Agustina e a adopção completa do fogo

João Vuvu, personagem principal de Vai e Vem, de João César Monteiro, diz a Fausta que “o mundo das quimeras” cheira a “mofo”. 

Em Agustina Bessa-Luís, também os discursos emancipadores sofrem um desmantelamento intenso, uma vez que postulam uma redução do humano que, mais do que absurda, é perigosa: a amálgama, pretensamente generosa e benéfica da igualdade, aniquila a capacidade de transfiguração, em grande medida assente nas estrias provocadas pelo atrito. A individualidade, e não o individualismo como algumas leituras precipitadas fazem crer, é o que aparece preservado na obra da autora.

Por definição, todos as incontáveis rotas levadas a cabo nos livros de Agustina só admitem uma aproximação que se faça de frente, i.e., a transversalidade acarreta sempre a desconsideração de algumas características demasiado importantes: passar por cima do caos não é, no fundo, relacionarmo-nos com ele. Escolhemos, por isso, a personagem Amélia, de O Sermão do Fogo (1962). 

Lemos que “(...) a vida humana significa só duas coisas: resistência e desistência. Entre uma e outra, quanta palavra inútil e sentimentos escusados” (p. 162). Ora, essa é a inscrição de Amélia no mundo: resistência que é levada a cabo enquanto prerrogativa, ou seja, como potencialidade ou hipótese. O que não a faz desaguar na mera gratuitidade da abertura que tudo se dispõe a agregar: Amélia vai densificando a sua experimentação tendo como “bandeira” a “esperança”.

Prometeu, segundo Ésquilo, deu aos humanos não apenas o fogo mas também, muito especialmente, a esperança; e a esperança e o fogo (aqui, esperança-fogo) animam igualmente a questionação do Logos por parte de Heráclito. Todavia, aí - e neste Sermão - “esperança” não se insere num autismo ou sequer paliativo como resposta à realidade: é pela esperança, pelo assumir da liberdade e dos seus riscos, que Amélia incorpora o Pathos e fustiga os alicerces do determinismo. Daí que o combate por parte dessa pulsão de rompimento em Amélia se trave quer contra lógicas de eficácia – pós-modernismo e o apagar da diferença graças ao significante –, quer contra enunciados mitificadores – oráculo inquestionável e o dogma hermenêutico da essencialidade. Mas também não será o meio-termo: é “irromper pelo meio”, pegando na expressão de Deleuze.

Com efeito, Amélia ao perguntar “Mas o que é natural senão a uniformidade, e, de qualquer maneira, o descentrarmo-nos do fogo?” (p. 229), identifica com clareza aquele que é para si o motivo do amesquinhamento do carácter humano. E só uma personagem em constante contacto com o Outro consegue aperceber-se disso mesmo, daí que a postura de Amélia seja tudo menos alheada: é, pelo contrário, comprometida. 

O poder da relação dialógica com Maria Consolata é outro testemunho das cesuras através das quais Amélia vivencia o mundo: “O seu demónio mais pertinaz tinha sido enfim domado, e ela sabia que com ele se retiravam as mais profundas cláusulas do medo e da tristeza. A inconstância deixava enfim o seu coração, e havia nela agora uma identidade com Maria Consolata (…)” (p. 271). Aqui, não parece ser à derrota que se alude mas sim à superação da volatilidade dos temperamentos débeis. A criação de linhas de vida exige a elasticidade da deriva e, simultaneamente, a prudência anti-dissolução, uma vez que a desmesura anula, originando linhas de morte: a vontade de experienciar – obrigatória - convive com a imprevisibilidade.

Assim, a protagonista do romance O Sermão do Fogo ao fugir da tipificação literária canónica, serve de paradigma da insubmissão: “A vida, porém, aceite nessa nudez, a adopção completa do fogo, sem nomes líricos e sem fraternidades, a vida destacada em cada um na sua forma absoluta, isso é que faz as criaturas fantasmas divagadores.” (p. 192). Amélia, anti-Medusa, move-se pela procura instransigente do “ verdadeiro estado, alucinante estado de liberdade em que só o amor pode salvar” (p. 277).

