Friedrich Nietzsche: síndroma de Ícaro e obra aberta

Comecemos por uma mise en abyme, tanto mais que se trata de pensar a recepção na sua máxima amplitude, isto é, colocarmo-nos também, desde já, como leitores, e portanto escrever sobre como é ler, lendo-nos. Assim, deixem-nos confessar que, depois de nos revisitarmos, o mais difícil no que se segue foi encontrar o tom justo; Nietzsche não se deixa apanhar facilmente, codificá-lo num estilo qualquer, filosófico ou outro, conduz quase sempre a amargos de boca. Um refluxo libertário sai constantemente, e intempestivamente, dos seus textos, impedindo que lhe façamos, na expressão de Gilles Deleuze, “filhos pelas costas”.[1] Daí a dificuldade em definir a pose reflexiva adequada às ideias nietzscheanas, fracassamos quando tentamos impor a nossa vontade, é melhor deixar-se encontrar pela sua poderosa racionalidade crítica, mas também pela força da sua irrisão e amor incondicional à vida selvagem, dionisíaca. Por outro lado, pensamos também nos destinatários mais sociológicos deste nosso ensaio (que, não o esqueçamos, quer dizer “tentativa”, propor linhas de sentido), quem nos irá ler e com que finalidades? Devemos escrever para um leitor médio, um guru das ciências sociais, um amante do tédio, alguém que nos conhece, um nietzscheano apaixonado ou um leitor compulsivo? Devemos considerar uma liberdade hermenêutica total, que na verdade é irreal, ou enquadrar o leitor para que coincida com a nossa racionalidade, estimulando, como queria Hans-Georg Gadamer, a fusão de horizontes? Prolongar cada ideia numa explicação que não alimente ambiguidades (se tal for possível) ou deixar margem para interpretações que podem deslocar-se bastante da nossa visão? Acreditar que a intenção do texto domina o processo de recepção ou conceder que tudo está nas mãos do leitor?

Bom, será melhor espreitar Nietzsche, e aceitar que um texto segue o seu próprio caminho, visto a sua ontologia crescer na trilogia autor-linguagem-recepção, enquadrada nos horizontes de expectativas do tempo e lugar.

 

I

 

Perto do colapso mental (Janeiro de 1889), mas não fazendo ainda parte das “cartas da loucura”, Nietzsche escreve ao amigo Heinrich Köselitz (compositor Peter Gast):

 

Muito curioso! Desde há quatro semanas compreendo os meus escritos, – mais ainda, aprecio-os. A sério, nunca soube qual era o seu alcance; à parte Zaratustra, mentiria se dissesse que me impressionaram. [quanto a Zaratustra] É a mãe com o filho: ela ama-o talvez, mas numa perfeita ignorância sobre o que o filho é. – Agora tenho absoluta convicção que tudo foi conseguido, desde o começo, – tudo é um e quer a unidade.[2]

 

Esta súbita iluminação parece propor a sua obra para uma auto-recepção heróica. Ao mesmo tempo – contra muito do que se disse sobre a máxima elevação estilística da fragmentação discursiva, grandeza da contradição e dispersão aforística –, inscreve agora a ideia da unidade na diversidade do que escreveu. Mas esta “unidade” não se opõe à pluralidade, Nietzsche escreveu demasiado e durante muito tempo sobre a multiplicidade de sentidos, a irrelevância da intentio auctoris, a impossibilidade de subsumir as interpretações em teses universais... para agora se entender o que avança, nas circunstâncias de uma troca epistolar, como simples união numa totalidade inteligível de todos os sentidos que teceu ao longo de trinta anos. Só citamos este excerto epistolar, enviado a alguém com quem manteve sempre uma relação ambígua, para recuperarmos um Nietzsche, perto do apagamento mental, feliz com a sua obra; depois de uma vida de sofrimento (por falta de saúde e de reconhecimento)[3]. E isto redobra de importância se soubermos que nele vida e obra, apesar do que disse em contrário, sempre se misturaram. Aliás, além do que refere no prefácio de Ecce Homo, em 1888 é muito claro ao afirmar que cada linha dos seus livros foi vivida, que eles são, por isso, um complemento de vida.[4] Recolhe-se uma nota mais intensa e precisa em Assim Falava Zaratustra I: “De tudo quanto está escrito, só gosto do que cada um escreveu com o seu sangue”[5].

Por outro lado, a incansável crítica aos valores dominantes (moral cristã, verdade metafísica e humanismo democrático de massas) e a vontade de superar o niilismo que ensombrava a cultura ocidental, sem separar vida e escrita, terá sido o principal factor que potenciou a doença que o silenciou aos 44 anos. Na verdade, o pensamento crítico reclama um agonismo que desloca o crítico, o Aufklärer, para fora da zona de segurança das crenças predominantes. E ou há, como em Immanuel Kant, por exemplo, a real protecção de uma crença mais elevada e aparentemente segura, filosoficamente sistematizada e religiosamente enquadrada, ou, como no caso de Nietzsche, a tentativa de substituição dos valores dominantes por uma radicalmente, mas relativamente vaga (tinha de ser vaga para não sugar a liberdade individual), nova axiologia, mina a estrutura vital do indivíduo.

