Civilizados, bárbaros e assassinos

James abbott McNeill Whistler, Nocturne in grey and silver, c. 1872-74

Em Psychologie Heute, 1986, Peter Sloterdijk afirma que «somente o fim do mundo consegue mostrar o cumprimento do fim do mundo.» Podemos, pois, ficar descansados: o fim do mundo será, sem qualquer hipótese de remissão, o fim do mundo, um facto bruto e puro ao mesmo tempo, sem abertura para a interpretação (bruto) e liberto de qualquer economia da responsabilidade (puro). Por conseguinte, enquanto não chega o fim do mundo, deixemos de falar dele, já que nem a loucura disruptiva trumpista nos fornece a mais pálida ideia do que será. Reservemo-lo para o pré-reflexivo, vivamo-lo como uma parousia invertida (será mesmo invertida?).

Há uns anos, fez furor a ideia do «fim da história». Francis Fukuyama, hegeliano seletivo, parecia interpretar bem a ressaca festiva da conclusão da embriaguez triste da Guerra Fria. Os empedernidos da luta de classes, sonhadores mais e menos ativos, vieram para a rua cantar «a história continua!». E continuou. Aliás, o próprio Fukuyama escreveu, no artigo que deu origem ao seu livro mais famoso, que o fim da história entristecia, pois parecia ter exaurido a coragem, a audácia ou a imaginação («The End of History», The National Interest, verão 1989). Portanto, sentia-se que uma vontade bastante geral pretendia que o «espírito absoluto» não regulasse, mesmo sendo autorregulação, a finitude, a história. À minha maneira, percebendo que se militava dogmaticamente dos dois lados, esforcei-me por manter viva a ideia de Sigmund Freud, em Para Além do Princípio do Prazer, de que só a frustração arranca a vida à inércia. Resolvi, então, frustrar-me e frustrar, tornei-me um pequeno niilista especializado em curto-circuitar a esperança de uma paz perpétua, mais definitiva do que a do próprio Immanuel Kant, pois dominaria e não exigiria qualquer esforço, não provocando, assim, nenhuma frustração. Seria uma paz cinzenta, o cinzento de Peter Sloterdijk em Wer noch kein Grau gedacht hat. Ein Farbenlehre, cor que representa algo que «não foi tido em consideração». Uma paz deixada por sua conta, porque, finalmente, se julgava estar perante a Paz.

Talvez venha a propósito, visto que nem a Paz nem o fim do mundo se concretizaram, recuperar, primeiro, a distinção entre bárbaro e selvagem feita em 1976 por Michel Foucault no curso do Collège de France «Il faut défendre la société», e, em segundo lugar, por uma razão talvez mais estética do que teleológica (embora pareça o contrário), evocarei novamente Freud e, tudo o indica, a sua lucidez antropológica.

Para Foucault, o selvagem é sempre selvagem na selvajaria, juntamente com outros selvagens, se estabelecer relações sociais, deixa de o ser. Por sua vez, o bárbaro só é bárbaro em relação a um determinado ponto da civilização, mantendo-se, para salvaguardar a sua condição, fora desse mesmo ponto civilizado. Por isso, o bárbaro despreza e inveja a civilização, em relação à qual se mantém numa posição de «hostilidade e guerra permanente. O bárbaro não existe sem uma civilização que ele procura destruir e apropriar-se.» Ao contrário do selvagem, o bárbaro não entra na história fundando uma sociedade, «mas penetrando, incendiando e destruindo uma civilização.» Esta hermenêutica foucauldiana parece ser mais actual hoje do que na altura em que foi pensada, temos agora vários candidatos à figura do bárbaro, adornados, claro está, por uma película de verniz que os faz parecer apenas outra forma de ser civilizado.

Para Freud, o de O Mal-Estar na Civilização, os bárbaros não estão no exterior da civilização, todos nós mantemos um fundo de «homem primitivo», a civilização só nos pode resgatar pontualmente, ajudando-nos a recalcar os nossos instintos e fornecendo-nos vias relativas de felicidade através da arte, do amor, da beleza ou da religião. Nos dois casos, trata-se de processos de sublimação, que Freud traduz como «o destino forçado que a civilização impõe aos instintos.» Sem isso, continuaríamos a ser assassinos, como refere quase no final do livro: «Temos assim que nós próprios, a sermos julgados pelos nossos impulsos volitivos inconscientes, somos também, tal como os homens primitivos, um bando de assassinos.»