Obra de paradoxo e de desafios éticos, a escrita de Agustina Bessa-Luís tem somente uma lição a dar-nos: a de que a atitude de recusa, para ter amplitude, carece da disponibilidade para o inapropriável, como acontece com a vida e com a Literatura

O som e a fúria

 Ao Tiago, amigo-irmão 

 

Como é geralmente considerado, Thomas Hobbes descreve o estado natural do Homem como um todos contra todos apenas apaziguado por um estado-leviatã, i.e., despótico ou, pelo menos, consideravelmente dominador. A descrença, vista como realística porque provada, justifica a inibição. Assim, contradizer a resignação será um fracasso, e a liberdade acaba por fatalmente dar lugar à mortificação do temperamento. Deste modo, o empirismo de Hobbes contextualiza e pressupõe a paralisia que é, scricto sensu, a ausência de movimento ou de gesto. 

Ora, Eleutheria (λευθερία), étimo da palavra “liberdade”, era para os gregos a liberdade de movimento, recusa de restrições que pretendessem manietar ou prender, literalmente, o corpo. Era também outra das denominações da deusa Ártemis. Claro está que o estado-natureza hobbesiano não prevê, menos ainda preconiza, o cativeiro; porém, como bem se nota, assenta namenorização emocional/emotiva, desligando o humano ao torná-lo encerrado, incomunicável. 

Concretamente, a dança era na Antiga Grécia não um mero vector, mas uma instância privilegiada de ligação ao patamar do imortal, ou seja, ao divino, como atestam as Leis platónicas. Os ritos iniciáticos dos deuses constituíam-se em grande medida dançando – Elêusis, Bacantes, etc. Aí a harmonia estabelecia-se pelo contacto humano, irredutível expressão a-temporal: a dança recusaria o apartar hobbesiano, por exemplo. A mutilação regenera-se e a propensão bélica inata ao ser humano não tem cabimento graças à convergência com a alteridade. 

A potente controversão de um qualquer estado de hostilidade latente só é possível graças a um compromisso intransigente de respeito pelo Outro. O ser diferente, entendido enquanto parte integrante daquela coerência na dissonância que se demarca do unanimismo a-crítico, só pode favorecer a criação do que é realmente novo. É por isso que o Lux Frágil, desde 1998, (re)afirma realmente um dos desejos mais eminentemente endógenos do ser humano: esse privilégio individual, mas não individualista, que é a liberdade. Para uns poderá ser catárctico, para outros paliativo; para mim o Lux é bem mais do que isso: é um encontro directo e vivo com a liberdade, essa que rejeita liminarmente anarquia e dogma. Ali, o salto é o que a entrega pressupõe, i.e., o desencadear do movimento, a negação do gueto. Nos espaços denominados de “diversão nocturna”, a vulgaridade e a mesmice não têm de ser uma inevitabilidade, muito menos um modelo que crie cópia e descendência. 

Desse modo, o Lux reivindica o singular numa aprendizagem através do incerto: o mundo em vez de qualquer promessa de paraíso. O ritmo proveniente das linhas de fuga melódicas e visuais, a dança que é simples dádiva sem interpretação, fúria que é indisponível modo de experimentar. Como no verso de Herberto Helder: “Não se pode tocar na dança.” 

António Franco Alexandre: em quanto então obedece

Ao Vasco Oliveira

Publicado originalmente em 1983, A Pequena Face tem como uma de duas epígrafes (a outra é da autoria de Montaigne) o seguinte verso de Paul Celan: “Wahr spricht, wer Schatten spricht” - “Fala verdade quem diz sombra.”, aqui na tradução de João Barrento e Yvette Centeno. 

De entre os possíveis eixos temáticos emergentes em A Pequena Face – veja-se, por exemplo, as referências ao “ouvido” e à audição enquanto veículos privilegiados de contacto com a verdade, aqui entendida numa acepção lata e não-convertível, uma vez que a destreza discursiva e imagética de António Franco Alexandre segrega o que é da ordem do inamovível -, porventura um dos mais férteis ancora-se na ideia de desobediência relativamente a sistemas pré-estabelecidos de conhecimento. Tratar-se-á, porém, de uma perspectiva elástica e cujo vigor da demarcação se apresenta, com frequência, imperceptivelmente. 

