Ocupantes temporários
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No nº 122 de Marlborough Road, na zona do Grandpont, em Oxford, um dos apartamentos é alugado a um ritmo mais ou menos semanal. O resto do prédio tem inquilinos mais permanentes, mas não o nº 1. Não existe qualquer anúncio que identifique o edifício como arrendamento de curta duração e o motivo pelo qual estou a par desta informação é porque vivo no andar acima. Na verdade, levou-me algum tempo até entender que se trata de uma casa alugada para estadias breves. Desconfio que o motivo pelo qual me levou tanto tempo a entender que uma das casas no prédio onde vivo não tinha um inquilino regular foi porque me mudei no princípio da primavera e esta altura coincidiu com a ocupação do prédio por uma sucessiva horda de falantes de espanhol. Entre Junho e Julho, por exemplo, coño foi a palavra mais ouvida e eu assumi naturalmente que se tratava da mesma família. Embora se trate de um prédio muito recente, o que significa que está a salvo dos dois problemas mais frequentes nas casas inglesas, bolor e má isolação do calor, de alguma forma, tendo sido bem sucedidos nisto, os deuses da construção resolveram lixar-nos um bocado assobiando para o lado na parte do isolamento acústico.
Despedidas de solteiro é um motivo comum para o arrendamento da casa. Não é raro ir a entrar no prédio e dar com um coro de raparigas de mini-saia, peruca ou capacetes de viking na cabeça. A procissão normalmente é liderada pela rapariga cujo papel na cerimónia é carregar o boneco ou boneca insuflável. Uma vez, à procura da chave na mochila um destes grupos está a entrar pela outra porta (o edifício tem duas entradas) e uma delas grita-me de um modo que se houve na rua toda, apontando para outra das raparigas, “She never had a cock in her mouth, not one single time in her entire life! Can you believe it?” Eu viro-me para ela e dou-lhe a resposta que me é possível perante tão extraordinária revelação, atiro-lhe um prolongado “Coño!”, esbugalhando os olhos.
Devo notar que o vizinho de cima é muito menos tolerante a este espetáculo de humanidade diversificada, pelo que não dá para esta horda assombrar o prédio durante muito tempo. Às 11 da noite ele chama a polícia e tudo termina. O boneco é desinsuflado, as vozes convertem-se num sussurro, e rapidamente as raparigas caem no torpor da sua própria bebedeira. Se viermos a entrar em casa a essa hora, é possível vê-las pela janela. Caídas como soldados derrotados nos sofás e pelo chão. De manhã vêm os dois rapazes que limpam a casa, e todos os traços desaparecerão da carpete.
Posso vê-las porque nas casas os pisos térreos têm sempre os cortinados corridos para deixar a luz entrar. É possível atravessar um bairro inteiro ao entardecer vendo cada pessoa perdida na sua rotina. Duas casas mais abaixo há um menino que aprende a tocar violino com o irmão mais velho. Os dois rapazes na sala, de pé, enquadrados no seu ritual. Há os quartos do hotel Ethos, um hotel gerido por Búlgaros, vazios nesta altura do ano, com as camas feitas, as luzes por algum motivo acesas, lugares entretidos com a sua espera. Há sempre alguém a caminho, no meio da sua viagem, com a identidade um pouco perdida, porque não é possível vir até aqui sem nos perdermos um pouco de nós, chegarmos um pouco estonteados, um pouco estranhos. Espantados no meio da rua com os nossos casacos pesados, de nariz no ar, a tentar perceber ao certo onde estamos. Há as janelas da igreja logo ao lado, no princípio da primavera alguém partiu um dos vitrais com uma pedra. É bom quando o coro ensaia, porque a rua se enche de música e poucas coisas têm tanta força como um coro de gente a cantar.
Na casa periodicamente alugada do meu prédio há por vezes os hóspedes alemães. Os hóspedes alemães normalmente vêm em família e não raro vêm para deixar os filhos na universidade. Ficam mais ou menos uma semana ou dez dias até encontrarem alojamento para os filhos ou estes estarem instalados no college e depois partem nas suas SUV.