Nietzsche não era um sobre-humano, mesmo resguardando-se no seu “pathos da distância”, ele continuava dentro da humanidade que, como escreve sintomaticamente no final de Para a Genealogia da Moral, prefere “querer o nada a não querer nada.” Isto é, Nietzsche, por mais iconoclasta que fosse, e foi-o, não escapou à sua condição de humano. Sem apoio para as suas crenças ou, em substituição, um sistema de postulados partilhados numa comunidade de espíritos livres, resvalou para o sem-sentido (de que os receptores franceses pós-modernos fizeram uma fileira filosófica: o tema da loucura em Michel Foucault, o sem-sentido como condição do sentido em Gilles Deleuze, a multiplicação, ad infinitum, de sentidos em Jacques Derrida...). Além disso, ele alimentou outra malignidade com a sua obsessão crítica: a da perversa identificação entre crítico e criticado. Como escreve no §146 de Para Além Bem e Mal: “Aquele que combate os monstros deve ter cuidado para ele próprio não se transformar também num monstro. Se olhas longamente para um abismo, o abismo olha também em ti.”[6] Viandante, nómada sem pátria, experimentando uma solidão necessária, vivendo no gelo e no deserto, escreve, em 1884, um poema de louvor aos espíritos livres, onde a páginas tantas refere: “Quem perdeu / Aquilo que perdeste nunca mais se fixa em parte nenhuma.”[7]

Neste assento trágico (a sua vitória – disposição crítica – compôs a sua derrota – solidão infeliz e colapso mental) deve ler-se a força dos princípios nietzscheanos, a coincidência ética entre o que defendeu na escrita e na vida. A sua marca é a de uma responsabilidade crítica e autocrítica (sem elas costuma insinuar-se o princípio de Pangloss). Lendo-o para lá do seu auto-contentamento retoricamente calculado, fica claro que as constantes Überwindung (superação) e Selbstüberwindung (auto-superação), combustível insubstituível dos Iluministas críticos, fragilizaram os alicerces da sua saúde vital. Devemos, pois, receber Nietzsche, talvez contra a sua vontade, como um sacrificado, à maneira, mutatis mutandis, de Sócrates. Se este se sacrificou pela Cidade, aquele fê-lo pela lucidez (que, como sabemos, “é a ferida mais próxima do sol”[8], onde Ícaro queimou as asas).

 

II

 

No respeitante à leitura de Nietzsche, às condições de possibilidade da sua recepção, pensamos que a fraca conceptualização e sistematização filosóficas convidam a abrir o leque de interpretações aceitáveis e a produzir novos conceitos e filosofemas. Algo que, todavia, não pode ser facilmente realizado dentro das linhas mais tradicionais da história da filosofia, mesmo se Nietzsche legitimou uma certa torção aos discursos filosóficos mais ortodoxos. Com todos os cuidados que a diferença entre autores e épocas exige, talvez se possa aplicar a Nietzsche aquilo que ele descreve como sendo a apropriação de Sócrates por Platão: este, “o mais ousado dos intérpretes” (der verwegenste aller Interpreten), disseminou Sócrates quase até ao infinito, diz no §190 de Para além Bem e Mal. Agora é a nossa vez de aumentar as variações de Nietzsche, cuidando, todavia, de não o banalizar, fazer uma lengalenga do seu pensamento (Platão tornou, escreve ainda no mesmo § Nietzsche, Sócrates mais nobre, a recepção deve elevar). Por outro lado, de um ponto de vista quase metodológico, é importante reconhecer que a hermenêutica nietzscheana trabalha mais sobre o Devir do que sobre o Ser, permitindo-se, pois, criar sentidos a partir da sua obra, em vez de os procurar já embalados e prontos a usar no que escreveu; a obra de Nietzsche é uma “caixa de ferramentas” filosófica indefinida. Como seria de esperar, há bastantes reticências sobre esta hermenêutica aberta, visto que, dizem os puristas da compreensão, se Nietzsche critica a ideia de Verdade, pretende, ao mesmo tempo, impor a sua veracidade (verdade pessoal). Mas mais uma vez, lendo-o com atenção, mitigando as contradições através da genealogia do seu pensamento, fica claro que a sua verdade não deseja generalizar-se. Leia-se o “Prefácio” de Para a Genealogia da Moral, §4, onde diz que só tentou substituir “o improvável por algo mais provável e, nalguns casos, um erro por outro erro.” Prolongando este exercício de similitudes, retirando de Nietzsche o que queremos aplicar a Nietzsche, na Para a Genealogia da Moral II, §7, há um apontamento, repetindo muitos outros, sobre a irrelevância do determinismo (ilusório, também): para ele, os deuses gregos fartar-se-iam rapidamente de um mundo inteiramente determinado e, em consequência, adivinhável. Por isso mesmo, os bons filósofos, amigos dos deuses, não especularam sobre um tal mundo. Isso demonstra porque, continua, toda a Antiguidade venerou o espectador. Quem recebe não deve, pois, ser tratado como simples receptáculo; no teatro como na filosofia, na música como na literatura, os espectadores refazem partes desses mundos indeterminados, dessas obras e textos incompletos, desses conceitos provisórios.

