Para uma Crítica da Razão Vitimista

Gosto, sem reservas, deste provérbio italiano: “Os tempos são duros mas são modernos.” Sopro de sentido, mais rico do que o “materialismo dialéctico”, importante deus ex machina do século XX, traduz metade do actual centro bipolar: o cinismo. Peter Sloterdijk define-o, distanciando-o do moralismo iconoclasta de Diógenes no seu tonel, como “um caso limite de melancolia que consegue controlar os seus sintomas depressivos e manter-se mais ou menos capaz de trabalhar.” (Crítica da Razão Cínica,  p. 31). A outra metade do falso centro é o vitimismo. Reconheço que ele é tão antigo como o sapiens sapiens (parece mais uma gaguez do que um marcador científico), somos desde sempre vitimistas, até porque no princípio, contra Rousseau, não havia qualquer idílio, a vida era brutalmente dura. Daí a necessidade de, além dos múltiplos mecanismos de resiliência, nos envolvermos numa certa auto-comiseração mitigante do niilismo que os golpes do acaso (podia ser uma terrível dor de dentes ou condições climáticas propícias à fome) lançavam sobre a humanidade. A excepção veio sempre de entorses culturais que valorizavam a honra e a coragem, um artificialismo, mesmo quando se dizia naturalista, como em Esparta, ou de seitas religiosas tanatofílicas (a libertação pela morte inverte o processo de vitimização no de culpabilização, redimido na morte).

Mas talvez hoje, herdeiros da última utopia panglossiana, manifestada nos discursos e em algumas realizações empíricas do Estado de Bem Estar (ou Estado Social), abusemos dessa medicina, um pharmakon que por excesso de uso passou de remédio a veneno. Por isso, devíamo-nos armar de uma Crítica da Razão Vitimista para esmiuçar algumas subtilezas que compõem este modus vivendi. Enquanto isso não acontece (se alguém já a escreveu, avisem-me), avanço com certas linhas de sentido para podermos desconstruir o primeiro vitimista que nos aparecer (com o cuidado de não ser o nosso reflexo no espelho).

Num pequeno exercício de objectividade, destaco nele as seguintes características: 1- segue a máxima de Jean-Paul Sartre “O inferno são os outros”. 1.1- Não porque tenha andado na guerra ou precise dessa expressão para fechar o círculo filosófico “do em-si e do para-si”, mas porque é uma sublimação básica da sua própria impotência. 2- O “outro infernal” é uma figura ou força opaca, o vitimista não perde tempo em análises, basta-lhe escolher um outro, às vezes plural, para “bode expiatório”. 3- Alia-se facilmente a outros vitimistas, tem tendências tribais, sofre atrozmente com a solidão. 3.1- Como seria de esperar, enoja-o todos quantos se atrevem a duvidar da sinceridade da vitimização, sobretudo os “espíritos livres”. 4- Mas, paradoxalmente, a sua impotência existencial não se reflecte necessariamente na performance sexual (daí continuar a reproduzir-se). 5- É manhoso e vingativo (finge-se frágil, pede piedade); mas se lhe dão poder esmaga o primeiro que lhe faz frente.

Actualmente, o vitimista profissional, ocupação mais disseminada do que a de advogado ou professor, aumentou tanto a frequência e intensidade dos lamentos, da auto-desculpabilização e da acusação de terceiros pelos males recebidos que é impossível distribuir a justiça pelo mundo. Noutros termos: uma boa dose de vitimização permite aos mecanismos sociais decidir sobre a inocência ou a culpabilidade, e assim distinguir com algum critério os canalhas dos anjos. Pelo contrário, quando quase todos se julgam vítimas (do Passos, do Sócrates, do Paulo, do Jerónimo, da Ângela, dos Americanos, do Capital, das Multinacionais, do chefe, do professor, da polícia, da Globalização, do árbitro, do vizinho, da Crise, do Norte, dos imigrantes, das mulheres, dos homens, do Euro, do Futebol ou da falta dele, da Maçonaria ou da Opus Dei, das leis da física ou das da biologia... Em paroxismo vitimista, um conhecido meu, especialista de práticas conspirativas na Web 2, diz que tudo não passa de uma estratégia dos Duques de Bragança para reeditarem o Absolutismo Monárquico.), além do chumbo emocional que esmaga toda a vontade de viver fora do “ai-jesus”, deixa de se poder fazer justiça porque tudo parece uma sopa turva onde não se distingue, mesmo comendo com o máximo cuidado, os bons dos maus elementos. É a amalgama do "nada vale porque tudo vale". O mundo inteiro parece inclinado a fazer-nos mal, e por isso aos sintomas depressivos do cínico Moderno junta-se a paralisia do ego sob o efeito narcótico da contínua perspectivação do outro como a razão do nosso sofrimento, ou seja, do vitimista.

