O acordo

Penso que estariam umas duzentas pessoas no auditório. Era uma tarde de Junho e adquiri o meu bilhete com dois meses de antecedência. O bilhete foi-me enviado por correio, tinha uma faixa azul na horizontal, o símbolo da instituição que ia acolher o escritor, a data e hora do evento, a expressão “uma leitura” por cima do nome do escritor, mas sem qualquer indicação do que seria a leitura exactamente.

            No auditório estava bastante calor e quando chegámos estava praticamente lotado. O auditório claramente não estava equipado para lidar com o calor, era o fim da tarde e só conseguimos arranjar um lugar numa das últimas filas. À última hora tinha convidado uma amiga para vir comigo. Penso que houve nisto alguma generosidade, uma vez que lhe dirigi o convite apenas uma hora e meia antes do início do evento, do nada como se diz, e ela não tinha qualquer interesse particular no escritor, nem nunca tinha lido qualquer livro dele, nem eu sequer. Tinha comprado os bilhetes para o meu companheiro, ele sim um leitor ávido do escritor, mas tinha-o feito com os tais dois meses de antecedência e ele estava demasiado cansado naquele dia para ir, preferindo ficar em casa.

Eu e a minha amiga combinámos encontrar-nos à porta de umas principais livrarias da cidade, essa mesma na esquina da Cornmarket com Broad Street, provavelmente o ponto de encontro mais conveniente de toda a cidade, onde toda e qualquer pessoa que passe mais tempo nesta cidade do que o de uma mera estadia turística acaba inevitavelmente por ver-se na situação de aí esperar por alguém, ou ser esperado. Namorados com ramos de flores, executivas de saias justas, homens de negócios de gabardine e chapéu expiando nervosamente o relógio, académicos de caderno moleskine debaixo do braço e canetas enfiadas no bolso da camisa, a trupe de esperadores varia apenas ligeiramente consoante a hora do dia.

Ora tenho de confessar que tinha visto, e até conhecido, vários escritores antes deste e que, não conhecendo nada da obra, apenas a reputação, as minhas expectativas eram imprecisas, a minha curiosidade não muito elevada. É até possível que eu não tivesse qualquer curiosidade em particular. Uma caminhada de trinta minutos separava aquele ponto em Broad Street do local onde, sensivelmente daí a quarenta e cinco minutos o escritor daria início à sua “leitura”. Eu gostaria de chamar a atenção para o facto de que todo o conceito de encontrar um escritor que se preparava para ler, para mais ler o que eu inferi seriam excertos da sua última obra, era para mim objecto de algum incómodo, para não dizer mesmo de suspeita intelectual. De alguma forma, o conceito parecia-me invasivo. Que tipo de pessoa pode apreciar o espectáculo vagamente atroz de um escritor a ler? Muito poucas pessoas, foi o que eu pensei. O texto que é nosso torna-se imediatamente dele, toda a entoação, todas as mais leves inflexões tornam-se para sempre as dele, que não são as nossas e já nunca mais vão poder ser as nossas. É mais ou menos uma coisa na ordem de encontrar um médico hipocondríaco. É uma coisa que, se existe, ninguém quer saber, muito menos ver.

Portanto, disto se pode inferir que o tipo de curiosidade que atrai certas pessoas para assistir pornografia não é indiferente ao estado de espírito que me levou a ir assistir àquele evento, o que também não é bem verdade. Talvez uma mistura entre uma curiosidade antropológica e a possibilidade de caminhar trinta minutos ao sol na companhia de alguém de quem gosto tenham sido o que definitivamente me decidiu a assistir àquele evento. Há uma alegria pura e simples em caminhar com um propósito quando se está de bom humor, faz bom tempo e temos boa companhia, e, quanto mais o tempo passa, mais penso que esta é uma actividade muito subestimada, que devia ser muita mais valorizada do que é. É daquelas coisas banais cuja alegria que delas tiramos cai facilmente no esquecimento, não é uma coisa que se espere com particular interesse. Mas poucas coisas neste mundo batem a alegria de uma caminhada com alguém de quem se goste. Não falámos muito do escritor e nem sequer mencionámos o facto de ele ter recebido o prémio Nobel, até porque nem eu nem a minha amiga poderíamos definir exactamente o que é que esse prémio premiava, uma vez que nenhuma de nós havia lido qualquer livro dele. No meu caso, não era o primeiro prémio Nobel da literatura que me havia sido dada a oportunidade de observar.

O primeiro tinha sido avistado no teatro principal desta mesma cidade, ele suava profusamente num blazer de tweed, encontrando-se debaixo de um grande holofote, no centro da plateia, não fosse o caso de algum espectador mais desatento não conseguir topar com o escritor, e o objectivo deste “primeiro” escritor não era fazer uma “leitura”. Ele viera no âmbito do festival literário da cidade, o tipo de acontecimento que tende a atrair escritores, e para ser entrevistado, no género de entrevista/conversa que pode fazer um escritor transpirar como qualquer ordinário mamífero peludo debaixo de um holofote com uma audiência a observar a transpiração a escorrer-lhe pela testa, uma acrobacia penosa, a que os seres humanos por vezes estão dispostos por motivos que podem não ser exactamente dignificantes, sobretudo tratando-se de vates, aedos e outros profissionais cuja arte possa ser vagamente performativa mas não exactamente performativa. Há no entanto que conceder que este representante da espécie se comportou com grande dignidade, sentido de humor e sobretudo sentido de ironia, aparentando apenas estar um pouco cansado. Não pude deixar de notar que o facto de que este se comportou não como um escritor num festival literário mas como um intelectual com ideias terá inspirado, a espaços, algum desconforto na plateia, e que a ironia ternurenta com que respondeu a algumas das perguntas não foi tanto usada para aparar este desconforto, o que seria um sinal a não perdoar de cobardia intelectual, mas tratava-se antes de uma manifestação atenta da sua compreensão e amor por, e do seu sentido de, humanidade.