Hoje, num paroxismo que se preparou durante muito tempo e que agora resolveu acelerar em várias direções (talvez nem todas conduzam para abismos), há legiões de bárbaros que não querem, ou não sabem, recalcar e sublimar os instintos primitivos. Por isso, é legítimo pensar que há muito que não se viam tantas pulsões destrutivas. Embora mantenha, acompanhado por Sloterdijk, o que disse na abertura deste texto: não sabemos quando, nem como, chegará o fim do mundo.

Livros Porler

Passo por uma estante, depois por outra, à procura de um livro. Talvez esteja na mesa de cabeceira ou nas prateleiras que enquadram a minha querida máquina digital — uma delas, não vá esta emancipar-se. Nada. Sinto, como quem pensa, que é no céu que tocamos quando mexemos num livro (Cesariny dizia «num corpo»). E agora estou privado dele. Não que não tenha muito porler, mas era precisamente esse, que não encontro, que contém a palavra-passe do mundo das ideias. Desisto. Um sábio, não eu, também lê livros, mas pode passar bem sem eles.

Decido, numa espécie de vingança suave, que vou buscar outro, um dos muitos que estou a ler ou tenho para ler. Alguns permanecerão invioláveis (na segunda virgindade que adquirem ao irem parar às mãos do putativo leitor), a escrever para dentro. Outros estão em fila de espera, ainda intocados (salvo para os marcar com uma assinatura afetiva, seguida do ano e mês) ou a meio, um terço, três quartos, poucas ou muitas páginas, romance, poesia, ensaio, filosofia. Outros, ainda, em releitura, como a magnífica República de Platão ou a brilhante e, para os ouvidos actuais, parcialmente incompreensível Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant.

Há quem, dizem-me, sinta a angústia do não-lido. Outros, a do porler. Quando, como no porvir, isso devia ser a porta aberta para a aventura. Devia conjurar em vez de angustiar. Sobretudo agora que o lazer abandonou as ruas para se tornar doméstico. Agora que acumulamos amigos e seguidores sem experimentarmos nunca o encontro com alguém diferente. Na época da autoexploração por excelência (Byung- Chul Han). Na época do aluvião de publicações que não conseguem diminuir a esterilidade.

Eu, meio a fingir, meio a sério, sinto uma bela emoção estética (mais no corpo do que na faculdade do juízo) quando passo pelos livros porler. Como em Kant, mutatis mutandis, não haverá muitos conceitos para descrever esse prazer ou essa alegria. Mas não me enganarei muito se disser que prevejo que serei incendiado, uma e outra vez.

Qual é a lista actual das minhas alegrias porvir?

Nathalie Heinich, Le paradigme de l’art contemporain. Structures d’une révolution artistique. Gallimard, 2022.
Anne Carson, Sobre aquilo em que eu mais penso, trad. Sofia Nestrovski editora 34, 2023 [1950].
Byung-Chul Han, A Crise da Narração, trad. Gilda Lopes Encarnação, Relógio D’Água, 2023 [2022]. Restam umas magníficas 10 pp.
Louis-Ferdinand Céline, Castelos Perigosos, trad. Clara Alvarez, E-Primatur, 2025 [1957].
Arturo Leyte, Heidegger. El fracasso del ser, Shackleton Books, 2024 [2015].
João Barrento, Walter Benjamin. A Sobrevida das Ideias, Saguão, 2022.
Timothy Snyder, On Freedom, Random House, 2024.
Montaigne, Ensaios III, trad. Hugo Barros, E-Primatur, 2024.
Boris Graoys, Staline, Oeuvre d’art totale, Jacquelin Chambon, 1990.
Jenny Erpenbeck, Kairos, trad. António Sousa Ribeiro, Relógio D’Água, 2024 [2021]. A conter-me, para não terminar demasiado depressa.
Silvina Rodrigues Lopes, A Anomalia Poética, Língua Morta, 2023.
Benjamín Labatut, Um Terrível Verdor, trad. Guilherme Pires, Elsinore, 2024.
Daniel Chandler, Liberdade e Igualdade. O que será uma sociedade justa?, trad. Pedro Elói Duarte, Presença, 2024 [2023].
Bernard Edelman, Nietzsche. Un continent perdu, PUF, 1999.
CristopheBouriau, Kant écologiste, PUF, 2024.
Electra 27, inverno 2024.
Tatiana Faia, recurso e pobreza, Tinta da China, 2025. Para decrescer, sabendo que não nos podemos suicidar numa piscina se soubermos nadar bem, e que nem o maior dos sábios, que, acreditando nesta possibilidade, se torna o mais pequeno dos sábios, poderá explicar o que se passa numa rua que expulsou a classe média com os lamentos da pobreza.

