A ÚLTIMA FRÁGIL PÁTINA DE REBELIÃO CAIU!

Numa carta escrita a Jonathan Franzen David Foster Wallace escreve: “The last thin patina of rebelliousness has fallen off. I am frightfully and thoroughly conventional.” Esta frase veio-me à memória numa altura em que me ocorreu a possibilidade de que nunca mais voltaria a entreter quaisquer pensamentos que envolvessem apartamentos sobre cafés em Casablanca, com ligações obscuras a Paris, a gabardine e o cigarro de Rick Blaine e as instruções de Ilsa Lund para Sam: tocar a mesma música outra vez. Isto serve para dizer, que, ainda que nestas circunstâncias não me seja possível proferir um here’s looking at you, kid no tom certo, com um sentido de estilo que Humphrey Bogart aprovaria, o que eu reconheço no momento em que as engrenagens das minhas circunstâncias em particular, este fim de tarde, neste ponto em que quatro ruas se encontram, em que as engrenagens complicadas do dia desaceleram e são forçadas a parar, gente que abandona escritórios, bibliotecas oficinas, o estrondo da porta do café nas minhas costas, o ar incomodado do barista, que eu tenha pretensões a ocupar este café depois das 19:00, hora a que ele tão respeitavelmente, tão familiarmente, fecha, tudo isto é uma outra versão ainda de the same old story, para o que aqui serve o meu argumento em particular, o facto de que reconheço agora, consigo ver mais nitidamente, aquele fio de lã que não é frágil e que liga o sentido de quem sou a um sentimento de revolta. A minha revolta é vital. Por exemplo, quando eu descer a rua, e parar para olhar na montra da OxFam onde vai estar uma cópia em segunda mão do primeiro volume do Quarteto de Alexandria, revolta, uma medida de raiva triste menos o ressabiar-me, é o que me há-de ocorrer quando me confrontar com o pensamento de que não tornarei a ler Justine pela primeira vez, e que, quando eu ler Justine pela segunda vez, eu serei diferente, a cidade que me rodeia será diferente, a maneira como se faz tarde, as circunstâncias.

Lugar onde quatro ruas se encontram.

Lugar onde quatro ruas se encontram.

    Quanto mais tempo passamos vivos, mais revolta é preciso sentir. A sua função é preserva-nos. E aqui podíamos, claro, juntar o caveat de Montaigne sobre a cólera, a irmã da revolta. Ao recordar o que Aristoteles diz sobre o assunto (que a cólera serve a virtude e a coragem como uma arma), Montaigne diz-nos que os que discordam disto tendem a afirmar que a cólera é todo outro género de arma: enquanto normalmente somos nós a manipulá-las, a cólera manobra-nos a nós. Montaigne é ágil, como um gato. Um sentimento de revolta é preciso, actua sobre o luto, a tristeza, a ansiedade, a angústia, a depressão, como uma fina película de ironia com força suficiente para nos separar de nós mesmos na porção necessária, isto é, quando te perguntares o que existe entre ti e a aniquilação pode bem ser o sentimento de revolta que sentes ao reconheceres a inadequação entre estas circunstâncias em particular e, por exemplo, o mundo de Casablanca. O mundo de Casablanca não existe aqui, o tempo e o espaço mental da minha liberdade para revisitar mentalmente duas ou três falas que sei de cor, e no entanto, posso apreciar a ironia de pensar em Casablanca aqui e agora. Isto é revolta. E com isso vem a resistência, apenas a quantidade necessária de resistência para que estar vivo possa seguir o seu curso. E agora que o teu pulso acelerou, e que sei que é inconveniente mostrar fraqueza (tudo isto repousa à superfície), sabes para que serve sentir revolta e é melhor do que Montaigne, manipulador e manipulado. 

    O mundo ainda não deu a volta para fazer tanto sentido quanto em Casablanca, podemos levar vários anos até percorrer toda a distância necessária entre o ponto A e o ponto B, isto é, o tempo e o espaço e tudo o que ainda tens para viver entre ti e a aniquilação, aquilo que estás a ver agora e que golpeia a tua atenção não da maneira como o pequeno esteta de trazer por casa que há em ti tinha antecipado (com a suavidade da descrição de Vergílio ao aportar em Brindisi no princípio de A Morte de Vergílio), mas em sucessivas ondas de dor que fazem um trabalho de machado a partir de dentro, volteando no interior do esterno, no interior do crânio. Agora que reduziste tudo ao essencial tens de reconhecer que o essencial é ainda demasiado: uma questão de coração e cabeça.

Justine na montra.

Justine na montra.

    Tony Morrison diz, numa entrevista dada à BBC World Service Book Club, acerca do processo de escrever Beloved, que quando se está a escrever you don’t go over your emotions, you go through them. Nos seus ensaios, Montaigne volta ao tema da cólera, que nem sempre está ligada a um sentido de revolta, e contradiz-se. É preciso conter a nossa revolta, diz o filósofo algures. E de novo, algumas páginas mais tarde, às vezes o melhor é dar espaço às nossas emoções, deixá-las seguir o seu curso. Mas não é disto que eu estou a falar aqui. Eu estou a falar da necessidade de um sentimento íntimo, privado, de revolta, que é preciso cultivar instintivamente, para aprender a resistir à erosão dos dias. Neste sentido, a revolta de que estou a falar nada tem que ver com a incapacidade sofrida pelo respeitável Monsieur de Montaigne de se conter e não castigar fisicamente os criados quando estes falhavam em algum aspecto do seu trabalho. Eu estou falar dessa espécie de revolta que pode ou não ter um pé na cólera, e que serve para preservar as coisas que realmente me importam, o meu amor, a minha criatividade, a habilidade de sentir alguma ternura pelo mundo, sem a qual não é possível experimentar uma certa forma de felicidade. Going through them.