No fundo, este escritor pertencia a uma espécie particular que, por qualquer motivo que me escapa, os sistemas de educação massificada, de modelo democrático/capitalista (o problema talvez seja a podridão de estes não se excluírem mutuamente), bem como essa fauna de cursos de escrita criativa que por aí abunda têm misteriosa e sistemicamente falhado em produzir. Pode-se afirmar com segurança que este indivíduo era primeiro um humanista (como sugere o seu interesse inicial não ter sido tornar-se escritor mas pintor), e desse primeiro acidente frutífero tinha-se dado o caso de daí ter brotado um escritor, o que, apesar do seu massivo ego, aparente dos seus romances (que eu, neste caso, havia lido), era um sinal da sua imensa generosidade. Quer dizer, mesmo o ego inesgotável era nele uma espécie de celebração de um espírito e de um sentimento mais geral de individualidade, das coisas que compõem um homem ou uma mulher afinando-se de tal forma que tornam as pessoas únicas, e, em última análise, dignas da nossa curiosidade e do nosso amor e, sobretudo, do nosso bom humor. É possível que estas coisas estejam lá sempre, mas este escritor fazia parte daquela longa sequência de outros escritores que foram inventando e afinando isto. Que isto fosse aparente no seu discurso era apenas mais um triunfo da sua arte que, não haja dúvida sobre isto, consistiu em passar várias horas da sua vida batendo com a testa contra uma ou outra mesa, num certo número de cidades e bibliotecas da Europa e da América, segurando habilmente uma caneta na mão e conservando a todos os momentos, como uma espécie de outro grande holofote, um caderno aberto à sua frente.

Ora, o meu encontro com o segundo escritor inspirava-me todo um outro tipo de expectativas. Não que eu assuma que a personalidade de um escritor me importe particularmente, uma vez que dando-se o caso de ler um livro, entender o autor não é bem o que me importa (de alguma forma simpatizo com a morte do autor). Mas ele parecia-me à partida, por um motivo que não posso bem explicar, mais distante. Primeiro, claro, porque não era um autor que eu tivesse lido, depois porque houve toda esta comédia de antecipação, incluindo a caminhada para chegar ao auditório, a sala inesperadamente lotada e o facto de o evento ser uma “leitura”. Quando finalmente nos sentámos nas nossas cadeiras, cada uma segurando um grande copo de água e sorrindo para o auditório que não estava preparado para aquela onda de gente e de calor – as temperaturas eram inesperadamente altas para aquela altura do ano, não havia ar condicionado, apenas umas ventoinhas, espécie de placebo, pequeno eufemismo psicológico a trair um gesto de boa vontade hospitaleira mas que na verdade não nos ia ajudar muito a sentirmo-nos mais confortáveis durante uma hora e meia de leitura –, foi ainda anunciado que o escritor, após a leitura, não estaria disponível a fazer qualquer comentário ou a responder a qualquer pergunta. A primeira observação que tenho a fazer é que o escritor tinha claramente aparência de escritor. Quer dizer, se ele passasse por mim na rua eu teria de atirar a frase, “este indivíduo é um escritor”. Ele tinha a idade certa para ser um escritor (nascera em 1940) e aparentava ser mais jovem do que na verdade era. Quando nos cruzámos à saída do auditório pude ver que ele tinha uma caneta no bolso da camisa, um objecto naquelas circunstâncias perfeitamente inútil. Ele era alto, magro, vagamente atlético e tinha a barba e o cabelo branco. Vestia um fato azul escuro e estava tão contente naquele auditório como uma girafa em areia movediça. Mas, tendo dito isto, a imensa distância que a total recusa a que lhe fossem colocadas quaisquer perguntas acabada a leitura, a total falta de interacção com o auditório, ficando a apresentação a cargo da directora da instituição, criaram a distância necessária a que o acto de ler a sua própria obra não parecesse invasivo da minha eventual experiência dessa obra. Ou seja, na sua aparição pública, ele colocou-se perfeitamente na posição do escritor: aquele cujos gestos não podem ser retirados e por isso não podem ser reduzidos ao propósito de um espectáculo público para consumo imediato. Depois da leitura acabei por ler quase todas as obras dele (não a dos excertos que ele leu naquele dia), e devo confessar que descobri, com uma dose inevitável de terror que ele não tinha tido sempre a idade que costumam ter os escritores e que escrevera pelo menos quatro romances avassaladores antes de o cabelo lhe encanecer completamente. Ou seja, a minha admiração inevitavelmente redobrou e eu nem gosto de simpatizar particularmente com escritores.

E se me perguntarem o que era o conteúdo da leitura exactamente, o que é que ele leu, eu tenho uma memória meramente circunstancial, há uma ou outra fase que ele disse que de vez em quando me faz falta porque já me lembro mal dela, o que significa que lembrar-me disto me dá o género de saudade que se tem de uma coisa que se viveu, e sei que o texto narrava algo passado numa espécie de abrigo para refugiados, onde um homem chega com uma criança, sendo que não me pareceu que se tratasse de um pai e de um filho, a descrição do momento entre a chegada e o ponto em que ambos adormecem no centro, depois a descrição de uma refeição. Importa no entanto explicar isto, para que o que eu quero dizer com esta descrição não seja mal entendido. O texto não era uma descrição destas coisas: o valor delas é que estava organizado de tal forma no texto que lhe dava a aparência de uma descrição. O escritor não incluía qualquer juízo ou alusão moral na sua descrição, e não me pareceu que ele estivesse a tentar julgar as personagens moralmente. Mas as coisas estavam ditas de tal maneira, os equilíbrios fugazes nos diálogos entre as personagens, os objectos, as situações, que o leitor era enquadrado numa certa perspectiva e era posto a ver as coisas de um certo modo.

E o que eu pretendo dizer com esta expressão, um certo modo, não tem a ver com qualquer propósito didáctico ou moral que o texto ostentasse, o escritor estava, deste ponto de vista, posto numa situação bastante perigosa, que na verdade é outra coisa difícil de encontrar num escritor, mas este era o motivo pelo qual desconfio que neste caso se tratava inequivocamente de um escritor: ele tinha trazido com ele a solidão dos leitores e dos escritores e, enquanto escritor, tinha-se posto na posição de confiar nos seus leitores, que naquele momento éramos aquelas pessoas que o estavam a ouvir naquela sala, depois de ele ter apanhado um táxi do outro lado do mundo para muitas horas depois terminar na situação em que se encontrava agora, e tinha confiado que, dando-nos um ponto de vista, a partir daí o trabalho dele terminava e era agora o nosso que tinha de começar.     