Recusa-se, assim, qualquer hermenêutica do sentido (baseada na crença de que há sentidos fixos que é possível, pelo menos em parte, recuperar em toda a sua verdade), substituída por uma que enobrece, sem atraiçoar, os originais: assaltando-os, rasurando-os, plagiando-os, refazendo-os, complementando-os, prolongando-os... uma hermenêutica plurissignificativa que reconhece a multiplicidade inesgotável de significados no que lê, ouve e vê, e faz uma interpretação activa, procurando enriquecer esses mesmos originais.

Acreditamos que uma boa recepção deve afastar‑se de funestas codificações, de metodologias que separam a priori leituras correctas de incorrectas, recusando a experimentação e a suplementação. Deve seguir-se a lógica da vida, obedecer ao guia que sugere uma permanente disposição para a invenção, uma arte da reescrita abrindo o originário a outras significações, impossíveis de prever, mas já inscritas potencialmente nas condições do seu nascimento. Uma estética da recepção onde sentidos vivos acolham a herança dos textos e um gesto artístico de reescrita os suplemente, uma dança da intertextualidade que em frenesim afaste os pés‑de‑chumbo, irremediavelmente sérios, visitantes sombrios da cena da vida hermenêutica. Tudo porque cada obra é uma “obra aberta”.

 

[1] Mesmo se um optimismo retórico o compromete a pensar que no futuro será o slogan de uma revolução sem precedentes (e, desta forma, acolhido pelas massas que, como sabemos, engravidam tudo de vulgaridade): “Conheço a minha sorte. Um dia, o meu nome será associado à recordação de algo espantoso – a uma crise como nunca houve no mundo, à mais profunda colisão‑de‑consciências, a um veredicto inexoravelmente tomado contra tudo o que até então fora crido, reclamado, santificado. Eu não sou um ser humano, sou dinamite.” (Ecce Homo, “Por que sou um destino”, §1).

[2] 22 de Dezembro de 1888, Sämtliche Briefe, kritische Studienausgabe, Munich-Berlin-New York: dtv-Walter de Gruyter, 1986, vol. 8, 545: “Sehr curios! Ich verstehe seit 4 Wochen meine eignen Schriften, – mehr noch, ich schätze sie. Allen Ernstes, ich habe nie gewußt, was sie bedeuten; ich würde lügen, wenn ich sagen wollte, den Zarathustra ausgenommen, daß sie mir imponirt hätten. Es ist die Mutter mit ihrem Kinde: sie liebt es vielleicht, aber in vollkommner Stupidität darüber, was das Kind ist. – Jetzt habe ich die absolute Überzeugung, daß Alles wohlgerathen ist, von Anfang an, – Alles Eins ist und Eins will.”

Nota: as citações em alemão seguem a grafia original.

[3] Assim Falava Zaratustra, a opus magnum de que fala na carta, vendeu, na época, entre 10 e 20 exemplares.

[4] “Das Zeugniß ist sogar in meinen Büchern geschrieben: die, Seile für Zeile, erlebte Bücher aus einem Willen zum Leben sind und damit, als Schöpfung, eine wirkliche Zuthat, ein Mehr jenes Lebens selber darstellen.” (Nachgelassene Fragmente (NF) 23[14]; kritische Studienausgabe, ed. Giorgio Colli and Mazzino Montinari, Berlin/New York: dtv-Walter de Gruyter, 1967-77 (KSA). Vol. 13, p. 613,14)

[5] “Vom Lesen und Schreiben”, KSA 4, 48: “Von allem Geschriebenen liebe ich nur Das, was Einer mit seinem Blute schreibt.”

Ainda assim, não se trata de qualquer tipo de sangue, no §53 do Anticristo diz que desdenha a escrita de sangue dos mártires religiosos, algo com um significado parecido estava já em Para a Genealogia da Moral I, §15, lamentando-se de que substituímos os atletas gregos pelos mártires, que agora temos o sangue de Cristo. Isto serve também para recordar que se o acto de afirmar é em si mesmo nobre, nem tudo o que se afirma o é. Este quase paradoxo acompanha Nietzsche ao longo de toda a sua obra e retoma, noutros termos, um velho problema da filosofia idealista platónica.

[6] KSA 5, 98: “Wer mit Ungeheuern kämpft, mag zusehn, dass er nicht dabei zum Ungeheuer wird. Und wenn du lange in einen Abgrund blickst, blickt der Abgrund auch in dich hinein.”

[7] Guilinao Campioni dá-nos conta da interpretação que Gottfried Benn faz deste sem-lugar: “talvez o reconhecimento de que é impossível qualquer comunidade. E talvez também, especialmente, o reconhecimento de que os povos não têm nenhuma necessidade dos seus grande homens. E portanto também dele próprio. Têm muito mais necessidade dos seus homens medíocres. Os grandes são apenas ridículos.” (“Espírito livre e niilismo: Acerca de uma composição poética de Nietzsche”, in Sujeito, Décadence e Arte. Nietzsche e a Modernidade, Lisboa: Relógio D’Agua, 2014, p. 359)

[8] René Char, Fureur et mystère.

