção as mãos dos pombos aleijados
meu coração
uma baleia
o botão da camisa vermelha que em algum tempo
foi se desfazer maldita em tempos diversos
o botão aquele
haveria  
uma só maneira de me descobrir dentro
do que não poderia ser um sonho desde que
suposta afronta
a praça lentamente alerta
a praça inteira lentamente inteira comigo
procurávamos moedas onde a sorte em letras e
coroas
razões fissuras fogo um grito qualquer
lentamente
de cara crua
com raízes por fazer

vou me
lavar e dormir entre os teus explosivos sapatos

Quatro poemas

um título que não chega ao coração
a coisa dita noutra pose
uma arma que serve a outros propósitos
a mala descarrilhada da viagem

a gente diz  
perder a cabeça
como se fosse
água-viva
como se não
as letras do título
espalhadas no saguão do sanatorinho

veja bem é o título 

veja bem
como é desnecessária a bula para perder a cabeça em
pleno safári íntimo

§§§ 

senti uma pausa
na configuração do nome da flor
entre os teus dentes
sinto que isso revela  
e que não importa o mistério revelado
importa o tiro no éter importa a pausa
a conotação do espinho o espanto suave
importa sentir a pausa
importa atravessar a mata proposta entre tuas orelhas
importa me debruçar na rocha final sem me fazer percebida
pela revelação

§§§ 

foi para o interior ver
como se some pelo interior
começaria pelo estrangeiro
e foi e viu vultos avariados pelo interior

§§§ 

sobe a anágua

o trovão quebra o vento
mentira
o vento e o trovão quebram a duração
o trigo traduz o movimento errado com o propósito ingênuo  
mentira
dentro do pão a forma da boca que não tem língua
mentira
num trovão todos os coices da égua da noite
mentira
mentira tudo mentira  
sai a duração o trovão  
fica um coice
a língua  
equilibra o vento
nunca o trigo jamais a tradução
mais mentira e volta o trovão 

cai a luva

three man walk into a dream

p/ ricardo domeneck

caro poeta, 

three men walk into a dream1 (não, isso não é uma piada!) e nós os assistimos: de nomes os três: capitão coronel e suj. desc. e caminham até o pé duma árvore (enquanto nós os assistimos) o capitão senta numa pedra o suj. desc. em pé dá as costas ao coronel e olha o nada (o suj. desc. aliás é uma espécie de contorno ele não tem voz não tem corpo não tem rosto é mais uma presença que deixamos sentir) o coronel também de pé saca uma arma !tudo isso vemos e não ouvimos! até que começam as seguintes falas: cor – “[inaudível]” cap – “[inaudível]” cor – “[inaudível]” cap – “ah, coronel, todos sabemos pra quem você trabalha” e pronto acabou acendem-se as luzes você olha pra mim e diz que a poesia é isso: “a fala do coronel representa precisamente aquilo que entendo por poesia, ou seja, não há nenhuma dificuldade, para nenhuma pessoa, em compreender o sentido da frase ‘ah, coronel, todos sabemos pra quem você trabalha’. todavia, pelo modo como é composta a estrutura do sonho não nos é dado saber a que se refere esse encadeamento de signos, em qual parte de qual discurso está inserida esta simples sentença. com isso, quero dizer que à poesia se assemelha precisamente pelo fato de optar por discurso e conferir a ele uma potencialidade de sentidos tal que nos permite inferir, porém nunca precisar, quem é o empregador do coronel. i.e., com isso, o sentido pleno da frase não possui outro pertencimento que não aquele do sonho. é preciso ser absolutamente contemporâneo, todavia, e perceber que essa forma do sonho não uma poética possível mais (você é pós-utópico? se o é, você é também trans-histórico? que dia é hoje no seu poema?). digo tão somente sonho em condição de símile, matéria da qual me aproveito para mostrar que linguagem, seja qual ela, nunca é compreendida em sua totalidade e todo discurso, seja qual ele, mantém um estreito laço com a insuficiência – tanto política quanto poética – da expressão. graças a deus tudo é mistério (cf. rosa 1937 apud 2014 apud 2016). portanto, para encerrar a questão, quero apenas ressaltar que o que houve aqui, com essa frase, foi a instauração de um mundo – um mundo lançado no mundo –, uma brecha lançada, e a nós fica cabendo apenas duas coisas: 1) interpretar hermeneuticamente essa promessa do capitão/poeta através de uma contrapromessa sem fim que funda um sentido no vago e 2) incorporar esse empregador-obra (ainda desconhecido, pois fragmentário) ao nosso próprio corpo, assumindo o lugar do próprio capitão (à beira da morte?), entregando nosso corpo ao risco desse desconhecido. a busca por um sentido pleno é precisamente referida na presença do suj. desc., ou seja, como algo que nos vira as costas, que possui apenas uma forma metafísica, uma presença alheia ao acontecimento e, sobretudo, inalcançável” assim me disse embora voz alguma atestasse que alguém sobre meu sonho a outro alguém noturno e miserável em colóquio se estava dirigindo