Salas de música, chávenas de café, outras coisas

 

Esta rua está cheia de músicos. É um facto que se torna evidente por volta das oito da manhã, quando o vizinho do lado toca os primeiros acordes no piano, ou quando às vezes ao fim do dia se pode ouvir o coro de St. Matthew’s, a igreja em frente. Leonard Cohen canta em Famous Blue Raincoat, New York is cold, but I like where I’m living, there’s music on Clinton street all through the evening. Também esta rua se enche de música ao fim da tarde. E há vários músicos nestas casas, as traseiras dão para jardins com macieiras cujos ramos, durante boa parte do ano, estão pesados de maçãs, num bairro construído de tijolos, ocre e castanho. A princípio esta harmonia na cor não se reconhece logo, gatos de pêlo hirsuto pontuam a paisagem, e estendem-se ao longo dos muros das casas dos músicos, sendo de vez em quando perturbados por um acorde mais dissonante.

            Um sábio chinês uma vez disse que os humanos precisavam da harmonia da música para serem humanos, ou algo deste género. Investigando este sábio chinês, descubro que um sino da época em que ele viveu (há dezenas de séculos) se conserva no British Museum. Pergunto a um entendido como soa o sino dessa época. Ele diz-me que não é um som nada agradável: a passagem do tempo degradou o material. Sinos tinham toda outra espécie de usos na China deste sábio. Podiam servir como contrapeso, permitindo assim calcular o peso exacto de qualquer objecto numa transacção comercial. Fazê-los tilintar perto de um objecto permitia que, pela amplitude das ondas sonoras, se determinasse o volume desse objecto. E há, claro, a harmonia dos sinos, que só apareceram na Europa séculos mais tarde e que enchem as ruas da cidade e dobram por rituais que por vezes desconheço. Um dia de chuva, no Inverno, à tarde, quando anoitece cedo e o som dos sinos enche a rua principal, ora aí está uma coisa que mete respeito. De onde vem esta impressão? No dobrar dos sinos esconde-se um sentido de comunidade. Mesmo uma pessoa que não seja daqui, de repente vê-se, envolvida como todos os outros, na experiência do som. Por entre as caras há uma que te vê assim como estás, parado e surpreendido, e te sorri e tu sorris de volta. Isto é uma impressão agradável: o equilíbrio momentâneo da cumplicidade entre estranhos. Ou caminhar no escuro com o som dos sinos, seguindo as luzes reflectoras da mochila do marido, que caminha um pouco à nossa frente.

            A partir de certo momento, os sinos na rua, os músicos dentro das casas, o eco do coro de dentro da igreja não bastam, e é aí que damos por nós a comprar um bilhete para um concerto com outros instrumentos que não vozes ou sinos. A sala de concertos para música de câmara mais antiga da Europa, concebida especificamente para esse propósito, fica em Oxford, em Holywell Street, e pode ser que a ideia do sábio chinês acerca da relação entre música, humanos e o conceito mais geral de humanidade encontre expressão no facto de que a Holywell Music Room foi construída em 1742 por subscrição pública. Não só a ideia de que uma comunidade inteira se juntou para pagar a construção de um lugar onde ouvir música é um sinal do apreço dos humanos por esta actividade, mas esta ideia é tanto mais notável porque a iniciativa de construir a sala nasceu na Universidade e, como quem vive aqui bem sabe, a tradição é a de que as relações entre os habitantes da cidade e a Universidade nem sempre foram – e nem sempre são – as mais cordiais. A cidade está cheia de pontos de dissonância, onde os habitantes perdem facilmente a paciência com os estudantes. Os pubs, claro, são os lugares por excelência desta dissonância e, em alguns casos, há firmes demarcações de território. Uma particularidade de Oxford é que uma percentagem gigantesca do território da cidade está fechada por detrás dos muros dos colégios, onde quem quer que não pertença a esse colégio em particular tem a entrada ou simplesmente vedada ou cuidadosamente fiscalizada. Neste sentido, com a sua aparência democrática, a Holywell Music Room é um lugar excepcional.

Holywell Music Room, Holywell Street, Oxford

Holywell Music Room, Holywell Street, Oxford

A primeira regra da sala é que não existem lugares marcados e o preço dos bilhetes é o mesmo para todos, ainda que para os Sunday Coffee Concerts haja uma pequena excepção. Algumas das pessoas que aqui estão quase todos os domingos de manhã, a partir das 11.15 da manhã, frequentam estes concertos há 30 anos, algumas delas envelheceram a vir aqui, e a organização reserva-lhes o lugar que elas preferem.

O bilhete, que custa 12£ para o público em geral e que tem um desconto de 1£ para estudantes e idosos, oferece-nos um café ou no Vaults & Garden Caffè ou no King’s Arms e a população que assiste ao concerto divide-se entre estes dois cafés de uma maneira que não é aleatória. O Vaults & Garden é o café que fica dentro da Old Congregation House, construída em 1320 e que é o lugar onde o conselho da Universidade originalmente se reunia, à data da fundação da Universidade. Ora, a fundação da universidade é eclesiástica, e a Old Congregation House é um anexo que pertence à igreja de St. Mary the Virgin, que também é propriedade da universidade e que fica exactamente no centro de Oxford, em frente a uma das bibliotecas principais, a Radcliffe Camera. Em época de exames, como em quase todos os edifícios da Universidade que possuem uma torre, os estudantes estão proibidos de subir à torre de St. Mary, não vá dar-se o caso de estes estudantes simpatizarem demasiado com a ideia de Thomas Bernhard de que a educação pode ser uma forma de aniquilação para o indivíduo.

Cerejeira na passagem entre St. Mary the Virgin e a Radcliffe Camera. Quando a cerejeira floresce: spring is coming.

Cerejeira na passagem entre St. Mary the Virgin e a Radcliffe Camera. Quando a cerejeira floresce: spring is coming.