PRIMO LEVI EM TEMPOS DE CÓLERA

    Ler Platão é uma actividade que se persegue com tempo entre mãos. Um amigo meu, um académico dinamarquês que está a escrever uma tese sobre Platão, tende a racionalizar qualquer problema pensando em Platão. Durante uma longa parte do tempo em que ambos estávamos a escrever as nossas teses no mesmo país, adquirimos o costume de nos encontrarmos todas as manhãs. Ele, assumia o papel de Sócrates, falava-me em Platão e eu respondia-lhe em Homero. Platão tinha questões com poetas, como reagiria ele à capa de hoje do inenarrável Daily Mirror (talvez em modo Bukowski: I see where I have made plenty of poets/ but not so very much/ poetry)? O sistema político em que vivemos hoje é uma democracia? Não, Platão descreveria isto como uma oligarquia. Mas concordarias que um poeta pode descrever uma mesa ou uma cadeira mas não construí-la? 

    Perguntas deste tipo povoavam as nossas sessões e estas sessões às vezes levavam a becos sem saída, quando tínhamos sorte, a discussões sobre os problemas mais concretos, sobre coisas que mais nos interessavam, ou que na altura nos preocupavam profundamente. Porquê ler Platão? Platão é um autor que nos obriga a perguntarmo-nos todas as perguntas que importam: o que é justo?, qual a melhor maneira de viver na cidade?, qual a melhor maneira de governar a cidade?, como podemos viver bem a nossa vida?, como devemos vivê-la?, qual o papel do amor nas nossas vidas?, na nossa moral? Se suspeitarmos de Platão nas doses certas, nas quantidades certas, vamos amá-lo para o resto da vida. Quando somos ainda muito jovens e lemos o Fédon não temos como não acreditar que Sócrates inventou o espírito humano. Não importa tudo o que vamos aprender a seguir, não importa se depois disso não temos como não amar a chateza sóbria, pragmática e honesta de Aristóteles, que ao contrário de Platão tinha uma fé inabalável na habilidade dos humanos para aprender a bondade, o que às vezes penso é o único grande ponto de ruptura entre Aristóteles e Platão, o motivo pelo qual o discípulo se afasta do mestre.  

    Ler Platão é uma actividade que devemos perseguir sobretudo no que um amigo meu costuma definir com recurso a Ruy Belo, em tempo detergente. Uma porção considerável das nossas vidas decorre em tempo detergente. Devemos ler Platão em qualquer altura, mas sobretudo em tempo detergente. Quando estamos deprimidos, quando carregamos connosco a humilhação de uma dor cinzenta, os nossos sonhos quando morrem, a esperança de um tempo inteiramente de portas fechadas, um amor que reconhecemos ao olhar para a sua cara doente que ele vai apodrecer até se tornar na nossa maldade, quando nos sentimos rodeados de mediocridade e a única resposta ao nosso alcance é a da reciprocidade básica de todos os nossos instintos banais, esta desarrumação em que temos dissipado os dias, é aí que mais precisamos de Platão. Devemos ler Platão quando reconhecemos o pior de nós ao virar de cada esquina, Platão pode ajudar-nos a combater o pior da nossa personalidade, conceder-nos, se mais nada, a distância vital da ironia. 

    Enquanto a lenta abolição de uma educação em artes liberais não for inteiramente substituída pelo cenário catastrófico de um treino escolar que sirva simplesmente as necessidades de um mercado de trabalho, uma educação que não permita a um indivíduo inventar-se a ele próprio, que incentive apenas a demagogia triste de estudos que inspirem uma mentalidade meramente utilitária, o Banquete continuará a povoar a imaginação de adolescentes pelo mundo fora, com respeitáveis figuras públicas da Atenas do século V em versão drunk & horny men invent love, e o inegável sex appeal de Sócrates, definido por Alcibíades como inversamente proporcional à sua aparência física, continuará a inspirar esperanças talvez pouco razoáveis em todos os adolescentes que não lograram ficar bem em nenhuma fotografia. 

Capa do Better Book Titles para o Symposium. 

Capa do Better Book Titles para o Symposium. 

    Ler o Banquete é como adoecer. Não é uma descrição apelativa, esta, mas é o que é. Outras coisas nos serão dadas enquanto a maleita faz o seu trabalho. A mais importante delas relaciona-se com a descrição que se pode ler na capa da edição deste discurso para a série Penguin Books Great Ideas: “our human race can only achieve happiness if love reaches its conclusion.” Esta edição contém uma das traduções mais agradáveis e mais bem conseguidas do texto platónico, a de Christopher Gill. É possível adquiri-la por cinquenta cêntimos de libra, um preço que, já agora, nos lembra o quão saudável é desprezar livros.

    O que é que se discute neste diálogo? O papel do amor na formação moral do indivíduo (qualquer introdução à obra dirá que, mais do que prescrições pronunciadas a partir de uma posição de autoridade moral, o que preocupa Platão é o processo, como é que o amor faz parte desse processo), o seu papel na felicidade, na criatividade, no (re)conhecimento da nossa natureza e no (re)conhecimento da dos outros. O papel do amor na vida da mente, na vida social e política. Quando chegarmos ao fim do diálogo, e estivermos mesmo nas últimas páginas, outro pensamento terá ganhado raiz. Enquanto Sócrates se diverte a desfazer a ingenuidade de Ágaton (o amor é um deus belo), com a perícia do professor que será sempre percebido pelos seus alunos como o super-herói, a ideia básica na sequência lógica de todas as que a precederam ganha forma. O amor é uma forma de desejo, a necessidade de alguma coisa. Uma das personagens, o tragediógrafo Aristófanes, já tinha aludido a isto ao narrar o mito das almas gémeas: os humanos são apenas metade dos humanos originais (um crítico da BBC em tempos imaginou estes humanos como sendo um pouco como o homem de Leonardo Da Vinci e esta ideia agrada-me), e foram separados ao meio pelos deuses, porque estes temem a arrogância da criatura. Assim, os humanos não se podem reunir como dantes, e morrem com a ausência do outro. Os deuses resolvem isto com uma modificação nos orgãos genitais, permitindo a cada alma gémea que esta se reúna à sua, uma vez encontrada. Esta abstracção tão literal encerra outra, mais vaga. O desejo é uma coisa que move a nossa perseguição de cada descoberta, os caminhos que escolhemos. 

Platão, Banquete, Penguin Books Great Ideas, Christopher Gill (trad.)

Platão, Banquete, Penguin Books Great Ideas, Christopher Gill (trad.)