Coordenadas do Invisível: A partir de Os Degraus do Parnaso de M. S. Lourenço

O presente ensaio, afastando-se de uma pretensão de conjunto, visa olhar para alguns dos textos da obra Os Degraus do Parnaso, do poeta, ensaísta e tradutor M. S. Lourenço.

Assim, o ponto de partida será constituído pelas seguintes quatro meditações: Canções com PalavrasA Abelha do InvisívelUm sonho de Mallarmé e Os Estilos de Wittgenstein, o que não impedirá referências e conexões com outras obras do autor.

Além do desvelo de nós temáticos singulares saídos da nossa escolha, aceitaremos o convite de expansão, materializado em incontáveis diálogos possíveis, que cremos estar contido nas deambulações de M. S. Lourenço. É o autor que se mostra.

 

 

1. No princípio era a Literatura

 

Numa entrevista, M. S. Lourenço diz o seguinte: “ (…) com 25 anos de idade, já não me foi possível desfazer o hábito de pensar que só pessoas de uma imaginação inferior pensam que o mundo é a realidade imediata e permitem que a sua vida seja ditada por ela.1” 

Ao lermos esta afirmação, que praticamente conclui uma entrevista dada poucos anos antes da morte do poeta, somos intimados a ver uma pequena, mas fundamental e sintomática, cadeia lógica: a opressão que resulta de uma perspectiva estropiada, porque pobre, da vida. A pedra-de- toque é, pois, a imaginação.

Se fosse possível, num exercício quiçá arriscado, tentar encontrar a presença mais obsidente em Os Degraus do Parnaso, talvez não errássemos por muito ao dizer que é a Literatura, nas mais diferentes e originais construções, constituindo uma espécie de núcleo de irradiações da obra. 

Ora, em Um Templo no Ouvido, M. S. Lourenço assimila a ideia de Poesia lato sensu à de Literatura, perspectiva que poderá possuir suporte no étimo grego poiesis (ποίησις) que significa fazer ou criar. 

No ensaio Canções com Palavras – cujo título já deixa antever a relação (bastante) próxima entre ambos os domínios artísticos – a frase inicial é uma verdadeira interpelação, reforçada pelo tom sentencioso: “Toda a Arte aspira a alcançar o estatuto de Música.” Em M. S. Lourenço, o adjectivo “musical” serve precisamente para elogiar a escrita de alguns dos seus escritores dilectos, como sejam Samuel Beckett e a sua “prosa musical” (Lourenço, 2009, p. 463) ou todo o universo criado por Marcel Proust (ibidem, p. 450 e ss)2.

O estádio elevado da Música fica a dever-se à “ausência de um conceito de denotação” - ideia que iremos reforçar aquando da referência a Ludwig Wittgenstein – e ao seu carácter fluido, ou seja, descontínuo e que sobretudo enforma ou estiliza.

Pegando no exemplo nacional privilegiado para expor na prática a sua construção ideiativa, M. S. Lourenço serve-se de Camilo Pessanha e da “mais bem sucedida tentativa de reclamar para a poesia lírica o estatuto de Música” (ibidem, p. 454). Se bem que Pessanha,  mormente no seu poema Violencelo, seja visto como “continuador” do trilho criado por Cesário Verde – ambos os poetas, mas especialmente o segundo, são presenças regulares no Parnaso, como se pode constatar, por exemplo, no olhar direccionado para o poema O Sentimento dum Ocidental, especialmente em As Três Graças e Epopeia Crepuscular  – a verdade é que terá sido o simbolista português o mais perfeito descendente de Paul Verlaine e da sua Art poétique assente no primado da Literatura melódica ou ritmada3.

O trabalho encetado pela “eufonia”, pelo “contraponto” e pelo “material temático que possibilite a construção e o desenvolvimentos do pensamento lírico” (ibidem, p. 455) é a conditio sine qua non para a Literatura recuperar – note-se que M. S. Lourenço ao empregar a palavra “reapropriação” faz menção a um passado em que a Poesia ocupou um degrau mais elevado na medida em que se aproximou da Música/musicalidade – o estatuto de “poesia pura”, cujo parente mais próximo será a “música absoluta” (ibidem, p. 457). Lado a lado, Música e Poesia criam obras de arte que fogem à mera representação – entendida como mimésis – desembocando numa “suspensão temporária do sentido”, i.e., não se preconiza um desaguar no vácuo mas, pelo contrário, a dimensão propugnada poderá ser vista como a-significante. O que se elogia não será a arte pela arte, a técnica pela técnica, mas a abertura de infinitas hipóteses irredutíveis até porque não cristalizáveis num sentido essencialista porque pré-existente e absolutamente definidor e definitivo. 

O texto A Abelha do Invisível vem reforçar a ideia de elogio ao intangível.

Se algumas das tentativas para identificar o objecto da Poesia resvalaram praticamente no inútil– são referidos os empreendimentos de Dante, Shelley ou Hegel, entre outros –, na opinião de M. S. Lourenço isso poderá ter ficado a dever-se a um entorse pré-existente advindo do estudo aristotélico sobre o tópico. Mais concretamente, é a poesia lírica – afastada do estudo por Aristóteles, o que suscita a crítica feita ao estagirita e à sua “irrelevante geografia conceptual” (Lourenço, 2009, p. 589) – que facilita uma aproximação ao objecto da própria Poesia.