 Além da localização, o Vaults & Garden tem outros motivos de interesse. É um dos poucos lugares em Oxford onde se pode comer uma refeição barata e de qualidade bastante razoável, uma coisa que os turistas que aqui chegam raramente descobrem, porque se é de comida barata que estão à procura correm para os restaurantes de fast food de Cornmarket ou para o Four Candles, um pub não muito longe dessa rua e não muito longe da estação de autocarro. Cerveja barata, english breakfast a 5£ e estudantes bêbados mais ou menos a qualquer hora do dia são três promessas que o Four Candles oferece aos seus clientes. Outra, não tão óbvia como as primeiras três, é que não é um mau sítio para comer nachos e beber ale ou cidra enquanto se vê futebol.

Four Candles. Sítio onde comer nachos. Cerveja barata.

Four Candles. Sítio onde comer nachos. Cerveja barata.

Nachos e futebol à parte, este pub é um ponto de encontro e despedida, e Oxford é uma cidade regida pela mão invisível que às vezes muito aleatoriamente nos atira uma dessas duas sortes: há sempre alguém novo e sempre alguém que está prestes a ir-se embora. Vim aqui a demasiadas festas de despedida de amigos para poder verdadeiramente simpatizar com este sítio. Até à estação de autocarros é uma caminhada de 200 metros e não é raro ver um grupo que se junta para a última cerveja antes da última corrida até à estação de autocarro, ajudando a arrastar sacos e malas, e aí invariavelmente o autocarro é o The Airliner (Gatwick, Heathrow) ou o National Express 737 (Luton, Stansted). Um coro de gente bêbada e vagamente chorosa, por vezes aos gritos ou a rir-se debaixo da chuva torrencial, casacos, chapéus de chuva, malas, mochilas, maletas, sapatilhas debaixo do braço, chão esburacado e lama e depois um abraço demorado, risos, e depois silêncio, cara composta, e depois o motorista do autocarro berra, “Ói, lóve! North terminal or south?”, e aí conversa acabada. Nós, que somos leitores, podíamos citar aqui os poetas, invocar a protecção da ironia e era aqui mesmo que íamos deixar cair aqueles versos, Billy Collins, “Aimless Love”, “but my heart is always restless, always ready for the next arrow,” e é então que entendemos que nenhuma protecção é possível, e que nunca vai haver elegia que nos valha, apenas tentarmos aprender bem a alegria das chegadas, os rituais por que ela se anuncia, o trabalho planeado das longas viagens, das conversas que se arrastam noite fora e que nunca vão durar que chegue, e vão ficar sempre em suspenso, as conversas que podemos ter apenas com os melhores amigos.   

O público dos coffee concerts que frequenta o Vaults & Garden é essencialmente de três tipos, os turistas, que são sempre mais ou menos um corpo estranho aos concertos (há, claro, um núcleo de habitués, caras conhecidas que se repetem mais ou menos todas as semanas), os madrugadores (o Vaults & Garden abre mais cedo do que o King’s Arms), e aqueles que assistem à missa e, um pouco mais tarde, ao concerto.

Mas nós não vamos à missa, o nosso ritual é mesmo a música, e raramente madrugamos ao domingo, por isso quase nunca pomos os pés no Vaults & Garden, e é ao King’s Arms que nos dirigimos. O King’s Arms é contíguo ao Wadham College (uma das salas do pub chama-se mesmo Wadham Room) e as paredes estão forradas de fotografias de Graduation Ceremonies de sucessivos anos e é preciso fazer um esforço para não nos sentirmos perturbados por uma das fotografias que ocupa o lugar de destaque, a do (então jovem) príncipe Carlos num fato cinzento a tirar um pint de cerveja. Da primeira vez que entrei no pub olhei para o fotografia de relance e, por qualquer lapso freudiano, pareceu-me que se tratava de uma imagem de George W. Bush. Desfeito o engano, há apenas uma fotografia em que não estou certa de não constar uma imagem de um político americano famoso: uma das fotografias mostra um grupo de rapazes e raparigas a comer pies e uma das raparigas parece-se bastante com a jovem Hillary Clinton, se bem que quem conhece os pubs de Oxford sabe que este não é o pub certo para procurar memorabilia do tempo em que Bill Clinton foi Rhodes Scholar em Oxford, mas não se está longe, é andar uns trezentos metros por Holywell Street, e virar à esquerda na placa que anuncia a Turf Tavern (sem a existência desta placa o lugar nunca seria encontrado). Uma outra placa dentro do pub disputa a possibilidade de Clinton ter travado um charro na década de ’60, neste mesmo pub. É um pub que não me agrada particularmente porque normalmente está cheio de estudantes e turistas, as cervejas são bastante comerciais (numa cidade que tem uma tradição que nunca mais acaba de produzir cervejas artesanais e onde existem uma série de marcas locais) e a comida tem exactamente o mesmo tipo de sabor do café que ali se serve – e isto não é um elogio.   

No King’s Arms o café que nos servem com o bilhete do concerto é café de filtro, café com nostalgia de chá, e se a mentalidade portuguesa a princípio sente isto como uma ofensa, uma das coisas que esta cidade aos poucos nos tira é o hábito de beber expresso – o melhor sítio para beber esse tipo de café talvez sejam os cafés dos árabes e dos libaneses em Cowley ou o The Missing Bean em Turl Street, um daqueles lugares em que a oferta apareceu por causa da procura, porque é uma das várias coffee shops que ficam a apenas um quarteirão de distância da Bodleian, a principal biblioteca da universidade. A diferença entre o The Missing Bean e quase todos os outros (com excepção da Turl Street Kitchen), é que posto entre uma loja de brinquedos (e de toda a espécie de bugigangas de colecção) e uma livraria em segunda mão, de alguma forma ela ocupa o ponto "entre" na paisagem do imaginário da infância e da juventude. E se vos está a passar pela cabeça que me esqueci de mencionar o café dos Portugueses em Covered Market (não muito longe do The Missing Bean), que tem um aspecto de dinner e se chama Brown’s Caffè (?), tirem daí o sentido, não só o café não é melhor do que o do The Missing Bean, como nos vamos sentir ofendidos pelo pastel de nata que, por reflexo condicionado, não conseguimos deixar de comprar com o café. Se é de um café e de um pastel de nata que estamos à procura, mais vale pedalarmos a distância razoável até quase ao fim de Abingdon Road e irmos ao AkiPort Shop & Café. O espaço é tal e qual aquilo que o nome promete, mais a impressão que a década de oitenta entre os Portugueses vai viver para sempre. Homens de bigode e permanente, criancinhas de vestidos de algodão cor-de-rosa e de brincos de ouro e louras platinadas de argolas nas orelhas e vários anéis nos dedos. O café é Camelo (nunca o nome da marca foi tão adequado) e é bem possível que este seja o melhor sítio para comer pastéis de nata 1400 milhas a norte de Lisboa.      