    Há lugares a que vamos chegar sem escolha. Num dos poemas mais belos do século passado, “I dream I am the death of Orpheus”, a poeta americana Adrienne Rich explica a sensação que isto causa:

I am a woman in the prime of life, with certain powers
and those powers severely limited
by authorities whose faces I rarely see. 
I am a woman in the prime of life
driving her dead poet in a black Rolls-Royce
through a landscape of twilight and thorns.

Adrienne Rich em The Will to Change, Norton, 1971.

    Aos lugares a que vamos chegar sem escolha, importa o nosso percurso, para nos lembrarmos bem de quem julgamos que somos, para sermos capazes de sobreviver à imposição dos factos da vida sobre a nossa personalidade. Não o que é esperado de nós, não as expectativas das “authorities whose faces I rarely see”, mas o que carregamos connosco. No alongado olhar que Platão demora sobre o espírito humano no Banquete pode ler-se que o amor (Eros) nasceu de um encontro fortuito entre a Pobreza e o Recurso (sendo que o Recurso etava embriagado e a Pobreza tira vantagem). Segundo Sócrates, é por isso que o amor é sempre pobre, não é nem sensível nem belo, como a ingenuidade de Ágaton sugere, mas seco, com a pele endurecida, sem sapatos nem casa. E Sócrates diz-nos que o amor dorme no chão, sem cama, nos limiares das portas ou pelos caminhos. E porque ele partilha da natureza da mãe, ele tem sempre necessidade de alguma coisa. No que se parece com o pai, ele anseia por apoderar-se do que é bom e belo. Sócrates diz: o amor é corajoso, impetuoso e intenso, um caçador formidável, sempre a preparar o próximo truque. E conclui: um amante da sabedoria para sempre, esperto a manipular magia, drogas e sofismas. O amor, segundo Platão/ Sócrates, é a nossa mente colorida no grau mais interessante. O amor é o desejo, constantemente. E há nele algo de intrinsecamente divertido, vindo do lado do riso (a embriaguez do recurso, essa metáfora que explica o lado hermético do amor), um pendor do estado de ser livre quando este se parece com a descoberta da alegria, com as fontes da felicidade.  

    Sobre Sócrates circulam anedotas acerca de quando ele cumpriu o serviço militar, de como ele era capaz de passar um dia e uma noite parado no mesmo sítio, a meditar sobre um assunto em pleno tempo de batalha. A vida moral de um indivíduo exige uma imensa quantidade de tempo para se desenvolver, uma imensa quantidade de solidão para que se chegue a distinguir com nitidez os contornos do vasto continente da nossa imaginação que pode ser iluminado pelo nosso amor. O discurso de Platão é um tributo a isso. Sócrates, se acreditarmos no relato em terceira pessoa de Platão, vislumbrou-o numa noite de vinho e insónia em Atenas, na casa de Ágaton, talvez sobretudo na antecipação da humilhação despeitada e desajeitada de um amante que não consegue instilar nele a quantidade necessária de igualdade para que o amor funcione. Sócrates não ama Alcibíades, e enche a noite com um discurso assente sobre a sabedoria de uma amante anterior, Diotima, com a memória de uma longa conversa, que abunda na lógica da dialéctica, pela qual é hábito examinar-se alguém a uma certa distância. Há que amar o bom senso de Platão, que na presença e no discurso de Alcibíades desautoriza Sócrates apenas o suficiente para que nos lembremos o que é um amante, e que também o super-herói vive à escala humana. 

Orfeu e Eurídice, Rodin, 1893. Orfeu é descartado por Platão como exemplo negativo de amante. Os deuses pensavam que ele era soft: tratava-se apenas de um músico, que não teve a coragem de morrer de verdade por Eurídice, recorrendo a um su…

Orfeu e Eurídice, Rodin, 1893. Orfeu é descartado por Platão como exemplo negativo de amante. Os deuses pensavam que ele era soft: tratava-se apenas de um músico, que não teve a coragem de morrer de verdade por Eurídice, recorrendo a um subterfúgio para descer ao Hades que lhe permitiu entrar no submundo sem estar de facto morto (cf. a este respeito o conto de M. Kundera, "Symposium": "No fim do verdadeiro amor está a morte, e só o amor que termina na morte é amor."). Segundo Platão, o castigo que os deuses reservam a Orfeu pela transgressão é a morte às mãos de mulheres. 

    Em A Tabela Periódica, Primo Levi no capítulo dedicado ao elemento do fósforo, recorda um amor de juventude. Sobre o momento da separação definitiva, quando o que não pôde ser evitado, regressa, à distância de anos, no trabalho da examinação tardia, como uma revelação, Levi escreve:

I felt growing within me, perhaps for the first time, a nauseating sensation of emptiness: so this is what it meant to be different: this was the price for being the salt of the earth. To carry on your cross bar a girl you desire and be so far from her as not to be able even to fall in love with her: carry her on your crossbar along Viale Gorizia to help her belong to someone else, and vanish from my life. 

Primo Levi, The Periodic Table, Raymond Rosenthal (trad.), Penguin Books,  2000.

    Platão é o autor a quem se atribui aquela máxima sobre a vida que não é examinada não valer a pena ser vivida (o contrário é ainda verdade, uma vida insuportavelmente examinada também não pode ser vivida). Primo Levi é outro autor que merece ser lido em tempo de crise. A única coisa para que o exame das perguntas de Sócrates, as suas soluções, não nos preparam, podemos encontrá-la extremely loud & incredibly close na autobiografia de Primo Levi, que o carácter moral de um homem pode estar certo, ser certo (a escrita de Primo Levi obedece ao critério da tríade platónica: bom, belo (mais do que tudo talvez na ideia da redenção do horror pela intuição de que tudo o que é humano não nos é alheio e o que é digno de condenação precisa de ser olhado de frente, de olhos bem abertos) e justo), ser de uma qualidade na ordem do que o discurso de Platão pretende inspirar, e ainda assim o resultado continuar a ser a dor inesgotável cuja única condição para ser experimentada é estar vivo. Mas, é também neste aspecto que a nemesis de Platão pode ser encontrada. Ao ler Primo Levi em tempos de cólera, lembramo-nos à distância do eco de outro escritor judeu, Saul Bellow em As Aventuras de Augie March, naquela cena em que uma das personagens diz a Augie que, no fim das contas, não é possível salvar a vida ou o espírito por pensar, mas, se pensarmos, o mínimo dos prémios de consolação é o mundo. 