Assim, após retirar a lírica da sombra, M. S. Lourenço olha para Martin Heidegger encarando-o como detentor do contributo que se revela mais interessante. Ao caber na categoria, algo abrangente, de “autêntico criador de enigmas” (ibidem, p. 589) pode, assim, depreender-se que a necessidade do enigmático - ou, porventura, da enigmaticidade que remete para o reino do sentir -, é uma ferramenta imprescindível para ensaiar algo próximo a uma tangibilidade de sentido, uma vez que, como se poderá ir constatanto, a Poesia furta-se a perspectivas que se pretendam completamente deterministas e consensuais.

O ensaio de Heidegger, de 1946, parte de Friedrich Hölderlin – e da pergunta-lamento “...e para quê poetas em tempo indigente?” - de modo a problematizar uma caracterização bem mais elástica e que se prende com a posição e contributo do poeta na sociedade, mormente numa época “estéril”, mas, mais concretamente, com a relação entre a poesia/arte e a existência do humano no mundo – grosso modoDasein e Da-sein

Se Rainer Maria Rilke nos aparece em Heidegger como ensaio-resposta à questão colocada por Hölderlin, essa aproximação hermenêutica encetada pelo filósofo é aproveitada por M. S. Lourenço que, contudo, acabar por se distanciar, uma vez que sugere um caminho tendencialmente complementar e pessoal.

O conceito heideggeriano de “descompreensão”, que será sinónimo de um recalcamento involuntário dirigido ao objecto das percepções cognitivas, o qual vem a causar a esterilidade ou, pelo menos, o entorpecimento da imaginação com a correlativa produção inconsciente de um artifício daninho, serve a M. S. Lourenço para condensar o rio de pensamento de Heidegger no seu ensaio. Estando a imaginação e a capacidade de conhecimento como que sequestradas, será necessário elaborar uma saída que mais não será do que uma sucessão de intervalos. De novo, M. S. Lourenço deixa-se ir, continuando a porta aberta por Heidegger, Rilke e Hölderlin, este último um poeta “para quem o único objecto da Poesia é a própria Poesia” (ibidem, p. 590), dimensão fundamental para que o terreno de exploração acerca do objecto da Poesia possa veicular-se graças e através do desdobramento da Verdade incalculável4. 

Tendo a Técnica dado ao humano a obsessão pela objectivação e imediatismo, reforçados pela ideia de M. S. Lourenço de “filistinismo” que serve para reafirmar a pobreza espiritual humana, o tal amolecimento da disponibilidade para o êxtase terá de ser substituído pelo “exercício da memória, o qual é um retorno ao coração”, por força a que se opere “o insistente zumbido da abelha do invisível, a qual é o símbolo do poeta que canta o carácter preliminar de tudo o que é apenas objecto de visão.” (Lourenço, 2009, p. 591) O múltiplo, mais do que o plural, é o que postula a abertura ao mundo, a relação e reacção à Verdade: só “a voz da Poesia [nos] pode salvar”. Não parece haver espaço nem lugar para pretensões que visem o abandonado da palavra, entendida como proveniente do reino da Literatura; muito pelo contrário, e sublinhando de novo a tónica na intangibilidade, M. S. Lourenço volta a lançar a ponte com a Música, ou mais concretamente, com o melódico e o intraduzível porque integrantes de uma relação de confiança. Stephen Dedalus no Ulisses, de Joyce, diz-nos “Fecha os olhos e vê”: é precisamente a criação desse espaço-tempo em relação ao qual em grande medida só se pode inferir, tactear ou, melhor dizendo, sentir, a que se vem aludindo nestes ensaios de M. S. Lourenço, e que é o tal “sonho de Mallarmé”5 6.

No texto intitulado Um sonho de Mallarmé, que é o de “escrever um período que pudesse ser considerado um labirinto” (ibidem, p. 582), M. S. Lourenço, mais uma vez partindo de uma hipotipose pessoal – a qualidade estética da prosa kantiana - mas ampliando-a em feixes criativos, diz-nos que “Em última análise conta para a definição do valor estético de uma obra de arte literária o papel desempenhado pela, e os resultados alcançados na, criação de símbolos, que são ao mesmo tempo ícones e veículos, eficientes e plásticos, da representação do pensamento.” Se o diálogo, eminentemente estético mas não só, entre Immanuel Kant e Samuel Coleridge é aí posto a nu, não se trata, porém, de forçar a união absoluta entre filosofia e literatura – desejo que raia o cliché; como lemos, a criação de símbolos deve-se à “imaginação”, ou “navegação”, sem as quais “a obra de arte literária nem é sequer pensável” (ibidem, p. 582). A proposição de hipóteses, do que se materializa necessariamente numa abertura, encontra apoio directo quando M. S. Lourenço veicula o seguinte:

 “Quando falo da eficácia de um símbolo não quero ser entendido num sentido exclusivamente pragmatista, mas antes num sentido alargado, segundo o qual a utilidade de uma construção simbólica é medida pelo impacto que a construção simbólica tem em criações do mesmo domínio ou domínio afins”. (Lourenço, 2009, p. 582)