No King’s Arms, antes do concerto, bebemos café com o G. e com a S. Ele é professor na universidade e é comum viajar durante a semana. A última viagem dele foi à Índia, e explica-nos que os bairros pobres de Delhi não são piores do que os que ele viu em Atenas. Má nutrição, poluição, doenças endémicas e uma esperança de vida que não ultrapassa os cinquenta anos de idade. A diferença básica, assim posta enquanto o café nos aquece as mãos, entre ricos e pobres nas nossas sociedades mais igualitárias.    

Uma das coisas que ninguém nos explica quando compramos um bilhete para o concerto é que há dois espectáculos para serem vistos. A música por um lado e o modo como as pessoas reagem à música por outro. A sala é um semicírculo, de modo que, a parte da plateia que não fica diante do palco, fica de frente para o outro lado da plateia e de lado para o palco. Há três anos que é sempre a mesma pessoa que nos entrega o nosso bilhete na bilheteira (fica reservado de semana a semana) e eu não sei o nome dele, mas ele encontra sempre os nossos bilhetes sem que seja preciso indicar nome, morada ou mostrar-lhe um documento de identificação. Exceptuando nas alturas em que somos nós a viajar, ele está aqui sempre, de semana a semana, e em três anos, houve apenas uma semana em que não foi ele a entregar-nos o bilhete. Ele tem, claro, sempre uma piada acerca do tempo. Na Primavera pergunta-nos por que é que com este tempo viemos ao concerto, no Inverno diz-nos que o tempo está magnífico e não entende porque não ficamos lá fora. Às vezes, há situações que inesperadamente continuam de uma semana para a outra. Como quando há três semanas um homem vestido com um fato preto e uma gabardine preta distribuía panfletos para o concerto da British Chamber Orchestra no Sheldonian (o hall de cerimónias oficiais da Universidade, que na verdade funciona como tudo, como sala de conferências, de teatro, de ópera e, claro, de concertos). A S. aceitou o panfleto e não pôde deixar de fazer notar ao músico que ele parecia um mórmon. Na semana seguinte era uma mulher que distribuía os panfletos da British Chamber Orchestra, entregou-nos um, queixando-se que na semana anterior alguém fizera notar que o marido dela parecia um mórmon.

Tom Poster. Um dos grandes pianistas da actualidade. Sósia de Frederico Lourenço. 

Tom Poster. Um dos grandes pianistas da actualidade. Sósia de Frederico Lourenço. 

Não me lembro do que ouvi da primeira vez que aqui estive. Uma coisa, no entanto, é sempre evidente. As expressões nas caras das pessoas entram no humor da harmonia. Há as pessoas que fecham os olhos aos primeiros acordes e só os abrem no fim, há os chorosos, puxando dos lenços a cada intervalo entre cada movimento, há os que ouvem atentamente, com um semblante judicioso, há o sósia do J. M Coetzee que se senta no último lugar na fila de cima na ala esquerda e que encosta a cabeça à parede, virando-a ligeiramente para cima, à procura de alguma coisa que se atrasa todas as semanas. Suspeito que uma vez o Noam Chomsky estava na sala (olhos fechados, se era ele, é daqueles que segue o ritmo com o corpo). Há a estudante de música chinesa, que tira apontamentos e por vezes contempla os músicos com um ramo de flores (o músico favorito dela é de longe o violinista australiano Ben Baker). Nos meses em que estava a acabar o doutoramento este lugar foi um dos poucos sítios em que podia vir para parar de pensar em Homero. O tempo suspende-se e só existem os músicos com o seu ofício. E a música é uma arte que exige mais exposição: esta nota não pode ser repetida, ou a nota em falta não pode voltar a ser inserida. Algumas coisas que perdi ou julgava que tinha perdido têm-me sido inesperadamente devolvidas nesta sala, como coisas que são varridas para a costa depois de um naufrágio. Aqui, sentada na terceira fila, do lado direito de quem entra, tenho, semana a semana ocupado inteiramente o meu naufrágio, tentado conviver com a dura respiração da minha impaciência. E se esta fome branca que rói o peito do ouvinte se apazigua ao ouvir o segundo ou o terceiro andamento da Sonata para Arpeggione de Schubert, isto não chegou antes de aprendermos que se alguma peça de música pudesse ser a Ilíada, podia muito bem ser o quarto andamento do Quarteto para Cordas n.º 4 de Shostakovich.


Já que mencionei a Ilíada, se vocês alguma vez se perguntaram se existe neste mundo um pianista que seja o sósia do Frederico Lourenço, a resposta é sim. E é um dos pianistas mais talentosos da actualidade, Tom Poster. Ouvi-lo tocar Schubert ou Gershwin é o máximo de valor que vocês alguma vez vão receber por um investimento de 12£ (11£ se forem estudantes ou tiverem mais de 60 anos).

Mas voltando a Shostakovich, é preciso falar da primeira vez que aqui ouvimos alguma coisa dele. E isso foi o Quarteto para Cordas n.º 8. Talvez o concerto para cordas mais amado de Shostakovich, é tocado mais vezes do que todos os outros quartetos juntos, e foi um quarteto composto fora da Rússia, em Dresden, escrito em 1960, depois de ele ter visto a destruição que a Segunda Guerra trouxe à cidade (o quarteto está dedicado às vítimas do fascismo e da guerra). Depois da morte de Shostakovich descobriu-se ainda que o quarteto foi composto com um pendor altamente biográfico, e é o quarteto que acaba por revelar a faceta de dissidente do compositor. Não que o mesmo não pudesse ser dito de outros quartetos, como é o caso do n.º 4. Há uma anedota que se conta de como os membros do Quarteto Beethoven (os músicos que trabalhavam regularmente com Shostakovich) tocaram duas vezes essa peça perante a censura e das duas vezes ela não foi aprovada.