    Não existe absolutamente nada de frívolo ou de acessório no Banquete de Platão. Continuará a ser, antes e depois da tonalidade de qualquer tempo, uma dessas ferramentas preciosas para a perseguição do lento e difícil trabalho de nos mantermos humanos. E se vocês se estão a perguntar porquê, aqui podíamos acabar com o Banquete de Kundera:

Just because it is groundless. If there had been a reason, it would have been possible to find it in advance, and it would have been possible to determine my action in advance. It’s just because of this groundlessness that a tiny scrap of freedom is granted us, for which we must untiringly reach out, so that in this world of iron laws there should remain a little human disorder. 

Milan Kundera, “Symposium”, Laughable Loves, Suzanne Rappaport (trad.), Faber & Faber,  1999. 

 Oxford, 6 de Agosto de 2015 & 17 de Agosto de 2015

Eu e as minhas irmãs

I. Quando o Algarve era só sul e os casamentos duravam para sempre

 

Eu e as minhas irmãs nunca distinguimos o barlavento do sotavento. Durante muito tempo nenhuma de nós sabia qual era qual e o Algarve era só um para nós.

Tanto podia o barlavento ser sotavento como o sotavento barlavento, eram duas palavras que não nos diziam absolutamente nada. Foi só depois de começarmos a amar assolapadamente o algarve das ilhas e das noites sem vento que eu finalmente me comecei a preocupar com tal assunto e hoje posso dizer que sei onde começa um e acaba o outro. E nunca mais me enganei.

Pensavanisto enquanto olhava para as pequeninas ondas que rebentavam na areia da praia de um qualquer barlavento. O marido, preso na paisagem,  mesmo em frente à água, andava à cata de condelipas para o nosso jantar.

É um marido como deve ser: ama-me com o seu amor de marido. É um amor honesto, dentro dos limites canónicos. Ama-me porque sou mulher, a sua mulher; mas não me pode admirar porque a sua mulher não é um homem. Caso fosse, admirar-me-ia mas não me poderiaamar (estas nuances são como nuvens). Falta então, pela força das circunstâncias, admiração ao seu amor e faltando essa admiração fica a faltar o amor.

Mas à noite ele abre as condelipas, põe a mesa e despeja o vinho. Porque isso pode um marido fazer pela mulher que ama mas não admira.

E eu, enquanto como e bebo o vinho, fico a pensar nas mulheres em geral. Nas minhas irmãs e na nossa dificuldade de anos em chamar barlavento ao barlavento, sotavento ao sotavento. Penso nas condelipas que ele desenterrou e trouxe e cozinhou, e devia estar tão feliz e estou, mas penso nas mulheres em geral e pergunto:

- Porque é que ainda estamos juntos?

- Porque gostamos de comer condelipas e beber vinho.

Ele é prático como um homem que sabe que no fim do dia o que conta é o que se come e o que se bebe.

- Se o amor já se foi… - insisto, algo descabelada, com o desnorteamento próprio de quem não sabe onde ficam os mais básicos pontos cardeais.

- Mas ficou a amizade, a admiração…

Pela janela entra uma metade de lua a fazer-me cócegas na planta dos pés, o que me provocade imediato uma tremendavontade de rir.

 

II

 

Eu e as minhas irmãs comprámos uma quinta a cair aos bocados. Tínhamos vendido a casa da cidade e estávamos a nadar em dinheiro.

Assim que chegámos, empregámos pessoal para arar, plantar, regar e dar de comer às galinhas; comprámos tratores, debulhadoras, foices, pregos, tesouras, tudo o que é suposto haver numa quinta.

Depois, sem sabermos o que fazer, despedimos os empregados, despachámos os animais e só sobrou o jardineiro que cuida das rosas.

Estamos espantadas com a vida no campo. Que adoramos, não há dúvida. Mas tem os seus quês. A irmã do meio preocupa-nos: anda pálida e com olheiras fundas. A gente pinta-a para disfarçar, a ver se não aparece assim às pessoas da aldeia, mas não serve de grande coisa. Parece que se vai partir a cada passo que dá. Tudo a enerva no campo, desde o silêncio ao mais pequeno barulho, acho que ela ainda morre por cá.

A casa está a cair. Toda presa por fios e fita-cola, por assim dizer. Quando tomamos o pequeno-almoço, uma de nós agarra a parede para as outras duas comerem o pão em paz. E quando acabamos, uma de nós duas toma a vez da outra para que ela possa comer sem sobressaltos . Nunca a das olheiras. Essa vai estender-seao comprido, esgotada, numa chaise longue toda rota.

Alimentamo-nos de pão e água. Não precisamos de mais nada. Às vezes, um vizinho mata um pato e vem oferecê-lo, rodeado de arroze chouriço bravo, mas não gostamos de violência e mortandade e a irmã das olheiras começa a vomitar ainda o cheiro da carne vem longe.

Sou eu a mais velha e sendo a mais velha sou também a mais responsável; a irmã mais nova é membro de uma associação de observadores de nuvens e para ela está sempre tudo bem.

A cada dia que passa, o campo e a quinta trazem-nos novas descobertas e até a irmã das olheiras quando tem forças para falar diz que gosta muito da natureza.

Quem nos visita espanta-se connosco e com o que por aqui encontra. Mas somos tão bonitas, uma de nós tão pálida, outra tão sonhadora,  e eu tão responsável que ninguém se atreve a comentar coisa alguma sobre o que quer que seja.

RELATO DE UM DIA DE AUDIÊNCIAS

I read the news today oh boy 
The Beatles, “A Day In The Life” 

 

Em meu trabalho não sou mais do que Diane: a infalível e invisível secretaria com quem o agente do FBI Dale Cooper, na série Twin Peaks, tantas vezes fala por intermédio de um gravador de voz.  