O conhecimento, e muito concretamente a sua busca, são magmáticos. Ainda nesse texto do Parnaso, tomamos contacto com três características ou “predicados estilísticos” que têm relevo para o caminho infinito que é o labirinto de Mallarmé: a “repetição”, a “expansão” e a “ramificação”. Aniquilando o pretensiosismo de quem menoriza a prosa de Kant, M. S. Lourenço, graças às três referidas componentes da “prosa de arte”, regressa à valorização da ideia de movimento ou fluidez que contribui para a valorização estética da prosa. Se, simbolicamente, em Kant e em Coleridge encontramos a “Ilha da Verdade” rodeada pelo “oceano da Ilusão”, a referida “navegação”, símbolo-irmão da potenciação criativa, materializa a des-cristalização de que a busca do conhecimento carece. 

Prosseguindo os gestos de densificação topográfica relativamente à Literatura, M.S. Lourenço, no ensaio Nihil Sub Sole Novum, revela-nos as duas faces da mesma: a cognitiva e a intuitiva7.

Ora, a primeira, a de teor cognitivo, prende-se com a “investigação das leis da vida interior” (Lourenço, 2009, p. 480), i.e., a literatura pode ser/é um medium privilegiado para o (auto) conhecimento, tornando-se imperioso, nesta sede, referir Paul Ricoeur e toda a sua construção hermenêutica no que respeita, precisamente, a identidade-narrativa como auxiliar da identidade-pessoal (ipse). Atente-se que para o filósofo francês, as identidades pessoal e narrativa não se confundem: a segunda pode, sim, influir na primeira, na medida em que a ficção literária pode constituir um veículo interessante e importante de auto-conhecimento para quem com ela toma contacto. Apoiando-se em Proust, mais concretamente, quando o escritor francês nos diz que deseja que os seus leitores sejam leitores deles mesmos, o pensamento filosófico de Ricoeur precisa de ser, a propósito de M. S. Lourenço, como que peneirado8.

Inferindo, a verdade é que a segunda faceta da literatura - “face intuitiva” - possibilita, através de “uma linha de um texto literário (...) ouvir o som do infinito.”, prisma que, em conjugação com a índole cognitiva, cimenta a posição tida como optimista do autor (Lourenço, 2009, p. 480). Mais uma vez, numa recorrência que simboliza evidência, M. S. Lourenço enfatiza a importância da imaginação, umbilicalmente ligada ao ambíguo e à infinitude, como força propulsora, no caso, do fazer artístico ou poiético. E é aqui que cabe incidir o foco no autor porventura mais presente, se bem que muitas vezes a título implícito, nestes ensaios de M. S. Lourenço: Wittgenstein.

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O paraíso segundo Ulrich Seidl

Ulrich Seidl é apontado como um dos nomes fundadores da “nova vaga” austríaca, juntamente com Michael Haneke, Michael Glawogger e Nikolaus Geyrhalter. Antes de compor a sua, até então, mais ousada e surpreendente narrativa, Seidl já havia feito, dentre outros filmes, Amor Animal (Tierische Liebe, 1996), Dias de cão (Hundstage, 2001) e Import/Export (2007). Recentemente, apresentou-nos a sua Trilogia Paraíso. Amor (2012), (2012) e Esperança (2013) narram as trajetórias de Teresa (Margarete Tiesel), Anna Maria (Maria Hofstätter) e Melanie (Melanie Lenz). Três filmes sobre três mulheres em busca de três figuras masculinas. Com esta trilogia, Seidl constrói um painel de uma sociedade, sem deixar de lado o seu humor tão característico. Pelo contrário: é ele, creio, que dá um tom palatável ao que muita gente considera frígido e metódico.

Nas praias do Quênia, as “sugar mamas”, como são conhecidas as mulheres europeias em turismo sexual, buscam rapazes africanos que vendem amor para ganhar a vida. Teresa viaja nas suas férias para uma paisagem, de fato, paradisíaca. Lá, no Quênia – e só no Quênia –, ela tem status e “amor”, um misto perigoso de ilusão, decepção e negócio oferecido por beach boys que só querem saber de dinheiro. Este é o Amor.

Anna Maria mora sozinha e divide o seu tempo entre o hospital, onde trabalha como enfermeira, e sua casa, metodicamente limpa. Mas Anna Maria não se sente sozinha. Anna Maria tem Jesus. Anna Maria adora Jesus. E este amor incondicional impele-a a rezar constantemente e a usar frequentemente todo tipo de autoflagelação. Como membro de um pequeno grupo ultra-religioso, ela procura trazer a fé católica de volta à Áustria. Para isso, bate de porta em porta, com sua imagem de Nossa Senhora, convidando os moradores, pobre vizinhança ocupada em sua maioria por imigrantes, a rezar e purificar suas casas. Mas sua paz, se assim a pudermos chamar, é totalmente desestabilizada quando seu marido muçulmano e aleijado volta para casa, precisando de cuidados e exigindo o amor que ela destina apenas a Jesus. Assim é a .