Hoje um amigo reencontrou-me tropeçou em mim

[para o Miguel F.] 

Hoje um amigo reencontrou-me tropeçou em mim
num livro meu na fnac e foi sentar-se à sombra
de um corredor e leu as minhas estórias e disse-me
isso mesmo com umas palavras hesitantes no gmail
e a alegria que senti não foi além de uns pontos
de exclamação em socorro da memória atrapalhada 

foi pelos inícios dos anos oitenta na assírio & alvim
da estação da cp do rossio em lisboa onde poetas
se afadigavam na procura dos corpos e os comboios
para sintra os levavam aos ombros macios dos começos
foi aí na a&a que todos os dias cavalgávamos os livros
e depois subíamos ao bairro pelas escadinhas do duque 

foi lá que perdi memória outros perderam só a noite
ou uma espécie de insensibilidade dura os salvou
eu continuo a voltar sempre um dia antes do outro
sem que os fios da memória se fixem de uma vez por todas
eterno recomeço que apenas a espaços se parece com a vida
mas o teu email querido miguel cravou fundo uma estaca

não sei se amanhã daqui a horas ou dias desaparecerá
essa pele que agora parece a dos meus vinte e tal anos
as páginas novas dos livros novos as linhas dos rostos
que afloram à tona do dia os pequenos gestos tão sós
os sentimentos sem corpos os lugares desocupados
como as palavras que sem sabermos nos mentiam 

ah se eu soubesse então que as minhas palavras futuras
teria também de as varrer do sarro que nos outros eu via
crescer disfarçadas com o rancor a romper as lantejoulas
tão fácil que era passar pontes a voar e sorrir de lábios
rasgados e a dor a ficar aninhada numa puta do gingão
ou num banco de jardim na madrugada fria do cais 

havia muito aço frio naquela maldita estação do rossio
e não sei se terá ficado estes anos a embotar o espaço
e o tempo que se espraiam entre os que se davam 

o certo é que morreram alguns de nós
toupeiras inúteis.

Inédito, Julho de 2012

4.

Saint-John PerseAmers, Strophe 1-4

Tradução: João Moita

Daí vinhas, riso das águas, até às dependências do latifundiário.

Ao longe o aguaceiro atravessado de lírios e de foices luminosas abria para si a caridade das planícies; os porcos selvagens remexiam a terra com máscaras de ouro; os velhos assaltavam à bengalada os pomares; e por cima dos vales azuis povoados de latidos, o corno breve do vigieiro reunia-se ao anoitecer à vasta concha do peixeiro… Os homens tinham um verdelhão amarelo numa gaiola de vime verde.

Ah! que um mais amplo movimento das coisas na sua margem, de todas as coisas na sua margem e como vindo de outras mãos, nos alheasse por fim da antiga Maga: a Terra e as suas bolotas fulvas, a pesada trança de Circe e as sardas da tarde em marcha nos abrunhos domésticos!

Uma hora ávida ruborizava-se nas lavandas marítimas. Os astros despertavam na cor das hortelãs do deserto. E o Sol do pastor, no seu declínio, sob os apupos das abelhas, belo como um encolerizado nas ruínas dos templos, descia aos estaleiros em direcção aos tanques da querenagem.

Lá se avinhavam, entre os homens de trabalho e os ferreiros do mar, os estrangeiros vencedores de enigmas da estrada. Lá se excitava, antes do anoitecer, o odor a vulva das marés baixas. Os fogos de asílido enrubesciam nos seus cabazes de ferro. O cego descobria o caranguejo dos sepulcros. E a lua no covil das pitonisas negras

Embevecia-se com amargas flautas e com clamores de estanho: «Tormento dos homens, fogo da noite! Cem deuses mudos sobre suas mesas de pedra! Mas o mar para sempre atrás das vossas mesas de família, e todo o seu perfume de alga da mulher, menos insonso que o pão dos sacerdotes… Teu coração de homem, ó transeunte, acampará esta noite com as gentes do porto, como um caldeirão de chamas rubras sobre a proa estrangeira.»

Advertência ao Mestre de astros e de navegação.