Apenas hoje me denomino Diane, talvez amanhã seja diferente, talvez eu perceba, afinal, que a comparação é imprópria, ridícula. Nasci hoje Diane enquanto escutava, do gabinete, a audiência que ocorria na sala de audiências. Entre o gabinete e a sala de audiências não há mais do que um tapume de madeira que nem sequer chega até ao teto.   

Enquanto escutava trechos da audiência a história que foi se revelando por um momento me pareceu um terreno fértil para a literatura. Todos os dias escritores para si próprios escutam algo e pensam daria um bom conto ou romance ou poema. Foi o que ocorreu hoje. Daria uma boa narrativa, pensei e, ao tentar iniciá-la, veio a denominação que abre o texto e que agora cunharei com uma singela e fácil erudição. Chamai-me Diane Ismael.  

O cenário é um tribunal do interior paulista. O tribunal de uma cidade com vinte mil habitantes. A cidade, cruzada por névoas, fica no cimo de um monte. O prédio do tribunal, cedido pela prefeitura, fica num antigo galpão de festas. O gabinete onde trabalho fica atrás do palco, no local outrora dedicado aos camarins. 

Estava de olho nessa audiência desde a semana anterior, quando a advogada da parte requerida pediu o seu adiamento devido a um suposto cerceamento do contraditório. Coube a mim a redação da decisão que manteve o ato. A maior parte do que faço é ser um escritor fantasma de despachos, decisões e sentenças. Um afazer que me colocaria como um confortável personagem na literatura contemporânea: uma ausência presente ou talvez o oposto, um dos tais mordomos invisíveis aludidos por Fernando Pessoa, com uma variante que permitiria ao escritor atribuir a mim – Diane Ismael – o seu lirismo, a sua cultura. Passo os dias como um escritor fantasma e as noites como poeta.  

Antes da audiência, circulando pelos corredores do fórum, vi duas das postulantes: duas irmãs jovens – a primogênita com idade estimada entre 25 e 30 anos; a mais jovem com não mais do que 20. A mais velha com os cabelos caindo para o castanho. A caçula com cabelos negros e com óculos de uma armação enorme que as pessoas usam nos dias de hoje, inteligentes para si próprias e para os outros igual tento ser escritor para mim mesmo e para os outros. Os olhos da mais velha, desnudos, avermelhados, apresentam uma umidade devastada de logo depois do choro.  

Antes da audiência, agora oculto na coxia, escuto as explicações da advogada das garotas supracitadas. Sãs as requeridas. Vêm de muito longe, do Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro, ao contrário do que elas pensavam, é mais frio do que a cidade cercada de neblina. Elas vêm de avião, alugam um carro na cidade vizinha, dirigem até ao fórum, a audiência não pode se alongar, passagens compradas para regressarem ao Rio de Janeiro ainda hoje, a mais jovem – caloura – teve de ausentar-se da faculdade, a primogênita precisou pedir afastamento na repartição em que trabalha, horríveis, cansativas preparações, um processo desses, tão massacrante às suas clientes, exige que a justiça seja compreensiva, serena, conciliadora, embora desde já advirta: para cá não viemos em busca de um acordo, a posição de minhas clientes é irrevogável, não há a  menor chance delas desistirem da causa ou entregarem-se a barganhas. 

A outra parte-personagem, a requerente, é uma mulher para a qual cabe uma imagem roubada de Eugênio de Andrade: sobre o seu rosto não fora só o tempo que passara, também as cabras li pisaram fundo. Doravante, passarei a chamá-la de mulher de rosto pisoteado, variando, para tornar virtuosa a leitura, o adjetivo de parágrafo em parágrafo. Ao seu lado, um advogado calvo, olhos de um azul gélido, um tremor de doença degenerativa nos dedos sujos de nicotina. 

A primeira pessoa a ser ouvida, e cujo relato Diane Ismael levaria ao leitor sem estar dotado da necessária onisciência, tem a voz de uma mulher na casa de seus quarenta anos. Sei que é uma testemunha da mulher que teve o rosto adulterado por animais endurecidos porque as testemunhas da parte requerente são sempre as primeiras a serem ouvidas.  

Paradoxos da oralidade: os depoentes-narradores com melhor conhecimento da causa, não raro, são aqueles que guardam parentesco ou mantém um relacionamento de íntima amizade ou inimizade notória com os pleiteantes, condição que os torna suspeitos. É a primeira alegação da advogada das requeridas, a testemunha é amiga íntima da mulher massacrada, ela nega, o advogado de olhos gélidos diz que o seu testemunho é essencial para a obtenção da preciosa verdade real, a justiça pergunta acerca do grau da amizade entre a depoente e a requerida. Lança mão de exemplos: trocam confidências, uma frequenta a casa da outra? A resposta é torta: houve um tempo em que trocávamos confidências, mas nunca estive em sua casa e tampouco ela na minha, conversávamos na faculdade de filosofia, durante os intervalos, é normal as pessoas conversarem na faculdade de filosofia, foi há muito tempo, décadas, antes das jovens de agora serem nascidas.  

A partir de determinado momento todas as perguntas parecem orbitar em torno da existência de um homem morto. O homem morto, inadvertidamente, torna-se o objeto do processo-narrativa. Descubro que as jovens vindas do Rio de Janeiro são as suas filhas. Todos eles viveram no Rio de Janeiro, mas nunca ao mesmo tempo. Diane Ismael apresenta ao leitor uma vaga idéia de desterro, de afetos extraviados. 

Após o depoimento da mulher sou convocado à sala de audiência para atender a um pedido da justiça. Algo alheio ao processo. Desço os rangentes degraus que separam o palco-camarim-gabinete, no alto, da mesa da justiça no chão. A justiça põe a sua assinatura num documento escrito por mim. Movimento de caneta rápidos como os de um esgrimista. Sinto olhos em mim. São as jovens, os advogados, a mulher de rosto atropelado. Torno-me parte ativa da narrativa da audiência justo no momento em que nada acontece, mas de todo modo está operada a conexão: eu, narrador ausente, torno-me uma presença para os protagonistas do relato. Talvez mais tarde, se algum deles me encontrasse depois da audiência, talvez num hotel, bebendo drinks, algo que comumente não faço mas que a persona assumida pode fazer, talvez se algum desses protagonistas me encontrasse bebendo um martini enquanto ele ao meu lado no balcão bebe manhattans, talvez se isso acontecesse surgiria um vaga possibilidade de eu ser mais do que Diane e ainda mais do que Diane Ismael, talvez me tornasse Diane Ismael Marlowe ou Diane Ismael Spade.  