Melanie vai para um campo de reeducação física e alimentar para adolescentes obesos enquanto a mãe está de férias no Quênia. Num internato onde tudo é rigorosamente controlado, Melanie segue buscando escapes. Em meio a conversas sobre sexo com as companheiras do campo e comidas roubadas, eis que surge o médico-residente do internato. Ela o seduz. Na verdade, tudo não passa de sucessivas e provocadoras tentativas. Talvez esteja aí a esperança do título, já que se trata de uma espera – ou de uma expectativa – e não de uma realização. E isso pode ter a ver tanto com o seu objetivo de transformar o seu corpo, seguindo um padrão atual de magreza, ou com a sua paixonite púbere pelo doutor (que também pode veladamente significar uma busca por uma figura paternal que não aparece em nenhum momento). O assédio derivado da queda pelo doutor justapõe a paixão clichê pelo homem maduro e a busca por uma figura masculina. Aqui, a meu ver, elas são a mesma coisa. E cá está a Esperança.

Em busca de uma felicidade, as três personagens esbarram em silenciosos moralismos de uma sociedade extremamente hipócrita. E Ulrich Seidl compõe quase pictoricamente três mulheres que mostram e ao mesmo tempo ironizam seus moralismos e suas hipocrisias. Uma linha tracejada une as vidas dessas três personagens. Enquanto mãe e filha são deslocadas (Melanie para um campo de dieta, Teresa em férias no Quênia), Anna Maria evangeliza por toda Viena.

O projeto original de Seidl era formado por um único filme que interligasse as três histórias. Mas o diretor acabou transformando-o numa trilogia em que cada filme focaliza uma personagem. Com este tríptico, Seidl compõem um ousado retrato da sociedade moderna – uma crítica que não se destina apenas à cultura de seu país, apesar de que, muitas vezes e em outros de seus filmes como Dias de cão, isso pode parecer causticamente direto. A forma impiedosa com que costuma disparar contra a sociedade torna-se aqui mais complexa mas não menos ácida. Amor, e esperança poderiam ser substituídos por carência, fanatismo e puerilidade, e funcionam como formas de auto-conhecimento, e, ao mesmo tempo, refúgios, evasão. Todas estas temáticas da superfície escondem, de fato, outras: como as pessoas se aproximam e se distanciam umas das outras, conectam-se e se desconectam, tentam trilhar seus próprios caminhos, mas não sabem bem como.

Ao colocar o espectador em seu mero lugar de espectador, Seidl expõe a realidade de um grupo de pessoas, descrevendo e reduzindo seus jogos de poder à sua essência imediata. Acusado de pintar com seu usual desapego um retrato desencantado da sociedade, percebo que é exatamente o contrário. Só um homem muito apaixonado pode oferecer um olhar aparentemente descrente, mas certamente sarcástico da realidade que o cerca. Vê e repara! É o primeiro passo para a mudança. Aliás, é esta – a mudança, a mudança nas relações interpessoais – creio, o grande tema por trás de todo o Paraíso

O drama dos objectos: notas sobre o "close-up" em Ozu

Quando Béla Balázs afirma em Theory of the Film — Character and Growth of a New Art que o close-up tem a capacidade de revelar «a vida escondida das pequenas coisas», desenvolve uma tese crucial para um entendimento esclarecido do conceito de «microdrama» e das suas implicações formais e estéticas no cinema. Para Balázs, estas serão tanto mais dinâmicas quanto mais amplo for o espaço fílmico que lhe é concedido pelo cineasta. Reflectir sobre estas ideias aplicando-as em particular aos filmes de Yasujiro Ozu pode revelar-se um exercício com conclusões interessantes, já que um dos aspectos que mais cativa o espectador da sua obra consiste na observação do modo como estas «pequenas coisas» são enquadradas cosmicamente.

 

Ozu é apontado pelos técnicos e actores com quem trabalhou frequentemente pelo carácter atento e pelo empenho — tocando, por vezes, num perfeccionismo desmesurado — em controlar todos os detalhes da mise en scène, podendo assim potenciar ao máximo a amplitude emocionalmente contida dos seus planos numa prática cinematográfica em que a imagem é dada ao nível do essencial e conforme uma justa medida. O equilíbrio passa a dominar a construção do plano, afastando a possibilidade da representação do «nervosismo moderno» (Simmel) e a demonstração efervescente dos sentimentos das personagens. Neste sentido, o uso do close-up é indispensável e assume uma função dupla na transmissão visual do conflito das vidas retratadas na película: por um lado, a suspensão da narrativa e o corte espácio-temporal; por outro, a concretização da imagem-afecto de Deleuze. As dificuldades e anseios com que as personagens de Ozu se deparam situam-se invariavelmente na dimensão do banal e do quotidiano, interessando-se os filmes pelos problemas do homem comum (naquilo que posteriormente se veio a designar por shomingeki) e pela forma como este lida com situações universais, que têm também lugar na vida do espectador. Mas o objectivo realiza-se não só pela atenção dada à vida das pessoas, como também pela visão da vida dos objectos. Assim, pode-se falar num cinema descritivo e contemplativo em que Ozu se serve do close-up para trabalhar o conceito de «rostificação das coisas» ou de microfisiognomia (Balázs).