Com efeito, há antes de mais um feixe de sinalizações, ora directas, ora suscitadoras de um querer saber, no que tange a revelação de interferências que se vão interligando de modo a desvelarem uma vontade de recusa. Destacamos os seguintes: 

“nenhuma arte, nenhum saber, memórias/nada na manga metálica dos olhos/nada no simples claro contratempo/nas palavras medidas pelo breve/indício do sentido,/venha comigo ver os nunca vistos/ desastres do jamais acontecido” (…) nenhuma arte, veja voz alguma.” (pg. 13); “não desejando as puras, incorruptas/ palavras, mas o sopro/transparente da boca.” (pg. 51); “saberás que a linguagem/ não começou ainda/ o seu passo perdulário, / não há, no mundo, modos/ de dizer o movimento e o imóvel” (pg. 58).

Ora no primeiro exemplo, o recurso repetido de palavras que remetem para o domínio da ineficácia/derrota - “nenhuma”, “nada”, “alguma”, “nunca”, “jamais” - parece, contudo, extravasar a pura negatividade, na medida em que se procura/propõe o alargamento da(s) probabilidade(s). Não sendo meros artifícios literários, ou sequer balizas temporais tão-só indicativas, os termos elencados funcionam simultaneamente como difusores e como núcleos discursivos próprios e autónomos, se bem que numa conectividade permanente com outros tópicos, como seja o amor, que, por vezes, poderão desaguar numa certa rarefacção.

Todavia, essa rarefacção impulsiona enormemente a multiplicidade de linhas coexistentes, impeditivas do óbvio. 

Ao tomarmos contacto com a segregação desejada das “puras” e “incorruptas palavras”, como que substituídas pelo “sopro transparente da boca”, saberemos que a “linguagem ainda não começou.” Não parece, cremos, que se preconize o aniquilamento da linguagem/fala – spricht e sprache (Dichtung)  - i.e., da materialização, por palavras, do dialogar e do interagir, mas sim, nomeadamente, uma desunião direccionada a lirismos vazios e descodificáveis. Surgem, consequentemente, uma exigência e um compromisso com a inutilidade, no caso, da poesia. Se falamos de “inutilidade”, esta relaciona-se com a censura a uma pretensa capacidade salvífica da poesia: “em silêncio me muro e me demoro/ no cálculo de rotas inexactas (…) vou dizer o que sei como quem mente.” (pg. 9); “a escrita seria, ouça,/ silenciosa,” (pg. 24). 

Celan diz-nos que a poesia “é uma forma de aparição da linguagem”, visão que se poderá relacionar com o que acabámos de dizer, i.e., a poesia como possibilidade e como faculdade de a linguagem se poder furtar igualmente à mera comunicabilidade primária, o que abre os limiares da existência da própria linguagem, convocando, assim, o silêncio.

Não obstante, o Ungrund em Celan postula um poder dialógico implacável que, por isso, possui uma veemência algo divergente da capacidade derivativa de António Franco Alexandre, que, como assinalámos, não cinge as suas manifestações apenas ao objecto do nosso testemunho. Porém, o “lançar de dados” que lemos no poemaAos Pares (Zu Zweien), dialoga com aquele “lugar incerto onde aconteço” que existe em A Pequena Face. O silêncio de quem fala verdade, em António Franco Alexandre, constituirá o de índole wittgensteiniana, ou seja, aquele que permite a abertura à “vivência do significado” (Erlebnis) que o filósofo austríaco sugere. No § 5.634 do Tractatus, Wittgenstein descortina, porventura, o poder mais específico da linguagem: “Tudo o que de todo podemos descrever podia ser diferente do que é.”, muito também porquanto “Não existe uma ordem a priori das coisas.” 

António Franco Alexandre refere “as palavras fechadas” (pg. 18) que se associam “conforme/ a tão minuciosa convenção (…) em que dormitam” (pg. 42). Ofício subtil e prolongado - “só pouco a pouco afasto das palavras/ o som que importa” - , o fazer poético específico, mas não isolado, para ser criador terá de rejeitar ópticas utilitárias e estáticas, o que também não significa, claro está, que seja alienante e sedutor – o que acabaria por resvalar na origem do comentário aqui mostrado, i.e., a suposta índole purificadora da poesia. Se as palavras “dormitam”, na poesia/vida elas terão de interferir. A sombra, que destrói o automático ao desregular a cadência, promove e enfatiza um desobedecer. 