Papéis assinados. Subo novamente as escadas rangentes, rumo ao palco-coxia, desapareço. Estão todos rigorosamente instalados em seus lugares. 

Vêm as testemunhas seguintes. São ouvidos, na sequência, dois agentes funerários, duas faxineiras, uma amiga da família. Breve resumo do que captei de seus testemunhos: 

Agentes: não se lembram exatamente quem pagou pelos serviços funerários, chegaram a receber um cheque pelo trabalho, mas, por circunstâncias nebulosas, a cártula de cheque foi rasgada e o pagamento se deu com dinheiro, origem irrastreável, durante os serviços prestados tratou com a mulher de rosto devastado, mas havia outras pessoas, a mãe das garotas e um homem que não sabe exatamente identificar (penso num homem com um tapa-olhos para tornar a narrativa subitamente adequada aos padrões noir – um homem ao estilo de James Joyce, James Joyce tem a cara de quem saiu de uma narrativa policial dos anos 30, um comissário de polícia irlandês, corrupto, violento);  

Faxineiras: havia sujeira no local da morte, sangue, era impossível a qualquer uma delas fazer a limpeza sozinha – o que em mim, narrador oculto, lança a possibilidade do suicídio, ora repassada ao leitor, quem as pagou foi a mulher de rosto estéril, disse que podiam ficar com vários dos despojos do morto, roupas, muitas roupas, todas pertencentes ao cadáver, um paletó, um relógio, podiam pegar mais, havia uma fotografia do morto num porta-retrato, estava acompanhado de uma criança, uma menina, possivelmente umas das requeridas, não sabe dizer qual; 

Amiga da família: não sabe o motivo do morto ter saído do Rio de Janeiro e vir morrer na cidade sitiada pela névoa; ele e a mulher de rosto roubado tinham um relacionamento, mas o morto era um homem caprichoso, de rompantes, colérico, num dos últimos contatos que teve com ele dissera que estava cansado das pessoas egoístas, não sabe se ele se referia à mulher de rosto destruído, o corpo do morto demorou vários dias para ser encontrado, havia sangue, mas não foi suicídio, o legista certificou, mas havia muito sangue, pode haver sangue quando uma pessoa morre sozinha em casa de causas naturais, repete não saber o motivo de ele ter deixado o Rio de Janeiro, Diane Ismael Spade Marlowe torna a aludir a uma vaga idéia de desterro, fica demonstrado ao leitor que todos são estrangeiros – o morto, por ter saído do Rio de Janeiro; as filhas, por buscarem uma resposta sobre o pai longe de onde ele viveu a maior parte do tempo e onde elas próprias nasceram; a amante, conforme evidencia o seu rosto de paixões extraviadas; Diane Ismael Spade Marlowe por viver numa cidade que apenas serve como esconderijos de cadáveres insondáveis. 

Inconclusividade das narrativas contemporâneas: o relógio de ponto assinala às cinco da tarde, encerrando a minha jornada de trabalho. A vontade de ir embora ultrapassa o desejo de continuar ouvindo a audiência. Após o depoimento da amiga da família aproveito o intervalo para descer da coxias pelos degraus rangentes. Passo ao lado dos protagonistas da história. Nada acontece. A justiça acena em despedida. Uma piscadela que diz: “Adeus, escritor fantasma”. As jovens requeridas estão sérias, umas delas – a primogênita  – com uma expressão atônita. A mulher com o rosto que os corvos bicaram, fracassando em lhe roubar os olhos, desliza os dedos pelo touchscreen do smartphone. O advogado dos olhos gélidos, com um lenço, limpa o suor que lhe escorre pela testa, pigarreia, um som rouco como um arrulhar de pássaro. O prédio do tribunal fica numa rebaixada estrada vicinal e é possível ver, cinco metros acima, os caminhões e carros que passam na rodovia. A tarde é de uma áspera e plúmbea transparência. Cheiro de gasolina, de motores, de asfalto abrasado. No ponto de ônibus fico pensando na audiência, buscando um arremate. Deve estar acabando agora, penso enquanto olho os carros que vêm pela rodovia, esperando a passagem do carro alugado e ocupado por sua tripulação do Rio de Janeiro. Desponta um Toyota Corolla com toda a pinta de carro alugado, mas com um elemento estranho: pendurado no retrovisor um indígena captador de sonhos, o que não se admite, pelo menos em tese, a um carro alugado, mas para o mistério da narrativa bem que seria interessante termos um carro alugado com um captador de sonhos pendurado no espelho retrovisor. Fico imaginando o Toyota Corolla assim decorado com as duas jovens e a advogada, conduzido pelo irlandês com o tapa-olhos semelhante ao do James Joyce –  em direção ao sol poente, dédalo corrompido. Mas o carro passa e vejo, dentro dele, um casal jovem. Riem. A garota, no banco do passageiro, enrodilhando os seus dedos ao redor dos anelados cabelos do motorista como se fôssemos Ana e eu. Chega o ônibus, embarco, vou embora sem arremate para a narrativa, sem destino para os personagens que eu, Diane Ismael Spade Marlowe, mordomo invisível, escritor fantasma, poeta para si próprio e para os corações transparências que ardem, tentei inventar. No dia seguinte, ao regressar ao trabalho, fico sabendo do improvável desfecho: finda a audiência, por volta das 17h40, na porta do fórum, inadvertidamente, o advogado de olhos gélidos conversava com a mulher de rosto roubado quando cai no chão, vitima de uma síncope fatal. Estava morto antes da ambulância chegar. Ninguém o conhecia no fórum. Não se sabe se deixa mulher, filhos, trabalhos inconclusos. Caído como num poema imundo. Morto como o Coronel Kurtz. Ligo o computador, pensando e forçando o mistério, imaginando a seguinte cena e pensando daria uma boa narrativa: enfermeiros, médicos ou agentes funerários vistoriando o cadáver, a sua roupa cheirando a tabaco, marcas de nicotina nas unhas, e não encontrando nem sequer um maço de cigarro nos bolsos agora inúteis. 