Houve uma vez um par de mulheres do Leste, muito provavelmente avó e neta. Levantavam-se cedo e muitas vezes tinham longas conversas pela noite fora. Riam-se ou discutiam, a mais nova escutando a mais velha, tentando argumentar ou responder. Em tom desafiante ou conciliatório. Havia nelas muita teimosia e determinação e muita reciprocidade pelo meio. Creio ter visto a rapariga uma ou outra vez na cidade depois disto. As conversas parecem-se com isto.
Há as festas de aniversário. Não há muito para dizer sobre as festas de aniversário, excepto que são uma variação sobre as despedidas de solteiro, incluindo o vizinho do andar de cima de telefone em riste como um sniper agarrado à sua arma, às 11 da noite ele dispara e tudo acabará. Ele podia só ser grumpy, ou ser só um homem com uma linha telefónica em casa, mas assim é um homem com o seu poder.
E de vez em quando vêm os amantes. Os amantes são furtivos, normalmente ficam por uma noite e partem. Não é costume fazerem muito barulho. Exceptuando uma vez, em que acordei com a impressão de que os bárbaros estavam finalmente a chegar. Corri a persiana e olhei lá para fora com os olhos míopes. Nada. Pus os óculos, vim à janela da sala. Nada ainda de Hunos no horizonte. Foi então que percebi que o barulho vinha do piso térreo. Mas era apenas um par. E não eram tanto os gemidos ou os gritos, mas o facto de que ela se ria alto como o raio. Um riso entre o perdido, o embaraçado e o desafiante.
O vizinho de cima lembrou-se de mostrar complacência pelos amantes e absteve-se de chamar a polícia porque sem dúvida se tratava de um modo de humanidade demasiado próximo. Mas uma onda de pânico tomou o prédio de assalto. Se a coisa se repetisse na noite seguinte, ponderou-se o bilhete anónimo, atirado para baixo da porta. Mas eles ficaram apenas por uma noite e desapareceram, ninguém os viu, ninguém sabe como eles seriam ou o que foi feito deles. Um par de namorados? Um casal? Dois amantes?
Há uma ou duas semanas veio o jovem casal de imigrantes italianos. Ligavam à família todos os dias pelo skype. Ele telefonava à mãe (mamma, à Torino) como se não fosse Skype e como se o telefone fosse uma invenção que ainda não tivesse chegado a Inglaterra. A mãe respondia-lhe de volta como se a sua voz tivesse de atravessar os Alpes, os Apeninos, contornar os Urais, chegar ao canal da Mancha e finalmente descer a M40. O seu rapazinho posto cá deste lado, sozinho com a sua jovem mulher, tão longe das colinas do Piemonte que o viram crescer. Depois ligavam à mãe dela (mamma também, mas não consegui perceber muito bem onde). O conteúdo da conversa era repetido a ambas as famílias. Há bolognese para o jantar. A casa é segura e não é longe do centro. Ainda não encontrámos nenhuma casa decente, mas amanhã vamos ver mais duas. É, os preços são altos, mas estamos ainda à procura, mas não estejam preocupados, alguma coisa há-de aparecer. Depois as conversas de telefone com a família acabam e vem aquele silêncio súbito, que é quando se percebe que estamos sozinhos noutro país, numa sala estranha, com a nossa vida a mudar depressa e connosco a fingir que está tudo vigiado, que podemos segurar o travão. Os primeiros dias como emigrante, a solidão e a excitação assustada desses dias. Tudo fantástico, não fosse eu ter um balde homérico de neoanálise para ler e ter estes dois a palrar em redor da minha cabeça.
Ela era leitora de Saramago. No parapeito da janela, que neste prédio são baixas e têm um espaço onde nos podemos sentar, vi uma vez a rapariga a ler La Caverna na edição da Einaudi. No último dia em que eles ocuparam a casa ela estava quase a acabar o livro, que de manhã tinha ficado no parapeito, no último punhado de páginas com o marcador puxado para fora, faca perdida, atirada para a travessia das páginas, concentrada na narrativa que continua a avançar sucessivamente, acontecimento após acontecimento, tentando seguir o fio de Ariadne do enredo, de onde vem a expressão que aqui importa, tentar não perder o fio à meada.