Isto para tentar pensar com uma parte contida em A Pequena Face, livro-esboço que se dirige ao exterior, para a comunhão, ou não fosse esta, provavelmente, a materialização de um estar no mundo contingente mas potencial e vivo: “quero viver o que me dizes (…) venho encontrar-te para uma traição.” (pg. 54)

Tópoi desvelados

Helena Almeida, Seduzir, 2002

Uma espécie de penúltima expressão.
Helena Almeida

Em Elêusis dançava-se. A explosão inexcedível do que é da ordem da susceptibilidade, i.e., o (im)possível, amplifica o segredo da partilha comungada naqueles ritos iniciáticos presididos pelas duas deusas gregas. Pulverizando o carácter de mero medium instrumentalizado e manietado a qualquer propósito primacial de utilidade, a dança é ali a inviolabilidade da passagem magmática que não se enclausura e auto-consome, e por isso anula, mas que possui correspondência com a alternativa infindável.

Ao olharmos para Seduzir (2002), de Helena Almeida, vemos gestos heterodoxos: um discreto levantar de saia, as mãos que tocam o chão e ladeiam os pés, o corpo indómito sustido apenas por uma perna, tudo isto como que integrando uma coreografia. Algumas das foto-pinturas de Seduzir evidenciam manchas impositivas de tinta vermelha: mostradas na mão ou pegadas ao chão. Constituindo uma série, plasma proposicional praticamente ubíquo na produção da artista, essa circunstância, num primeiro prisma, poderá associar-se à ideia plana de progressão entendida como registo de continuação mas não necessariamente enquanto narração – entendimento, aliás, que pouca ou nenhuma aderência possuirá em Helena Almeida, como iremos ver.

Se no percurso de Helena Almeida o corpo é omnipresente, a verdade é que em Seduzir ele já não assume uma feição mediata, e por isso secundarizada, mas é antes o núcleo significativo através e no qual converge a indagação memorial. Como a própria admite (Carlos, 2005, p. 60), houve uma inversão no seu trabalho, abandonando a problematização conceptual do cânone pictórico – onde começa e acaba a pintura, o convívio e/ou demarcação com a escultura, com a fotografia, etc - , para chegar às relações que o corpo estabelece auto-reflexivamente, bem como com o que o rodeia de modo activo, i.e. , no âmbito de uma interacção conflitual: surge, assim, a aferição ensaiada e contínua dos limites (corporais) do humano. 

A propósito da génese e contínuo do seu processo criativo, indissociável do modo de estar no mundo, Helena Almeida diz-nos o seguinte:

“Sinto-me quase no limiar onde esses dois espaços [condenação e sobrevivência] se encontram, esperam, hesitam e vibram. É uma tentação aí ficar e assistir ao meu próprio processo, vivendo um sonho com duas direcções. Mas isso é intolerável e com urgência qualquer coisa se liberta em mim como se quisesse sair para a frente de mim própria.” (Carlos, 1987, p. 3)

Esta perspectiva pessoalíssima de dar a ver, poderá prestar-se a esforços hermenêuticos demasiado imperativos e autistas; a arqueologia interpretativa é frequentemente infecunda. 

Assim, o que nos parece mais interessante ampliar talvez seja a noção de franja – o tal “limiar” - associada ao desejo, catalisador impetuoso de energia que, por isso mesmo, requer a capacidade propulsora da paixão.

Ora, o acto de seduzir equivale à entrada, pelo menos tentada, no reino da intimidade, não necessariamente sexual. Se os saltos altos e as pernas podem convocar a ideia de erotismo, ainda para mais concentrada que possa estar nesses pontos devido à ausência do rosto, não nos parece que o óbvio esteja presente. Não caberá falar de tema ou motivo em Seduzir

A propósito desta série, Helena Almeida confessa que se inspirou na irmã, na sua elegância e no facto de, fatalmente doente, ter permanecido pelo menos exteriormente intocada: “E como ela, muita gente tenta parecer bem a qualquer preço.” (ibidem, p. 59). A morte que “pontuou muitas vezes os meus trabalhos” (ibidem, p. 53), sendo o estádio conclusivo real e/ou mítico por excelência, aparece-nos aí directamente agregada à sedução capaz de incorporar em si o íntimo. Vislumbram-se, todavia, matizes que importa evidenciar.