Grécia e Europa: Variações sobre Teseu e o Minotauro

Teseu e o Minotauro, Vaso Grego, ca. séc. VII-V a.C.

Teseu e o Minotauro, Vaso Grego, ca. séc. VII-V a.C.

 

K. está sentado à sua secretária e acima da cabeça dele, pregado na parede, repousa um gigantesco mapa, em azul e dourado, da ilha de Creta, com as grandes descobertas arqueológicas de Sir Arthur Evans estrategicamente assinaladas. Por um reflexo involuntário, os olhos correm a focar-se no Palácio de Knossos, na nossa imaginação brilha a ideia dos frescos de Knossos, as tabuinhas de Linear A e Linear B descobertas nos palácios de Creta, onde se encontra registado um dos alfabetos mais antigos do mundo, a loucura de Heinrich Schliemann, todo o esplendor da civilização minoica. A ilha de Creta é o lugar do mito que é também a metáfora arquetípica da inteligência ocidental, Teseu e o Minotauro. Talvez seja ingénuo e demagógico recordar isto neste momento, mas a grande moeda comum da Europa, isto é, a própria ideia de Europa como algo assente nas fundações de um fundo cultural comum, é um produto da incrível aventura intelectual que se prolonga desde a Grécia arcaica, da qual a Grécia da civilização minoica é um testemunho, até ao fim da época helenística e estendendo-se talvez um pouco mais, com a cultura que nos é legada por Bizâncio e pela imposição política do cristianismo sobre a Europa.

As coisas que nos dão genuíno prazer em estar vivos, as coisas por que vale a pena viver, foram quase todas imaginadas ou aperfeiçoadas, trazidas até ao estatuto de artes a cultivar e proteger, pelos Gregos: música, política, filosofia, história, democracia, os géneros literários em que ainda hoje nos expressamos, o teatro, os nossos cânones de beleza, que são um capítulo que não poderia ter sido escrito sem os cânones de beleza escultórica da Grécia da Antiguidade, os conceitos de biblioteca e de escola, a ideia de cosmopolitismo, o próprio conceito de indivíduo. O que quer que ser Europeu possa significar hoje, especialmente hoje, o sentido disso é grego. A dívida que temos para com a Grécia, nunca a iremos pagar completamente.

            Na declaração de Alexis Tsipras que antecede as negociações que se prolongaram até segunda-feira de manhã pode ouvir-se: "I am here ready for a honest compromise, we owe that to the peoples of Europe, who want Europe united and not divided. We can reach an agreement tonight, if all parties want it."

            Convém também recordar as palavras de Angela Merkel: “Temos em conta a situação da Grécia e como esta se deteriorou ao longo dos últimos meses, mas a moeda mais importante, a moeda da confiança perdeu-se, e também a da responsabilidade. Isto significa que as negociações hoje vão ser duras, e que um acordo não será alcançado a qualquer preço.”

            Na quarta-feira passada, e depois de uma hora a discutir o que é que numa série de papiros e objectos de arte recuperados em escavações em Alexandria pode ser útil para o meu próximo projecto, K. tira o cigarro electrónico do bolso da camisa e recusa as bolachinhas que eu lhe ofereço (K. anda a tentar perder peso e deixar de fumar). O meu amigo K. é um grego de Tessalónica e um historiador da época helenística, que acaba de, entre mil outras coisas, escrever um livro sobre Kavafis e Alexandria. K. estudou primeiro em Sarajevo, durante os anos da guerra, e foi aí que conheceu a mulher dele, uma grega de Atenas, que ao fim de tanto tempo o continua a provocar com a piada que os atenienses guardam para a gente de Tessalónica, que os de Tessalónica são mais lentos. K. é aquele tipo de homem tranquilo, que fala baixo, com uma convicção na fronteira da autoridade, que vem dos anos que passou a dar aulas. E é uma das pessoas mais generosas que conheci em Oxford. Sempre overworked, K. arranja sempre tempo para discutir comigo as ligações alexandrinas do meu projecto.

Há quase duas décadas que K. não vive na Grécia, de Sarajevo, K. mudou-se para Leiden, onde fez o doutoramento e M., a mulher dele, voltou à Grécia. Pouco depois ela juntou-se a ele. No fim do doutoramento, K. mudou-se para Alexandria e com os tumultos mais recentes no Egipto, K. acabou por mudar-se para Oxford. De alguma forma, o percurso de K. é uma epítome das vantagens que a União Europeia conferiu aos cidadãos dos estados membros, livre circulação de pessoas, um sistema universitário com um sistema de equivalências comum, que promove a livre circulação de ideias. 

Quando perguntei a K. o que é que ele achava que ia suceder à Grécia na fatídica reunião daquele fim-de-semana, ele riu-se e disse-me que não era com ele a fumar um cigarro electrónico que podíamos ter aquela conversa. Fora do edifício, debaixo da chuva miudinha que garante que o verão inglês se mantém eternamente verde, a primeira coisa que K. me diz é que esta é uma união europeia de cobardes, que espera que se dê o Grexit e que teme que o cenário que se há-de seguir a isso não seja muito diferente do que ele viu em Sarajevo por volta de ’95.

            Aquilo a que assistimos na noite de domingo para segunda-feira, ansiosamente agarrados aos monitores dos nossos computadores, acordando a intervalos para verificar no site do The Guardian os últimos desenvolvimentos, é bem pior do que o pior cenário que eu tinha antecipado, o Grexit. Mas se o Grexit podia ditar o fim da união monetária dos países da zona euro, sem dúvida havia muito mais margem de esperança para a Grécia do que com um acordo como este, que o FMI implicitamente tinha declarado inviável tanto antes como depois (há semanas, e de novo nos últimos dias, este organismo reconhece que é impossível a Grécia cumprir seja que plano de recuperação for sem um perdão de parte da dívida).