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Circo

Quando era guarda-nocturno fui escalado para fazer vigilância num circo. Acautelar o material de luz, som e imagem que ficava montado para o espectáculo do dia seguinte. Cheguei e os técnicos partiram. Dei uma volta completa por trás das bancadas. Testei a lona em vários pontos. Era fácil alcançar o interior da tenda. Fi-lo mais por rotina do que por preocupação com os holofotes, câmaras, microfones e demais meios necessários para a transmissão televisiva. Estava muito frio, dias antes do Natal, trazia na mochila meia dúzia de cervejas de lata para melhor aguentar as horas nocturnas que tinha por diante. Baixei a intensidade dos reflectores. Coloquei uma cadeira no centro da arena e sentei-me ao contrário. Apoiei os braços nas costas da cadeira, voltado para as bancadas, e mantive-me naquela postura. Não estava de todo cómodo e por isso não corria o risco de adormecer. Bebia cerveja a sorvos breves. Ouviam-se os ruídos dos animais nas jaulas.

Passadas horas, não sei quantas, ouvi passos atrás de mim. Passos que cessaram ao fim de poucos segundos. Uma voz grave começou a escutar-se, uma voz chegada do fim ou do início dos tempos, o que cada um achar mais longínquo.

Tudo o que fazes é um balão. Que se enche e despeja sem parar. Não sou diferente e a minha visão baseia-se na relação que mantenho com o meu domador. Tolero-o. Não é demasiado disciplinador e eu não sou muito teimoso. Dedico-me ao que forçosamente estou destinado. Às vezes penso que bastava abrir a boca e mastigar-lhe um pouco a cabeça. Talvez o fizesse no meio de uma actuação. Mas não tenho vocação de protagonista. E não quero correr o risco de ser abatido. Cada espécie, por mais domesticada que esteja, ou civilizada que tenha sido, nunca perde os instintos que lhe cabem, os instintos com que nasce. Nunca corri atrás de gazelas. Mas a filogenia repete-se. E fora deste ambiente não descobriria muito mais do que encontrei até aqui. A filogenia repete-se. Este circo é um microcosmo. Sou mais um elemento da companhia e, devido à minha natureza, integro-me sem esforço. A minha visão é muito pragmática. Passo todo o tempo perto da civilização, de terra em terra, e durante a noite posso ler algum livro. Essa é uma das vantagens. O último, da autoria de Bernard Quiriny, intitula-se Contos Carnívoros. Escolhi-o porque gostei do título. O prefácio foi escrito por Enrique Vila-Matas que em vez de ter feito uma introdução cheia de elogios ao novel escritor se posiciona ao lado de Quiriny e escreve outro conto que versa sobre a tentativa gorada de descrever a História Geral do Vazio. Ou seja, um escritor como Vila-Matas situa-se no mesmo plano que um recém-chegado, ainda que de qualidades imediatamente reconhecíveis. Quanto ao tema desse prólogo, não é imprescindível escrever uma História Geral do Vazio, seria talvez um catálogo de banalidades. Escrevemo-la nós todos os dias e nunca nos aborrecemos. É aliás com um prazer desinteressado que o fazemos. Para mim é importante rodear-me de alguma humanidade. Cada um vive conforme a sua condição. Não me parece que exista uma pauta a seguir. Tanto melhor se as coisas correm bem. Três vezes por dia um tratador lança-me nacos de carne. Às vezes estou a dormir e só dou conta mais tarde, quando a carne já está carregada de moscas. Leio durante grande parte da noite. Não perguntes como arranjo os livros ou onde aprendi a ler. Pergunta-te que conclusões ficam das leituras que faço. A maioria das vezes é puro entretenimento, para descansar das crianças aos gritos ou do êxtase do público quando atravesso o arco em chamas. Outras vezes ensaio alguma rebeldia. Sei que estou preso. São momentos em que o meu rugido é mais selvagem. Mas tudo o que fazes é um balão. Que se enche e esvazia continuamente. Não me sinto privado de liberdade. Nasci no circo. Isto pode soar-te ridículo.

Não adormeças. Nessa posição podes cair e bater com a cabeça. Ficar amnésico. Esqueceres quem és. Parar de rever-te na vida actual ou deixar de ser guarda-nocturno. Não sei se para ti seria um desastre perderes a memória. Gosto de organizar pequenos inventários de ausências. No entanto, mesmo depois de notar essas faltas, não penso agir em conformidade com outra decisão que não seja continuar aqui. Não dou excessiva importância ao palco que piso. Fazer parte do espectáculo torna-me, afinal, invisível. Logo que saio do túnel e dou uma volta pela arena o público julga que assiste a alguma mostra de raça e surpreende-se com o meu porte, que encontra nobre, mas na realidade estou apenas a esticar as pernas; tolhidas por passar o dia recostado contra o tapume da jaula.