Mas há qualquer coisa acerca do oitavo quarteto que não foi pensada apenas para quem tem uma atracção por ouvir música potencialmente muito deprimente a um domingo de manhã. Se pensarmos no quarteto como uma peça biográfica, como uma forma de vida, a nossa relação com ele muda. Em alguns momentos é uma paisagem de terror, de completa impotência, e no entanto, das intuições menos evidentes, há uma exploração de resiliência, isso de que Bellow fala em As Aventuras de Augie March, quando ele diz que pensar não chega para salvar a vida ou a alma, mas o mínimo dos prémios de consolação que isso nos dá é o mundo. E isso é este quarteto de Shostakovich.

Há outras coisas que Shostakovich pode fazer pela nossa imaginação. Se alguma vez se perguntaram como seria ouvir uma sessão de Jazz no inferno, o Quarteto para Cordas n.º 13 vai dar-vos isso. E se uma sessão de Jazz no inferno por algum motivo vos faz pensar na Rússia de hoje, então temos uma certeza básica para acrescentar àquilo que imaginámos ser o universo de crenças de Shostakovich: nada na música é inofensivo, nada é desarticulado do humano, e assim que nos encaminhamos para o último acorde, e os músicos afastam cuidadosamente os arcos dos instrumentos, como especialistas que tivessem acabado de desactivar uma bomba, e o aplauso da sala cai sobre eles (se gostaram mesmo muito, não se levantem, a lei do lugar é que se bata os pés), a única coisa que podemos fazer é estarmos um pouco mais vivos do que estávamos antes, capazes de entrever o que dá para fazer com um pouco mais de amplitude e harmonia, músicos que abandonam o palco, portas que se fecham nas nossas costas, tudo tão cuidadosamente tecido que agora até somos capazes de perdoar as notas que não estavam lá, ou a insuficiência das nossas - corpos sozinhos a sério, armados com as suas ressonâncias.

Sobre não saber

 

Uma amiga que esteve uns meses a viver em Inglaterra mudou-se para Itália. Às vezes conversamos e entretemo-nos a enumerar as diferenças entre os dois países. Há o horário de trabalho, em Itália o dia começa mais tarde e trabalha-se até mais tarde. Em Inglaterra os meses de Inverno são os mais difíceis de suportar. Sobretudo para quem vem do sul e no primeiro ano. Não é tanto o frio quanto a falta de luz. No pico do Inverno os dias duram das oito da manhã às três ou quatro da tarde e as pessoas vivem dentro de casa de uma maneira que não se vive no Sul, nem no Inverno. Virginia Woolf (“On Not Knowing Greek”) explica a partir desta diferença porque é que fez muito mais sentido a tragédia ter nascido num lugar em que as pessoas têm de se aturar umas às outras com temperaturas acima dos 28º. A Primavera e o Outono são as estações em que o ano Inglês se parece mais com o ano português. Amanhece por volta das seis, sete, anoitece por volta das sete da tarde. No pico do Verão há luz entre as quatro da manhã e as dez da noite e é difícil não sentir a falta desses dias no Inverno.

A minha amiga transportou um violoncelo, três malas e vários caixotes de livros de Cambridge para Orvieto, depois de trocar uma posição de professora temporária por uma vaga na orquestra que trabalha para a Opera del Duomo di Orvieto e por um quartinho numa das ruas paralelas à catedral. Do horário inevitavelmente descemos ao temperamento das pessoas, ao modo como vivem. A experiência dela não foi boa e ambas concordamos que ela não passou tempo suficiente em Inglaterra para fazer a transição do tempo do choque cultural para a adaptação, mas a primeira coisa de que ela me fala é de nunca ter deixado de sentir falta de falar a própria língua: é como ter de usar uma máscara durante todo o tempo. Talvez não seja bem isso, mas antes um caminho muito difícil de percorrer, porque nunca se tem uma imagem muito adequada da parte da nossa identidade que é produto do lugar onde se nasce, se cresce e se é educado, e do quanto isso é importante, até sairmos. Essa imagem só chega depois. Na verdade, há uma parte considerável dessa identidade que só passa a existir por uma espécie de choque, porque a distância geográfica inevitavelmente impõe um corte, que é radical, é nesse corte que uma ideia de nós próprios como produto de uma dada cultura se torna mais exacerbada do que seria de outro modo, mesmo para aqueles que depois fazem a passagem: a passagem na verdade talvez seja um ponto entre, não bem a identidade do país que nos acolhe, mas uma ideia de Europa.  

Os galegos têm o hábito de se juntar com os irlandeses num dos pubs da cidade, a cada primeira quarta-feira do mês para tocarem e cantarem juntos, em parte porque esses irlandeses pensam neles próprios como celtas e acreditam que têm canções em comum com os galegos. Os portugueses juntam-se aos galegos porque a língua é parecida, ou porque, em alguns casos, mais simplesmente pensam neles como os portugueses de Espanha. Um galego, bêbado, às duas da manhã, num pub da Grã-Bretanha, não terá problemas em explicar esta ligação cultural evocando a noção de que a prova inegável desse facto não são tanto as línguas, que são muito próximas, mas pelo facto de que são os dois povos da península ibérica que fazem sopa com couve galega.

Couves galegas, testemunhas discretas mas importantes de um fundo cultural comum. 

Couves galegas, testemunhas discretas mas importantes de um fundo cultural comum. 

Há uma descrição num poema de Luís Cernuda em que ele fala de uma coisa que talvez seja importante para perceber isto. O poema é sobre Cortez e os Pizarros e o narrador é um dos indivíduos que partem na armada de Cortez. O narrador conta como à medida que a embarcação se vai afastando da costa de Espanha ele vê a terra a afastar-se e fala do como sente ceder o nó que o liga à terra.