A Montanha Mágica e o Escândalo da Distância

A Montanha Mágica e o Escândalo da Distância

No seguimento do último café filosófico dedicado à Montanha Mágica de Thomas Man, teremos, desta vez, na livraria Snob, em Lisboa, o prazer, cognitivo e estético, de contar com a presença do autor de O Escândalo da Distância. Uma Leitura D’A Montanha Mágica Para o Século XXI, João Pedro Cachopo.

Regressamos, sem qualquer retromania, a uma das obras mais importantes da cultura alemã, a qual, contudo, é capaz de se elevar muito para lá das fronteiras dessa mesma cultura. É por isso que continua a dar a pensar a leitores de muitas regiões da Terra, continua e continuará, com o seu fulgor quase suspeito. É difícil imaginar, apesar do embrutecimento que nos assola, o desvanecimento D’A Montanha Mágica, pois trata-se de uma portentosa arte do romance: narrativa repleta de apontamentos filosóficos; um fresco acerca do retorno cíclico do dionisíaco bárbaro; um ensaio sobre o tempo e o ente, sobre a morte e o morrer, sobre a paixão («um amor que vive na dúvida»), sobre a admiração, sobre a técnica; um exercício de esclarecimento, quase militante, acerca de forças políticas progressistas e reacionárias, ambas revolucionárias, ambas com vocações obscuras; um arquivo do ridículo; uma força de emancipação; um neopaganismo incapaz de apaziguar «a grande exasperação»; tudo isso entre um tédio que eleva e outro que rebaixa.

Em O Escândalo da Distância, João Pedro Cachopo interpreta a obra de Mann a partir da tese de que se trata de um «romance filosoficamente pertinente», pois questiona a condição de possibilidade da própria filosofia — que, para o nosso ensaísta, reside na boa distância, a qual só pode ser encontrada na planície, e não na montanha. Após abordar os grandes temas do romance, Cachopo reflete sobre A Montanha Mágica como um romance sobre o tempo, sobre o seu tempo (Zeitroman) e sobre o nosso tempo. Conclui o ensaio com uma hermenêutica assumidamente pessoal, que questiona a atualidade, as forças da graça e da desgraça que a atravessam, os compromissos éticos e políticos que se impõem e a busca da boa distância, tanto epistemológica como empática. Trata-se, além disso, de um ensaio que quis afastar duas personagens conceptuais: o militante («que sempre já sabe de que lado está») e o esteta («para quem nunca há motivo para se comprometer com um mundo cruel e vulgar.»).

A Montanha Mágica e os signos

A Montanha Mágica (título original em alemão: Der Zauberberg) é um romance publicado em 1924 por Thomas Mann, escrito entre 1912 e 1923, após a estadia da sua mulher, Katia, em 1911, no sanatório de Davos, na Suíça. É considerada uma das obras mais importantes e influentes da literatura alemã.

Situado no início do século XX, o livro relata a experiência singular de Hans Castorp, um jovem engenheiro oriundo de uma família de comerciantes de Hamburgo, que, em 1907, visita o seu primo Joachim Ziemssen, militar com «olhos meigos», em tratamento no sanatório Berghof, na estância alpina de Davos. O jovem hamburguês, após lhe ser diagnosticada uma pequena infeção tuberculosa, é aconselhado a prolongar a sua estadia para além das sete semanas inicialmente previstas, que se transformam, afinal, em sete anos. Durante esse período, Hans imerge e adequa-se ao microcosmos das «pessoas lá de cima». Um fresco meio heteropático do mundo cosmopolita da época.

A sua permanência no sanatório, sob a direção do consultor Dr. Behrens, leva-o a conhecer uma galeria de personagens que, no seu conjunto, parecem compor o Zeitgeist da época: Lodovico Settembrini, um italiano maçon e defensor da Razão e do Progresso; Léon Naphta, um místico noviço jesuíta e implacável crítico da sociedade burguesa capitalista e do princípio aristotélico da bondade racional; Mynheer Peeperkorn, um hedonista carismático, e a sua companheira Clawdia Chauchat, uma figura livre das convenções, descrita como uma possível femme fatale, por quem Hans Castorp se apaixona, evocando a memória erótica de um amigo de escola de Lübeck, Pribislav Hippe. Entre outras figuras marcantes, destaca-se também o Dr. Krokovski, assistente de Behrens, inclinado para a psicanálise e prolífico conferencista sobre temas como a relação entre o amor e a morte.