Sendo a morte um dos terrenos mais férteis do cliché, em Seduzir a refutação quer da banalidade, quer do ensimesmamento, mostra-se desde logo pelo teor memorial, ou memoriado, por nós já referido. Se, de certa maneira, foi a morte da irmã a dialogar com esta obra, tratar-se-á de uma memória de experiência, que não será somente passada. A morte de outra pessoa podendo ser sentida como se fosse a nossa:

“A consciência da morte própria ou de outro, é a fonte primeira do terror. Este decorre da própria condição do indivíduo (do seu existir separado) e do desejo de manutenção da autonomia de um corpo, desejo de sobrevivência. Cada corpo está sujeito à acção de outros corpos, à morte vinda do exterior, mas o humano, para além disso, está também exposto à morte que vem de dentro, do “sangue memoriado”, que é a relação com o desaparecimento do outro.” (Lopes, 2003, p. 28)

Escrevendo a partir da obra de Herberto Helder, Silvina Rodrigues Lopes densifica, aqui especificamente a propósito do tópico da morte na poética herbertiana, a dimensão metamórfica, ou pelo menos transformadora, que a limitação pode assumir. No caso do poeta, a morte pode ser tida como um convite, como um estádio dinâmico que exige, longe de concepções nihilistas ou míticas, a robustez sempre posta em causa: “Meu sangue envolve os mortos/como um braço profundo. Solda-os.” No fundo, é um modo de lidar com o medo.

Se a índole rizomática da obra de Herberto Helder postula a fuga “à morte como um estado” (Lopes, 2003, p. 48), uma vez que “a morte é passar, como rompendo uma palavra,/ através da porta, /para uma nova palavra.” (Helder, 2009, p. 63), em Helena Almeida será graças ao tal sonho desejante e desejado, reforçado pela cor, no caso, o vermelho que convoca a medida da encenação como a própria revela, que o “indizível” se diz. “Condenação e sobrevivência” não se anulam dicotomicamente nem porventura se fundem, antes partilham um espaço onde a medição não cabe.

A cor - talvez o eminentemente, ou primariamente, pictórico - na versão precisa mas irradiante presente em Seduzir, adquire uma veemência e dramatismo singulares, ainda para mais servindo-se dessa ferramenta sequestradora da realidade que é a fotografia. Não que a cor seja, como para Kandinsky, um organismo vivo, mas a ideia de contraste, ou abismo, tem lugar privilegiado em Helena Almeida; e a libertação dá-se muito fortemente através da cor – já em Pintura Habitada, a abertura é sintomática, na medida em que a assumpção da cor, o azul cobalto, corresponderá à criação de um território potenciado, e não a uma asfixia ou neutralização.

Para a artista, a arte não pretende ter um ideal ou fim – a recusa de interpretação, entendida como acorrentada ao dogma, é inclusivamente referida (Cf. Carlos, 2005, p. 21) advirá da procura da a-significação, que é o extensivo mais veemente. 

Deleuze afasta vigorosamente a possibilidade de qualquer expressão artística poder ser imitativa/representativa, uma vez que ao estar vertida, por exemplo, numa tela, uma imagem mercê do devir, já se transformou, ou está prestes a transformar-se, em cor ou no contorno/linha. Não cremos que haja, em Helena Almeida, qualquer presença, muito menos intuito, dirigido a um mimetismo mecanizado, daí que haja uma refrega particular com o cliché. Novamente o filósofo francês e o interessante “momento pré-pictórico”, no qual o artista tem de esvaziar, desimpedir ou limpar uma superfície” (Deleuze, 2011, p. 151). No caso concreto de Seduzir, a remoção do que é da ordem do pré-determinado, do cristalizado em inamovíveis certezas cerceadoras do que veicula o desejo, enceta-se num vínculo com a potência. Diz-nos Pico della Mirandola que “habitamos na deserta solidão do corpo”. Corpo enquanto corpografia, mapa atravessado por hipóteses, Seduzir não patenteia a melancolia da desistência: atente-se ao étimo latino do termo “seduzir”, seducere, que remete para a ideia de desvio de caminho ou mudança de direcção. O vermelho que é um lastro, um rasto, uma pegada, i.e., um sinónimo de vivência e recusa. A pura vertigem mortalmente viva que é Seduzir, apegada que está ao real como impulsionador da possibilidade de metamorfose do símbolo, não é catártica, manifestando antes um apelo consciente à recusa de fim.