A voz calou-se e não olhei para trás. Esperei para ver o que acontecia. Não aconteceu nada e levantei-me com dores nas articulações. Na entrada, a lona, às riscas vermelhas e brancas, abria-se num triângulo. A manhã despontava e a luz provocou-me tonturas. Baixei os olhos e vi um monte de latas de cerveja por cima da serradura. Levava várias horas a beber. Enquanto olhava para as bancadas, que mais tarde seriam ocupadas por pessoas com expectativas de diversão, urinei para cima das latas, a serradura empapava o líquido, e nesse momento também não percebi qual a necessidade de traçar uma teoria geral do vazio.

 

An Education

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“If you are interested in the world you live in and the way men think and act; if you are interested in finding a purpose in your own working and learning, Black Mountain will attract you.” E depois: “If you are interested in an education which asks the best you have to give; if you are willing to give yourself to education all day every day; if you can put aside preconceived notions of the world and of yourself, you will like Black Mountain.” Lê-se na descrição que introduz os boletins do arquivo online da Universidade de North Carolina (EUA).

O Black Mountain College abriu em Setembro de 1933, num terreno de 700 hectares a 15 km de Asheville, North Carolina, com enormes blocos montanhosos em volta, um salão à beira-rio, casas de madeira aqui e ali, e uma quinta. O edifício principal – Robert E. Lee Hall – funcionava normalmente como centro de conferências, com dormitórios, salas de aula e escritórios, e no pórtico central, cadeiras de baloiço desalinhadas e oito colunas brancas a perder de vista. Naquele ano, excepcionalmente, o espaço fora arrendado por John Andrew Rice, ex-professor no Rollins College (Florida), que, juntamente com outros colegas, decidira abrir um colégio de artes. Era, lembre-se, o ano da nomeação de Hitler, da Grande Depressão nos Estados Unidos, do encerramento da Bauhaus por pressão do regime nazi e da perseguição a artistas e intelectuais europeus: Klee, Nabokov, Thomas Mann, Freud, Weiss, Grosz. Era o ano do Down and Out in Paris and London, de George Orwell, e do Elogio da Sombra, de Tanizaki.

 

Uma outra educação

“We want a student who sees art as neither a beauty shop nor imitation of nature, as more than embellishment and entertainment; but as a spiritual documentation of life; one who sees that real art is essential life and essential life is art.” Josef Albers dava o curso de artes visuais desde 1933, ano em que fora obrigado a deixar a Bauhaus. A vigilância apertava cada vez mais, e a América de então significava liberdade, o estrangeiro transformado em pátria, já que a verdadeira pátria se havia tornado, para todos eles, estrangeira. Com Anni Albers partira, então, para North Carolina, com um convite na algibeira para dar aulas no Black Mountain College, considerado na altura, e tendo em conta o contexto internacional, um autêntico “oásis espiritual”.

Antigos alunos contam que Albers, nas suas aulas, insistia vezes sem conta na importância de olhar para toda a obra humana de um modo amplo, não selectiva ou cronologicamente, para conseguir perceber de que formas as coisas se relacionam e interagem.

De resto, era essa a ideologia do colégio. Rice acreditava numa educação a la John Dewey, o filósofo americano que, na primeira metade do século XX, quis varrer das escolas e faculdades uns quantos dogmas e vender a ideia de uma “nova educação”, a “educação progressiva”, baseada em ideais como o da liberdade e descoberta individuais. Adaptado à realidade do colégio, o modelo traduzir-se-ia em qualquer coisa como: ensino prático e experimental das artes, tidas como prioritárias no currículo, sem testes, créditos e níveis. Quando o aluno se sentisse preparado, submetia-se a uma avaliação. Alunos e professores formavam uma "pequena comunidade cosmopolita", uma espécie de nova civilização convencida da urgência de dar aos seus membros os apetrechos necessários para a vida do admirável mundo novo.

Havia dois cursos que eram sugeridos aos alunos: “Plato I”, dado por Rice, e o de desenho, por Josef Albers. Depois, podiam escolher entre música, literatura, economia, matemática, línguas, história, teatro. Rice costumava dizer que o importante era aquilo que faziam com o que sabiam, pois saber, simplesmente, não era suficiente (“What you do with what you know is the important thing. To know is not enough”).