Os meus primeiros meses em Inglaterra envolvem uma história com Orvieto. Tendo ganho uma bolsa para ir estudar umas semanas para Varsóvia, num curso ministrado por uma horda de pessoas oriundas de países onde nos meses de Verão se cultiva o hábito de enfiar as peúgas e depois calçar as sandálias e vestir uma camisola interior sem mangas e aos furinhos por baixo das camisas, e que repetem nestes cursos coisas que escreveram nos longos invernos de Chicago ou Cambridge (Massachussetts), sucede que o período dessa bolsa bateu exactamente com o período de depressão que, para mim, se seguiu à cedência do nó que prende as criaturas que se afastam à terra-mãe (repare-se como as autoridades nos fazem sempre carregar o passaporte, essa réstia da corda, cordão umbilical). Por muito que eu tente outras descrições, eu estava tão entusiasmada a frequentar aquele curso como uma girafa numa piscina de areia movediça. Dividindo o quarto com uma académica que encheu as minhas noites com a descrição do enredo épico de reuniões de supervisão, influências e extenuante peer-reviewing que culminaria com a publicação do seu artigo (“The Semiotics of Hair in Second Temple Judaism”) numa conhecida revista de uma universidade britânica de topo, assim, cada uma de nós a transpirar em bica, de janela aberta e ventoinha ligada, como se fosse um Verão português, e com os ecos ocasionais das vozes das poucas almas que povoavam ainda a residência da universidade, quatro andares abaixo de nós na quadra de basquetebol, eu pude sentir-me completamente sozinha e no escuro.

Quando finalmente o silêncio foi caindo, eu tive a oportunidade de reapreciar os versos iniciais daquela canção de Caetano, “Terra”, quando ele diz que gente é outra alegria, diferente das estrelas. Isto é, apreciar a devida proporção de aleatoriedade com que habitamos o universo, essa ideia metade mágica, metade perigosa, de que qualquer coisa pode acontecer, mas sem a qual não dá para viver. Muito depois de a minha colega se ter calado e ser possível distinguir um fio de baba a correr-lhe da boca para a almofada, com algum cabelo pelo meio mas sem semiótica, eu cheguei-me à janela aberta, era agora noite escura e uma grande traça repousava num dos vidros, e podia ver-se as estrelas do leste, e eu pousei o meu queixo no mármore do parapeito à espera do tipo de frio que habita as pedras dos matadouros, e fiquei a ouvir o barulho do jogo lá em baixo, os gritos ocasionais, a bola a bater contra o asfalto. No bloco em frente um académico desapertava o nó da gravata, abria a sua janela, pousava uma cerveja no parapeito e acendia um cigarro.

 Eu tenho tido sorte, porque depois disto tenho estado em lugares onde o barulho das conversas de amigos encheram as minhas noites de varanda aberta, lugares onde os estranhos de há uns dias se vêm despedir de nós dando-nos um abraço, a imaginar que isto seja um ritual muito velho, como quando os gregos de há séculos atrás viajavam e era uma ofensa cometida contra os deuses não os acolher com hospitalidade se eles se viam sozinhos numa cidade estranha, ao mesmo tempo um vislumbre da nossa vulnerabilidade, que explica também por que é que a piedade para os gregos não era, como veio a ser depois para os cristãos, inextricável de um sentido de pecado, mas um sentido partilhado, comum, de vulnerabilidade humana. Mas olhando para trás, há qualquer coisa na solidão daqueles dias que regressa como uma espécie de espiritualidade. Filhos de alguém, netos de um bando de outras pessoas, acostumados a certas ruas e com amigos que habitam certas moradas, com quem frequentamos certos cafés ou percorremos determinadas ruas, familiares com uma certa latitude, completamente habituados a sermos imediatamente inteligíveis nas inflexões mais mínimas da primeira língua em que convivemos, nos primeiros meses de distância nós viramos versão de São Sebastião, um desses não ao género do de Giovanni Baglione, disponível para ser curado, mas antes aqueles de semblante mais sofrido, porque toda e qualquer coisa pode virar mais uma seta a somar a cada um dos ínfimos vidrinhos com que a nossa identidade é reexaminada, com que repensamos o modo como vivemos, as coisas em que acreditamos e que determinam não uma rotina, mas todos os nossos rituais.

São Sebastião curado por um Anjo, Giovanni Baglione, 1603 (pormenor)

São Sebastião curado por um Anjo, Giovanni Baglione, 1603 (pormenor)

Um lugar que não temos quaisquer intenções de revisitar, que não nos disse muito, para além de umas semanas num verão aborrecido, de outro modo o único intervalo seco no primeiro verão da minha vida em que vi chover todos os dias sem uma folga, e uma pressa de nos virmos embora pode, no entanto, dar-nos alguma coisa. No caso daqueles dias, somando tudo, uma dupla distância. A negação de uma coisa de que estive à espera durante muito tempo, a ideia de que é possível alguém perder-se completamente se suficiente distância lhe for dada. Não é verdade. Há algures entre o estômago e a espinha uma pedra que é indestrutível e não pode ser removida nem por terceiros nem por nós. A regra diz que ela nos pertence a nós e a quem a quisermos confiar e isso explica porque é que não nos podemos perder inteiramente. O que me lembra a história com Orvieto. A autora que eu estava a ler nesse Verão, na verdade uma das grandes epifanias espirituais do meu aprendizado de cedência do nó de ligação à terra mãe (todo o emigrante pensa, nos primeiros tempos, que a corda foi posta à volta do pescoço, alguns descobrem com alívio que afinal era só um tornozelo ou um pulso, o que permite ir esticando, outros, os afogados, entendem logo que isto é a sério e que não há volta a dar-lhe), era Anne Carson. O livro que eu estava a ler era Glass, Irony and God. Um dos poemas do livro narra uma viagem a Orvieto e um encontro com as cenas pintadas por Luca Signorelli, em 1499, na capela da catedral que é agora conhecida como capela Signorelli. Desses painéis, uma série deles são cenas da Commedia e um deles é a cena do Purgatorio III em que os mortos reconhecem que Dante está vivo porque ele é o único que possui uma sombra. Mas quem olha para a cena vê que Signorelli atribuiu sombra a cada uma das figuras. (O duque de Orvieto, mecenas da obra, não deve ter ficado contente.) A presença de sombra é normalmente explicada pela incapacidade de Signorelli de contrariar a sua educação naturalista, ainda que o texto de Dante seja claro sobre o que é que estar morto exige em termos de corpos e intersecção de luz. A segunda parte do poema de Carson, no entanto, nega a hipótese de que isto possa servir como alguma espécie de explicação do carácter de Signorelli. Uma noite Signorelli ficou a pintar até tarde no seu estúdio. A meio, Signorelli é interrompido por um bando de homens que irrompem pela porta, trazendo o cadáver do filho de Signorelli, morto numa escaramuça. Signorelli passa a noite sentado junto ao corpo, fazendo esboços do rosto. Carson explica que a partir de então todos os anjos de Signorelli têm a mesma cara.