Ao contrário de algumas propostas radicais de criação de um conceptualismo artístico de feição rarefeita – veja-se o caso de Joseph Kosuth e a sua desmaterialização completa do objecto, com a correlativa redução mental, que pretende solucionar, aniquilando, a indefinibilidade imanente a um certo entendimento de Arte Conceptual ainda de tipo referencial Helena Almeida, no âmbito pessoal mais concreto, e por isso íntimo, do seu fazer artístico, entende a pintura, mais do que enquanto elenco de soluções ou modelos, como problematização. A indissociabilidade inelutável entre vida e obra, que não significa que ambas possam ser mutuamente comutadas, e muito menos advindas de um biografismo ingénuo e frívolo, assume em Seduzir um semblante indomável porque a-fundamentado, e por isso apto e predisposto a aproximações inúmeras e constituintes. Deste modo, o sujeito(-corporal) vai reclamando uma modelação volúvel, parcialmente inerente ao seu estado e inserção na Natureza, mas não lhe obedecendo em absoluto.

Com efeito, a figura, em Seduzir, não preconiza o apagamento fáctico mas o destapamento que permite um anonimato que, alargando a incidência da exposição e do ensaio, serve de igual modo enquanto delineamento relativo. Por outras palavras, o que estará em causa é a relação com o caos, igualmente cara ao pensamento de Deleuze: se o abstraccionismo ignora o caos, e o expressionismo abstracto vai demasiado além, o diagrama – que é a operação a-subjectiva por excelência que prepara a pintura e participa na relação da mesma com a figura – terá de ser minimamente temperado, sob pena de destruir ou impedir que as sensações se dêem e circulem.

Ora, no caso concreto desta série de Helena Almeida, o conluio desviante e instável entre o nítido – a cor, a seriação e o arame enrolado na perna -  e o velado – o rosto (“porta-voz”  des-centrado?) e os movimentos – acentua a análise e a disposição em relação ao caos, i.e., ao(s) limite(s). A morte, a degradação e a finitude físicas do que é humano, são confrontadas graças à produção de rupturas e descontinuidades que acrescentam o eventual, num metacorpo condenado a sobreviver e cuja textura é feita de carne e de desejo.

Poder-se-á, assim, comparar com Elêusis, esse início da enigmaticidade no qual a dança permanece e se vai inscrever eternamente de passagem em passagem, não sendo esconderijo mas antes procura de emoções, desimpedidas que estão pelo mistério. Só isso se conhece uma vez que apenas isso pode ser conhecido: porventura não será a celebrante dança de O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, mas sim a pungente e efectiva experimentação que é ir dançando nos intervalos.

 

Referências bibliográficas:

 

  • Carlos, Isabel e Phelan, Peggy, intus (2005), Lisboa, Civilização Editora
  • Deleuze, Gilles, Lógica da Sensação (2011), Lisboa, Orfeu Negro
  • Deleuze, Gilles/ Guattari, Félix, Mille Plateaux – Capitalisme et Schizophrénie 2 (2013), Paris, Les Éditions de Minuit
  • Helder, Herberto, Ofício Cantante – poesia completa (2008), Lisboa, Assírio e Alvim
  • Lopes, Silvina Rodrigues, A Inocência do Devir (2003), Lisboa, Edições
  • Vendaval
  • Marchan- Fiz, Simón, Del arte objetual al Arte de concepto: Las artes plásticas desde 1960 (1974), Madrid, Alberto Corazon

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Crítica Literária: o vazio

Nota prévia

Este texto parte dos seguintes pressupostos: é função do crítico literário regular o mercado literário; o crítico literário falha nessa sua função e é uma espécie de Banco de Portugal.

 

1.

Em Portugal poucos são os verdadeiros críticos literários. A maior parte das vezes ou são poetas ou romancistas a “exercer”. O crítico literário, em Portugal, é um conceito híbrido. Claro que pedir que um crítico literário seja apenas crítico literário, é pedir muito num país tão pequeno (em todos os sentidos) como o nosso.