Depois das aulas (que decorriam em pequenas salas, com cinco, seis alunos por sessão), os alunos trabalhavam. Como as propinas eram pagas consoante o escalão de rendimentos, o colégio não tinha fundos por aí além, e assim as contas ficavam mais ou menos equilibradas. Além disso, era uma forma de eliminar as distinções e esbater as diferenças de classe. As tarefas variavam de dia para dia. Apanhar maçãs e fazer sidra, preparar as mesas para servir o chá, transportar carvão no camião do colégio, um velho Chevrolet, guardar lenha. Instalar sanitas e lavatórios, ajudar o carpinteiro, limpar os terrenos de pastagem, trabalhar no campo, na apanha do milho, na estrada, na floresta.

Dewey, em carta de 1940 a Theodore Dreier, professor e também membro fundador, referia-se ao Black Mountain College como “um exemplo vivo de democracia, e um modelo para a contracultura dos anos 60”.

 

Magical Summer

Em 1948, John Cage visitou o colégio para dar uma série de concertos de peças de Satie, acompanhados de breves palestras. Nas memórias escritas dos antigos alunos, é lembrada a “Defense of Satie”. Cage, na altura, terá dito que Beethoven esteve errado o tempo todo ao julgar que a estrutura musical se baseava na harmonia, e que graças a Webern e Satie esse erro pôde ser corrigido.

Concertos, performances (inclusive uma de Arthur Penn, a partir da peça de Satie, “La piège de Meduse”), palestras, saraus, e um número infindável de encontros com Buckminster Fuller, arquitecto americano, para explorar as múltiplas possibilidades de reinvenção da cúpula geodésica, projecto que o tornaria conhecido. Aconteceu de tudo naquele Verão. Mary Emma Harris, em The Arts at Black Mountain College (1987), afirma que aquele “Verão mágico” de 1948 marcou o fim do reinado dos artistas europeus no colégio e a emancipação dos jovens americanos, que estiveram ali em representação da arte que iria ser produzida nos Estados Unidos durante os próximos vinte e cinco anos.

Cage regressaria mais tarde, em 1952, ano em que compôs a peça 4’33’’, para estrear aquela que dizem ter sido a primeira performance de sempre, numa sala estreita, com janelas a todo o comprimento e uma lareira em pedra escura quase à altura do tecto. “Theatre Piece No. 1”. Cage, de fato preto, falava sobre a relação entre a música e o Budismo Zen, Olson lia, Robert Rauschenberg reproduzia canções da Édith Piaf num fonógrafo, David Tudor ensaiava num piano preparado e Merce Cunningham, dançava, enquanto ao lado, numa tela, era projectado um filme com bebés a chorar e o barulho de cães a ladrar.Tudo isto em simultâneo, e o público em volta.

 

Black Mountain Poets

Ao longo de 24 anos, o colégio funcionou como uma espécie de laboratório avant-garde, que acolheu artistas como: Willem and Elaine de Kooning, Cy Twombly, Jacob Lawrence, Richard Lippold, Kenneth Noland, Ben Shahn, Lyonel Feininger, Ernst Bacon, Béla Bartók, Helen Frankenthaler, Franz Kline, William Carlos Williams, e Charles Olson, um dos editores da Black Mountain Review, revista de poesia, ficção e crítica literária que em 1957 publicou Ginsberg, Kerouac, Philip Whalen, Gary Snyder e excertos do manuscrito de Naked Lunch, do Burroughs. Foi Olson, aliás, que com Robert Creeley, poeta e professor no colégio, e uns quantos americanos do pós-modernismo, formaram o grupo dos Black Mountain Poets, sob influência, diz-se, da Beat Generation.

Huxley também lá esteve, com Gerald Heard, em 1937, um ano depois de ter sido publicado o seu Eyeless in Gaza. Corre por aí que esteve para inscrever o filho lá. Depois foi a vez de Alfred Einstein, que veio com a irmã. Ah! E claro, Henry Miller, que haveria de escrever, anos depois: “From the steps of Black Mountain College in North Carolina one has a view of mountains and forests which makes one dream of Asia” (Black Spring, 1936).

Um verdadeiro rebuliço colégio adentro, que, no entanto, não conseguiu evitar que o número de alunos no colégio foi sendo cada vez menor. As instituições da altura, altamente conservadoras e dispostas a não abandonar os métodos de ensino tradicionais, não quiseram investir um único tostão. Em 1957, já sem dívidas mas incapaz de se aguentar mais tempo, o colégio acabou por fechar.