 

Esta utilização das propriedades do plano que têm o poder de despertar a eloquência material parece atingir o seu apogeu no final de Banshun (1949). O filme é a primeira inscrição no conjunto de filmes vulgarmente designado por Trilogia de Noriko, título que faz referência ao nome partilhado pelas personagens interpretadas por Setsuko Hara nas três obras. Embora Ozu nunca tenha explicitamente declarado que estas pudessem ser encaradas enquanto complementares, é indubitável que todas elas representam variações sobre temas constantemente trabalhados e aprofundados pelo próprio: o casamento, o consequente abandono da casa da família por parte de uma filha e as alterações provocadas por essa situação. Em Banshun (Primavera Tardia, na tradução portuguesa), o patriarca, já viúvo, insiste no casamento de Noriko, persuadido por uma tia notoriamente preocupada com a aparência e reputação da família, já que ainda se enquadra no tradicional sistema japonês. Contra a sua vontade, Noriko fá-lo e a última sequência corresponde à entrada do pai na casa vazia, exemplificando as «imagens como entidades» (Deleuze). Depois do plano geral da personagem isolada no centro do enquadramento, e sem outra forma de iluminação para lá do candeeiro (produzindo um subtil chiaroscuro), a acção de descascar uma maçã é filmada em close-up. Nesse momento, a percepção de que a vida se alterou radicalmente dá origem a uma tristeza que se reflecte visualmente na suspensão da tarefa: a faca deixa de se mover em torno do fruto. A tragédia é dada pelo sentido que a imagem encerra em si própria, ao invés de uma observação geral dos acontecimentos. «Não uma imagem justa, mas justamente uma imagem», para trazer Godard ao debate.

 

A forma, encarada como banal e completamente ignorada no plano da vida, adquire um novo significado no plano da arte, sendo mais um dos exemplos que dá razão ao que Wilde afirmava. Assim, Ozu materializa a visão de Balázs do «cinema revelador» num momento genesíaco em que o mundo é realmente descoberto pela primeira vez. Cumpre-se o propósito do close-up enquanto elemento de um trabalho de personificação dos objectos e de «visibilização do invisível». É curioso notar, no campo da invisibilidade, que num filme em que a ritualidade e as festividades desempenham um papel tão importante — recorde-se a maravilhosa cena de ciúmes de Noriko durante o Noh — a elipse é também aplicada à cerimónia nupcial, tornando-se esta num vazio narrativo que não pode ser mostrado. Mais do que a «produção de emoção conseguida através de uma resistência à emoção» (Bresson nas Notas sobre o Cinematógrafo), parece ser a ocultação de um sentimento que pertence apenas aos membros daquela família: não temos o direito de nos envolver ou interferir no curso da renovação associada à passagem das estações. A ideia é ampliada e complexificada em Bakushû (1951), em que a instituição casamento já não encontra eco nas jovens despreocupadas e seduzidas pelo modo de vida ocidental; o cinema de Ozu é também espelho das transformações histórico-culturais do Japão. Ao contrário do que sucede em Banshun, neste filme a jovem não se casa com o par proposto pela família, mas com alguém que, aparentemente, foi escolha sua. Se Noriko fica em melhor estado com esta decisão, o mesmo não se pode dizer do restante núcleo familiar, que mesmo assim sofre mas aceita.

 

Para concluir, e ainda sobre as características da imagem-afecto, Noël Burch comenta em To the Distant Observer: Form and Meaning in the Japanese Cinema que os close-ups que focam os objectos em Ozu traduzem uma ideia assertiva de que «o Homem não se encontra no centro do universo». Deste modo, a tragédia do pai é também a tragédia dos objectos e dos espaços sem a presença de Noriko. Por intermédio da prosopopeia, Ozu dá voz às coisas (da mesma forma que Francis Ponge o faz na poesia?) e integra todos os elementos da realidade num drama duplamente minimalista, por se dar do lado das coisas e pela inexistência de explosões do pathos no seu cinema: mesmo a desilusão face à própria existência, que se confessa em 1953 em Tôkiô Monogatari («Não é desapontante, a vida?»), é aceite de forma estóica. Lições de vida e lições de cinema.

Costa e Kiarostami: o respeito pelo real

por Tiago J. Silva

Estabelecer pontos de contacto e factores de aproximação entre as obras de Abbas Kiarostami e Pedro Costa é tarefa que ocupa não só os críticos mas também, e não raramente, os próprios realizadores, que tecem considerações sobre estas possíveis inter-relações. A movimentação num universo cinematográfico que partilha inúmeras semelhanças éticas e estéticas não passa despercebida aos programadores de cinema mais atentos — recorde-se, por exemplo, a certeira rentrée da Cinemateca Portuguesa em Setembro de 2013, que conjugou o lançamento do livro O Caderno de Casa de Lava com a antestreia nacional de Like Someone in Love, projectando em conjunto ambos os filmes. Enquanto Costa é um dos mais proeminentes herdeiros de um projecto ambicioso de docuficção fortemente influenciado pelos ensinamentos de António Reis, Kiarostami reclama para si próprio a árdua tarefa de realizar um cinema realista sustentado no seio de uma cultura iconófoba, em que a função da imagem assume sempre um carácter problemático. Com formações culturais e profissionais diametralmente opostas, os cineastas encontram-se na sua interpretação singular dos pressupostos do cinéma vérité

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