Não podemos esquecer, ainda, a vertente mercantil e economicista da questão, que muito poderá condicionar a imparcialidade de quem escreve. Assim, seria interessante um estudo que procurasse encontrar uma possível relação entre as críticas literárias feitas e os respectivos críticos literários que as escreveram, pois muitas vezes estes últimos estão associados a revistas e jornais que pertencem a grandes sociedades, que, por sua vez, são detentoras de parte das editoras que publicam os livros que os críticos literários “criticam”.

No entanto, também não podemos esquecer que a crítica – e nela incluída a literária – nunca foi muito bem vista no nosso país. A crítica literária – quando é a sério – nunca é vista como crítica: ou é ataque pessoal ou bajulação.

 

2.

Mas, qual o real impacto da crítica literária?

Penso que a crítica literária tem muito pouco impacto, pois poucos são aqueles que, realmente, lêem crítica literária. Ela poderá, uma ou outra vez, suscitar uma ou outra polémica, pois o visado pelo texto do crítico pode não apreciar muito aquilo que leu. É claro que isso acontece muito poucas vezes (pelo menos com o conhecimento geral do público).

Na realidade, o crítico literário tem algo que me atrevo a designar de poder-nulo, isto é, o crítico literário não tem qualquer poder sobre as reais decisões do leitor. O seu “poder” está limitado a um grupo restrito (muitas vezes composto por amigos ou conhecidos com quem se partilham afinidades), o que torna esse “poder” vazio de qualquer conteúdo. Se o “poder” do crítico literário fosse real, se tal acontecesse, os “tops” de vendas seriam compostos por livros completamente diferentes daqueles que encontramos numa qualquer livraria generalista.

Os livros mais vendidos não são aqueles que foram objecto de uma crítica literária positiva ou negativa (não podemos esquecer que uma crítica literária negativa pode gerar um aumento nas vendas de um livro), mas sim de uma campanha de marketing agressiva, com ofertas absurdas ao leitor. A crítica literária foi substituída por capas de livros vistosas, sinopses apelativas.

Actualmente, a “crítica literária” não tem qualquer valor intrínseco: antes extrínseco. Ela serve apenas para encher colunas de jornais e páginas de revistas com o pedantismo – e em certos casos com a ignorância – de alguns críticos ditos literários.

 

3.

Há, ainda, o relativo consenso em torno dos livros que são alvo de crítica literária. Parece que nenhum crítico literário quer ferir susceptibilidades. A título de exemplo – e falando do caso português –, os livros de António Lobo Antunes. Poucos são os críticos literários que “arriscam” uma crítica negativa a um livro de António Lobo Antunes. Recentemente, penso que só Pedro Mexia o fez. Alguém curioso pode verificar o que digo: basta numa livraria folhear, com alguma atenção, o livro António Lobo Antunes: A Crítica da Imprensa.

Outro caso paradigmático é o de Pedro Chagas Freitas. No caso deste autor a questão é ainda mais complexa: nenhum dos seus livros reúne o consenso da dita intelligentsia literária, no entanto, todos os seus livros têm reedições sucessivas, encontram-se em todo o lado, e é raro (ou até impossível) encontrar uma crítica na chamada imprensa generalizada (não deixa de ser curioso que o próprio autor já disso se queixou).

Atrevo-me a dizer que falta alguma “honestidade intelectual” (expressão que abomino, mas que, neste caso, tenho de utilizar) à crítica literária portuguesa. Novamente, e a título de exemplo, o livro 2666 de Roberto Bolaño. O consenso generalizado em torno desta obra de Bolaño roçou o ridículo. Num texto publicado a 31 de Outubro de 2009 (no blogue Antologia do Esquecimento), Henrique Manuel Bento Fialho dá conta da lamentável revisão a que o livro de Bolaño foi sujeito. Não me lembro de ler a nenhum crítico literário “encartado” uma referência em relação a isso. Muito pelo contrário. E, daí, talvez se entenda o silêncio.

 

4.

A bem da verdade, actualmente, a crítica literária em Portugal não existe, porque não é praticada. Falta-lhe algo fundamental: o contraditório.

 

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