Mortos com sombra quando não era suposto, Luca Signorelli, 1499, Catedral de Orvieto

Mortos com sombra quando não era suposto, Luca Signorelli, 1499, Catedral de Orvieto

Quem sai do frio húmido da catedral de Orvieto para o sol e para o dia claro, numa tarde qualquer de primavera, não consegue sacudir a impressão de que não há nada de errado com Signorelli ou com esta história, que ela é sobre aquela parte da natureza humana em que todas as grandes reviravoltas nos enredos se alicerçam, e que também não é sobre o apontar de dedo de uma moralidade triste e medíocre: “eu gosto de pessoas genuínas,” no sentido das que são coerentes, que só querem ficar bem arrumadinhas consoante o que se queira delas, o que muitas vezes tem apenas a ver com a expectativa de que sejamos de certo modo consoante certos contextos apenas para que os outros se sintam agradados. Os anjos de Signorelli, todos com a mesma cara, lembram que nós não nos reduzimos a um repositório de características a partir dos quais o carácter pode ser conhecido, na diferença entre as sombras da catedral de Orvieto e a subsequente horda obcessiva de anjos com o mesmo rosto, há uma atestação da força brutal do que vamos sendo quando não queremos ou não nos podemos conformar ou acostumar com o que nos acontece, a outra coisa daqueles dias em Varsóvia, a beber café de um copo de papel com vista para um subúrbio meio em ruínas, a aleatoriedade, a alegria assustada de reconhecer de longe que um número de coisas não estão ao nosso alcance nem nunca se vão pôr sob o nosso controlo.       

Ocupantes temporários

No nº 122 de Marlborough Road, na zona do Grandpont, em Oxford, um dos apartamentos  é alugado a um ritmo mais ou menos semanal. O resto do prédio tem inquilinos mais permanentes, mas não o nº 1. Não existe qualquer anúncio que identifique o edifício como arrendamento de curta duração e o motivo pelo qual estou a par desta informação é porque vivo no andar acima. Na verdade, levou-me algum tempo até entender que se trata de uma casa alugada para estadias breves. Desconfio que o motivo pelo qual me levou tanto tempo a entender que uma das casas no prédio onde vivo não tinha um inquilino regular foi porque me mudei no princípio da primavera e esta altura coincidiu com a ocupação do prédio por uma sucessiva horda de falantes de espanhol. Entre Junho e Julho, por exemplo, coño foi a palavra mais ouvida e eu assumi naturalmente que se tratava da mesma família. Embora se trate de um prédio muito recente, o que significa que está a salvo dos dois problemas mais frequentes nas casas inglesas, bolor e má isolação do calor, de alguma forma, tendo sido bem sucedidos nisto, os deuses da construção resolveram lixar-nos um bocado assobiando para o lado na parte do isolamento acústico.

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Da superficialidade

Passamos o tempo a pensar no nosso destino, como se não existisse mais mundo para além da Lusitânia. Há uma obsessão com o passado, um passado mítico e glorioso, e há ao mesmo tempo uma obsessão pela catástrofe. Somos o país da crise, o país que passou pela glória, que degenerou e que agora (desde o século XVI) não tem mais futuro, nem capacidade de se regenerar. Pensamos sobre o nosso próprio destino sem chegarmos a qualquer tipo de pensamento aproveitável para uma regeneração futura. Temos mil diagnósticos e nenhuma solução para o presente. Vivemos o passado e o futuro sem passarmos pelo imediato. Pensamo-nos mas, como dizia Pascoaes, nem filósofos temos, pensamo-nos sofrendo, poetizando, sendo taciturnos e contemplando a catástrofe. Somos a glória de Camões e a desgraça cantada por Diogo do Couto. Perdemos a dignidade em Alcácer-Quibir para ganhar heróis feitos de promessas e de barro. Queremos ser tudo aquilo que já fomos, ou que imaginamos ter sido, e não queremos ser nada, uma vez que nem sabemos quem foram e o que fizeram aqueles portugueses que partiram para o mundo. Temos os mares e encolhemo-nos. Temos a Espanha e preferimos o medo. Explicamos o presente com cinquenta anos de ditadura, qualquer sinal de recalcamento é explicável a partir do célebre ditador. Queremos ser Europa mas preferimos ser um Portugal que ressurgirá das trevas para ser novamente Ceuta. Perdemos tanto tempo a pensar em nós mesmos que não temos tempo para pensar numa relação com o outro. Temos a originalidade portuguesa, somos completamente diferentes do outro, e acabamos sendo nada, caminhando no vazio, esbracejando no nevoeiro, esperando que um Costa ou um Zé nos guie de volta para o ouro e para as especiarias. Ambicionamos a riqueza mas escolhemos a pobreza. Para crescer, cortamos, como se para melhorar fosse necessário sofrer a penitência. Ir de joelhos a Fátima para que um dia um governo baixe os impostos de quem consumiu mais do que devia. Somos o povo com maior número de especialistas por metro quadrado e com a geração melhor preparada de sempre. Infelizmente, nem os especialistas nem a geração melhor preparada são capazes de produzir reflexão e de transformar essa reflexão para a acção, para a transformação da realidade. Falamos acerca da originalidade portuguesa, olhando com fascínio para o que é estrangeiro. Hollande seria o novo Messias, Piketty é o Marx nunca lido. Chegamos ao poder e queremos ser como os ingleses, mas sem deixarmos de ser os portugueses que que cortam não cortando nada. Adoptamos a economia de mercado mas à nossa maneira, criando uma espécie de capitalismo soviético, um mercado que não deixa de pertencer ao estado. Queremos modernizar o ensino, chamamos avaliadores estrangeiros mas não conseguimos sair da bolha, ouvimos sem ouvir, copiamos mal copiado. E todas estas aparentes contradições, todo este egocentrismo resulta numa superficialidade que nos afasta daquilo que é realmente importante: a realidade.