*


Este texto faz parte do livro de estreia do autor, Ratzara.

E ele deixou quem berrava

                    E ele deixou quem berrava                   
queimar em vão & sem combate serem cinzas
enquanto o sol imerge & a noite roda o dia

Assim sem chance de causar mais morte
aos poucos passa a ira as mentes se arrefecem
tal como um peito ferido é mais feroz                           
quando é recente o golpe a dor & o sangue ainda entrega
aos membros movimento & os ossos não repuxam
a pele — mas quando a mão estanca então
o torpor ata as mentes os membros & retira as forças                            
depois que o sangue frio aperta nas feridas

Sedentos primeiro procuram por fontes secretas
cavando terras ribeiras subterrâneas
perfuram chão com enxadas ancinhos
com suas armas & o poço escavado no monte                   
desce ao profundo dos campos irrigados

Mas nem no curso oculto os rios ressoam
nada reflui das pedras abatidas
nas rochas nem orvalho se destila
nem veio emana dos cascalhos
jovens exaustos de suor
são retirados dessas minas
na busca pela água fez-se o calor
intolerável & os corpos fatigados
não se bastam de alimento & abandonando
as mesas assentam sua fome — se um trecho
do chão oferta um solo que se encharque
espremem sob a mão o sumo do charco
se encontram pelos cantos o preto dum limo
soldados se matam por goles & moribundos
matam a sede como vivos não fariam feito feras
secam o gado & quando leite acaba chupam
da teta exausta a borra do sangue então esmagam
ervas caules colhem ramos orvalhados
& apertam toda a seiva dos brotos
até a medula — felizes são os corpos
daqueles mortos pelos inimigos
& que infectam águas de outros rios
enquanto expõem ao dia o pus dixit Lucanus

que beberão homens de César

O fogo abrasa os órgãos a boca seca
a língua escama-se áspera & enrijecida
as veias mirram o pulmão ressequido
encerra seus canais suspiros duros
escavam mais os seus palatos & a boca
se arreganha a sorver o sereno da noite

                        esperam chuvas

que corram onde antes nadavam
o olhar se fixa na secura das nuvens
sedento o exército contempla
ali tão perto os próprios rios

quando em seu bote inflável

Egon Schiele, Danae

Egon Schiele, Danae

quando em seu bote inflável enfim ventanias sopraram e um turbilhão de águas confundiu seu rosto em pavor e pranto ela o filho acolhendo as mãos sobre ele pousou e assim disse: “filho, que dor desabou sobre nós! seu corpo não sabe e você dorme profundamente neste mísero bote de preto látex que sobre o breu-cianuro desliza nesta noite pobre de brilho nem tampouco sente o sal se abater sobre seus cabelos e à voz do vento permanece surdo somente se deita sobre uma sacola um plástico sujo com tão linda tez pois se nosso horror em você causar ainda mais horror cubra os ouvidinhos amor te peço que apenas durma te peço pequeno que também durma o mar e durma o mal que estremeça em brilho toda a mudança vinda de teu gesto e perdoe por favor qualquer pecado em nossa fuga” e contra as rochas se abate à noite quem buscava refúgio enquanto dormimos e o fluxo contínuo das águas de algas o corpo todo cobre e com ânsia da costa os cílios cerrados mantém sem lembrança da mãe não acordem quem longe de casa sobre a areia morre