Encenação, Latidos

Encenação 

Tudo pronto para qualquer coisa que começaria assim que soasse um qualquer sinal – arma, fogo-de-artifício, beijo prolongado às escondidas da severidade do pai e do peso, muito concreto, da sua mão. Tudo pronto para qualquer coisa prestes a começar e de repente a evidência das palmas, de um pano a cair, ainda o corpo está nos suores frios do medo inicial, como é isto do tempo que come tão depressa que não se dá pela falta de coisa alguma, cão rafeiro de roda de um osso já sem carne, a fome é coisa que não escapa a quem a passa, o pano a cair e de repente percebe-se que há beijos que se devem encurtar, por segurança e por decoro, mas acima de tudo porque em pouco tempo, como é isto do tempo?, em pouco tempo tudo passa e foram mais os olhos fechados de um corpo embrenhado no outro do que abertos à procura de sinais. 

 

Latidos 

Indecente a pressão que a brancura aplica sobre os dedos, imprudente a rapidez com que os dedos aceitam que algo os apresse – não se escreve sobre coisa alguma, na verdade, e no entanto espalha-se pelo corpo um fervor que nos acalma, mão sobre as costas, mão em todo o lado, uma voz grave que nos diz está tudo bem, fazes o que deves, e de noite já se dorme mais calmamente, na firme certeza de que ao menos não se é branco, que ausência de cor, que ausência de forma, que não-Palavra. Assim se encontrava: esfomeado pelos restos colados aos ossos daquilo que apanhasse pelo caminho, cão desmazelado em busca de algo em forma de perfeito, esquecido de que, animalesco, macularia a brancura que o assustava a pressionava não com poesia mas com sujidade da rua que tem nos pés – patas.

escoar-se

escoar-se pela forma mais básica
passar por fluir cruzar-se
precipitar-se plúvio garoar-se pluvilíneo
manar verter incessantemente
aguar-se envolver encostas encobrir
submergir alastrar-se propagar-se
colonizar perder arrastar perpassar
difundir-se impregnar e repassar
invadir-se penetrar-se dimanar sobre diques
resvalar relvas escorregar mover-se denso
grosseiro trabalhoso demorado moroso
cadenciar-se leve frouxo prolixo gotejante
pingar em chuviscar neblinar-se súbito
cristalizar-se em bruma e cerração
reacender-se pelo gume sangrar
esmar-se pela palavra fazer-se do vazio
volver e desvirar-se e tornar a revolver
escavacar a cercania furar o contorno vazar
assilhuetar-se azulado no perfil do branco
enoitar-se tetro na própria boca da noite
serenar sob o seco ramo sáfaro galho
safirizar o tempo depois do tempo próprio
descujar-se a caveira de fulano florescer
desfiar-se recostar a carne lançar-se de si


Ernesto von Artixzffski é o pseudónimo de Sergio Maciel.

Um mar de muros

Queria recordar com toda a força de que fosse capaz. Repor aqui à frente o impossível rigor de uma imagem tão parada, tão feita num certo dia, numa parte pequena da hora, de passagem, passando. Há dias vi de longe o mar, recortado azul preto entre montes e casas brancas. Foi de longe, mas não tanto. Isto é, nunca fui, nunca estive ali, e vi o mar como se vê um desconhecido cruzando connosco a rua, todos os dias, e lhe percebemos um traço do rosto, depois outro. Muitas casas, vidros e pedras, ferros, papel. Mas dava para perceber aquela mancha esbatida lá longe, num escuro diferente daquele que a circundava como um presépio abandonado, que só podia ser o mar. Passo ali muitas vezes, mas não recordo assim escuro e lento o mar, não o tom daquela maneira, entre pedaços de terra e cimento, como se fosse sempre a subir e subindo muito até lá poder chegar. Tento lembrar em quantas e tão diferentes circunstâncias passei ali daquela forma, ou semelhante, mas não posso. Lembro repentes, caras de pessoa, nomes, o corpo quase igual. O passo é outro, diz que ninguém anda duas vezes. E o traço dos montes mexe também com o das casas, não consigo. Eu não tinha visto assim o mar. E pude reconhecer também a cabeça de um homem, cabeça escura, baixa, a tarde encolhia-se já sobre a noite ou isso parecia. Por isso não sei se o moreno daquela cabeça era mesmo do homem ou imprecisão ocular minha, maneira inclinada de ver as coisas. Fazendo filmes com elas, uns com os outros, ver sempre do outro lado do muro. Mas a cabeça movia-se muito, para aqui, para ali, como se o homem cavasse terra ou semeasse. Talvez isso. Parecia o gesto de quem semeia com primor um recanto de horta, e deposita no movimento a alegria e a contenção de querer avivar o chão, de manter o corpo fresco no calor e na humidade do fofo. Não sei em que momento me apercebi daquele corpo, daquele mover alegre entre árvores e campo. Eu queria ver o mar, procurava o mar nos intervalos das coisas, distinguia figuras marítimas, algum barco, e vi o contorno do homem. Não me viu, não podia ver, mas quero pensar que cada um de nós sabia, à sua maneira, não estar ali sozinho. Tão longe, tão em cima de um bocado de mar. Às vezes a terra é só essa estação de comboio, um café tomado à pressa nalgum recanto mais feito ao romantismo. Outras vezes é só um perfume do nosso despiste. É provável que me tivesse recordado de uma canção, e cantado baixinho umas quantas linhas, poucas e sempre as mesmas, uma e outra vez. Só naquelas partes em que a gente cresce mais com a música e começa a cantar por cima do som, das madeiras e bateres do som. Acho que era e era mesmo a “Sempre Ausente”, de António Variações. Terei parado naquela mancha escura de mar, naquele pequeno corpo que distribuía sementes maiores que casas e montanhas. Só me lembro daquele homem, lá no meio, e a música passando fina, tão baixo, entre nós. Depois deve ter começado a fazer noite, mas eu ainda ficava. 

una forma de arder, 4

La primera vez que sentí dificultades al respirar fue en el Museo Van Gogh, Ámsterdam. Los Girasoles, el rectángulo que te sobrepasa. Colgaban vivos, lóbulos y bronquios de un pulmón ocre amarillo, hurtaban el aire que me correspondía [al nacer se nos asigna un cupo]. Desde niño tuve la fotografía de ese cuadro en el salón de mi casa. Ahora, en la radiografía, dibujo a rotulador las regiones dañadas, les pinto girasoles. 

Agustín Fernández MalloYa nadie se llamará como yo + Poesía reunida (1998 - 2012), Seix Barral, 2015
Agustín Fernández Mallo nació en La Coruña, en 1967 y es licenciado en Ciencias Físicas. En el año 2000 acuña el término poesía pospoética, que tendría más tarde su formalización en el ensayo Postpoesía – en el que además investiga las conexiones entre arte y ciencias –, y cuya propuesta práctica constituyen los poemarios Yo siempre regreso a los pezones y al punto 7 del Tractatus, Creta lateral Travelling – Premio Café Mon 2005 – , el poemario-performance Joan Fontaine Odisea [mi deconstrucción] y Carne de píxel.


una forma de arder é uma selecção de poetas espanhóis, ao cuidado de María Mercromina. Agustín Fernández Mallo é o terceiro poeta da série.