            O que eu vejo na aceitação deste acordo por parte do governo de Alexis Tsipras é que a Grécia apanhou uma bala por todos nós, uma bala por uma ideia de Europa que é cancelada pelas condições humilhantes, e que têm sido de outro modo, adequadamente a meu ver, descritas pelo termo "neocolonialistas", impostas por este acordo, que encaixam perfeitamente na descrição feita por K. de uma União Europeia doente, uma união de cobardes, algo, a outro nível, amplamente atestado nas declarações tanto de Pedro Passos Coelho como de António Costa, na busca vergonhosa de um crédito medíocre por um dos momentos mais negros e mais tristes na história da União Europeia. E sobre o que essa ideia de Europa representou até este ponto, pelo menos até aqui, podia citar-se o grande historiador da Grécia Antiga, Tucídides, na oração fúnebre de Péricles aos Atenienses, proferida em honra dos mortos no fim do primeiro ano da guerra do Peloponeso:

 

It is true that we are called a democracy, for the administration is in the hands of the many and not of the few. But while there exists equal justice to all and alike in their private disputes, the claim of excellence is also recognized; and when a citizen is in any way distinguished, he is preferred to the public service, not as a matter of privilege, but as the reward of merit. Neither is poverty an obstacle, but a man may benefit his country whatever the obscurity of his condition. There is no exclusiveness in our public life, and in our private business we are not suspicious of one another, nor angry with our neighbor if he does what he likes; we do not put on sour looks at him which, though harmless, are not pleasant. While we are thus unconstrained in our private business, a spirit of reverence pervades our public acts; we are prevented from doing wrong by respect for the authorities and for the laws, having a particular regard to those which are ordained for the protection of the injured as well as those unwritten laws which bring upon the transgressor of them the reprobation of the general sentiment.

(tradução do grego de Richard Hooker, 1996)

            Nada podia ser mais afastado do imaginário político evocado pelo discurso de Péricles, do espírito de solidariedade que é supostamente o testamento político que deu origem a um dos mais prolongados períodos de paz na história da Europa, de que a União Europeia se tornou o símbolo máximo, do que este acordo podre que nada tem que ver com salvar um pequeno estado democrático e pacífico da falência, para quem cinco anos de austeridade resultaram num milhão de desempregados e num endividamento que em breve irá atingir os 200% do PIB. Trata-se de uma humilhação cheia do espírito preventivo dos cobardes, dissuadir qualquer país na Europa a desafiar a indisputável hegemonia política do marco alemão que neste momento se encontra travestido de moeda comum. Se é preciso reconhecer que cada um dos representantes dos países europeus tem de ter em mente a pressão do eleitorado que democraticamente os elegeu, podia aqui repetir-se Tucídides citado acima, que a mais estável das uniões políticas alguma vez forjadas neste continente devia idealmente ter criado cidadãos que são impedidos de praticar o mal por respeito pela “autoridade das leis, com uma reverência especial pelo conjunto de leis estabelecidas para proteger aqueles que estão numa posição enfraquecida, tal como por essas leis que não estão escritas e que trazem sobre o agressor a reprovação do sentimento de todos.”

Repito: não podíamos estar mais longe do ideal democrático de Péricles – nem sequer tendo em conta as limitações que anacronisticamente é preciso reconhecer à democracia ateniense, a escravatura e a limitação exclusiva do direito de voto a cidadãos atenienses do sexo masculino. Numa Europa onde o acordo imposto à Grécia é obtido em parte decisiva pela pressão de um partido que é um dos principais inimigos de uma ideia de Europa, que neste momento tem poder de decisão sobre o rumo político desta, estou a referir-me aos nacionalistas finlandeses, nada podia de facto estar mais longe do ideal democrático que herdámos dos gregos. E como bem notou Varoufakis, internamente isto só beneficiará o Avgi Chrisi, o sinistro partido de extrema direita que como qualquer predador em tempo de crise tem ganhado poder na Grécia. É difícil elencar quantos tiros nos pés da estabilidade interna e externa das supostas democracias europeias este acordo representa (fica esclarecido, se esclarecimento fosse preciso, que se trata não de democracia, mas afinal de um grande regime oligárquico, outro sistema político que herdámos da Grécia Antiga). Podia mencionar-se aqui, a título de exemplo, a postura politicamente servil imediatamente assumida por parte do Podemos em Espanha (a metáfora do bom aluno, de pendor vagamente salazarista no contexto português e particularmente cara ao ideólogo Passos Coelho é bem pertinente - o Podemos já está a dar sinal de estar a aprender, recuando na ideia de pedido de reestruturação da dívida pública). 

            E para aqueles que com tanta falta de imaginação política se entretiveram a escrever sobre o desrespeito de Tsipras pelo resultado do referendo, estou a referir-me a este comentário, a vários níveis inenarravelmente imbecil, de Eduardo Pitta (a que não é alheio o tom de crónica de boudoir, característico do estilo de Pitta, e de que este artigo do jornalista grego Alex Andreou é o contraponto), este argumento só é válido se ignorarmos que Tsipras governa um país onde maioritariamente a opinião pública se sente completamente aterrorizada pela possibilidade de abandonar o Euro, o Grexit nas condições de domingo tornaria a Grécia responsável pela dissolução da zona euro, que neste sentido o referendo serviu sobretudo como uma manobra política pensada para consolidar a posição do governo do Siriza, que com a Grécia na iminência da falência o poder negocial de Tsipras se encontra extremamente enfraquecido, e que o desrespeito pelo resultado desse referendo é afinal sintomático do total desrespeito pela soberania grega por parte desta União Europeia, que se esqueceu do que é que afinal estava em causa nestas negociações, e aqui pode terminar-se não com Tucídides, mas com Yannis Varoufakis, pronunciando-se sobre a decisão que o parlamento grego terá de tomar hoje, e concluindo que Angela Merkel tem razão, que um acordo não devia ter sido atingido a qualquer preço:

Much energy is expended by the media on whether the Terms of Surrender will pass through Greek Parliament, and in particular on whether MPs like myself will toe the line and vote in favour of the relevant legislation. I do not think this is the most interesting of questions. The crucial question is: Does the Greek economy stand any chance of recovery under these terms? 

Fotografia de Zacharias Stellas (Ilha de Paros, 1965-1975). Acervo do Museu Benaki, Atenas.

Fotografia de Zacharias Stellas (Ilha de Paros, 1965-1975). Acervo do Museu Benaki, Atenas.