Talvez um Bildungsroman, A Montanha Mágica narra os sete anos que moldam Hans Castorp, ao longo dos quais ele reflete e aprende sobre o amor, a morte, o tempo, a amizade, a doença, o tédio, o ódio... Aprende também que a morte não deve vencer a vida, talvez uma aprendizagem frustrada, sistematicamente frustrada.

Neste café filosófico, propomos pensar, inspirados pela abordagem de Gilles Deleuze em Proust et les signes, quais os signos principais que estruturam esta obra de Thomas Mann e de que forma contribuem, interna e externamente, para a constituição de aprendizagens. O que aprende Hans Castorp? E o que aprendemos nós, leitores, ao acompanhar a sua trajetória?

Esta reflexão também nos permitirá preparar o café filosófico de fevereiro, no qual teremos a honra e o prazer de acolher o autor do ensaio O Escândalo da Distância. Uma Leitura d’A Montanha Mágica para o Século XXI, João Pedro Cachopo.

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Dar a Pensar

«O que força a pensar são os signos», afirma o filósofo francês Gilles Deleuze em 1964 no livro Proust et les signes. Prossegue com «Aquele que busca a verdade é uma pessoa ciumenta que deteta um sinal enganador no rosto da pessoa amada. É o homem sensível que se depara com a violência de uma impressão. É o leitor, o ouvinte, na medida em que a obra de arte emite sinais que talvez o obriguem a criar, como o apelo do génio a outros génios. As comunicações de uma amizade tagarela não são nada comparadas com as interpretações silenciosas de um amante. A filosofia, com todo o seu método e boa vontade, não é nada comparada com as pressões secretas da obra de arte. A criação, tal como a génese do ato de pensar, parte sempre de signos. A obra de arte nasce dos signos tanto quanto os faz nascer; o criador é como o intérprete ciumento e divino que vela pelos signos nos quais a verdade se revela.»

Deleuze foi o primeiro a abordar filosoficamente a obra de Proust, fascinando-se e interessando-se pelos signos que revelam o que é o tempo, o abandono, a vaidade, a frivolidade, o egoísmo, o amor… À la recherche du temps perdu dedica-se mais, segundo ele, à inteligência do que à memória, trata-se de uma espécie de Bildungsroman, uma longa viagem de aprendizagem autorreferente, na qual, a par das descobertas do narrador sobre o sentido da vida na arte e na literatura, o próprio romance aprende a ser romance — algo a que não é alheio o exercício obsessivo de revisão. Por isso, la recherche deve ser lido como um jogo de signos que contém, quase secretamente, uma lógica dos signos, ou seja, uma lógica do sentido (Deleuze publicará Logique du sens em 1969). Não se trata de todo o sentido, bem entendido, mas de uma vasta parcela dos sentidos possíveis, compostos pela multitude quase pletórica de signos emitidos pelo romance. Aprender — que Deleuze gostava de descrever como uma tarefa de egiptólogo antes da descoberta de Champollion — consiste, então, em decifrar e interpretar signos, mesmo aqueles emitidos pelo não-dito.

Com esta perspetiva, Deleuze, o filósofo Deleuze, deixa bem claro que não há qualquer privilégio epistemológico inerente à filosofia. Tudo emite signos: as conversas banais do dia a dia, os filmes, as pinturas, os romances, a poesia, os animais, a natureza… E todos esses signos «dão a pensar» (expressão que Deleuze recupera em la recherche), pois são forças que investem o pensamento, nele penetram e produzem fulgurações luminosas. Luzes que aquecem, luzes que queimam, luzes que esclarecem, luzes que cegam.

Esta teoria dos signos desvaloriza a tradição filosófica do fundamento e do método, as linhas alemã e francesa, respetivamente. Os signos são instáveis e raramente funcionam isoladamente. Talvez por isso Deleuze tenha afirmado, numa entrevista a Claire Parnet, que «O interessante é o meio, não o início ou o fim». Ou, nas palavras de Jean-Luc Godard, «Pas d’image juste, juste des images» (traduzido, o meio desaparesseria). Assim, perde importância, mas não a beleza, o verso de Les fleurs du mal: «No fundo do Desconhecido para encontrar o novo!». Seja esse fundo «Inferno ou Céu».

No próximo ano, dediquemo-nos à potência do meio, deixando de lado os abismos do começo e do fim, tal como faz, de forma admirável, um órfão voluntário — que vive como um deus imperfeito entre os homens. Levemos a sério a máxima nietzschiana de sermos sempre outrosdu bist immer ein Anderer»). Para isso, basta cultivarmos uma arte da inservidão voluntária.