poema de domingo

na hora do tinir do bronze estávamos sentados
num banco do cemitério aconchegados ao seu silêncio

trazido pelo canto dos pássaros
o sol tisnando as nossas faces de domingo

acompanhando a badalada um vento vogou nas copas
e folhas flores e pétalas caíram sobre nós o canto e os mortos

dir-se-ia um anjo fosse eu outro sacudindo dos seus ombros
a poeira do tempo alojada no seu corpo de mármore

[Ver Perfil de Fernando Machado Silva]

Empregos originais: primeiro emprego

Lagos, anos 80

Sou uma pessoa indecisa e o primeiro emprego surgiu por via desse defeito de caráter.

Estava há horas olhando para o expositor de uma loja,  tentando decidir-me por um postal,  quando um estrangeiro se aproxima e me pergunta se eu era empregada. Se na loja usavam jovens  para olhar os postais e atrair turistas. Corei intensamente e disse que não. A dona da loja ouviu e achou a ideia interessante. Perguntou se eu queria um trabalho de verão e foi assim que começou.

O departamento de turismo logo soube e pensou que a ideia não era de se deitar fora. Rapidamente recrutou um núcleo de vinte jovens cujas funções consistiam em atrair turistas. O sucesso foi de tal ordem que chegámos a ser cinquenta ou cem. Isto, em Lagos, há mais de 30 anos.

Que fazíamos além de olhar e remexer esses postais?

Éramos os primeiros a sentarmo-nos nas esplanadas, mal mesas e cadeiras eram postas cá fora.

Passeávamos pelas ruas com saias até aos pés, flores no cabelo, e ao fim da tarde podíamos andar com os pés descalços em cima da calçada, como prova de que a liberdade tinha passado por ali.

Acampávamos na praia, fazíamos fogueiras e cantávamos canções acompanhadas de guitarras.

Apanhávamos sol ao longo do dia, sem qualquer espécie proteção solar.

Tomávamos banho à noite. Nós, os 50 ou 100, espalhados em pontos estratégicos das praias dávamos à região um ar exótico.  Como um povo que não consegue largar o mar.

Os turistas viam-nos, fotografavam-no e enviavam notas  à imprensa estrangeira.  Alguns deles vinham tomar banho connosco e muitos morreram à conta disso. Nessa altura não tinha havido ainda a profissionalização dos nadadores-salvadores (não dá para pensar em tudo  ao mesmo tempo) e nós não éramos pagos para os salvar, apenas para nadarmos poeticamente ao longo da costa.

Além disso, nesse tempo,  aos 15 anos, já todos tínhamos lido o Mar Morto, e sabíamos que eles estavam bem, que tinham ido para os braços de Iemenjá.

Fizemos do Algarve aquilo que ele é hoje.

Em nossa defesa, tenho a dizer que nunca nos pagaram em dinheiro. Como éramos tão novos, pagavam-nos em géneros: amêndoas, figos, laranjadas, alfarrobas e entradas grátis em discotecas.

 E apesar de termos lido o Mar Morto e carradas de outros  livros, incluindo o Sexus, Nexus e Plexus, éramos muito inocentes e não fazíamos ideia do que vinha por aí.

 

[Ver perfil de Sara Monteiro]

Pastoral da Ribeira

uma casinha incendiada surge no prédio ao lado
o rio cobre as vigas e pedras e cimento e pó
sob o rio se eriçam casas-lama os homens prontos e um emprego
trilhos e pregos e gente balouçam na casinha incendiada ao lado

afunda os pés de brincar co’ ua nanã que ri o ferro que afunda largo
um afogamento pronto pra uma cidade que nasce com seus homens fortes
na peneira a colher demora a massa e mofa e demora a massa
o fogão de barro submerso no lugar que nasce

acena um oi para a gente que vem incendiada
arde o fogo e a água a pedra e ferro da gente que vem

olha pra a direita      mais adiante
folhas de palmeira pra palhoça um pouquinho de amianto
entulho e câncer e as cabritinhas tão bonitinhas ó as galinhas
cisca cisca cisca

ôôôôôôôôôôô
camisas numeradas regatas largas e de manguinhas

uma cidade emerge submersa
uma ponte metálica de madeira uma ponte
escaiada caiada com luzinhas pra piscar e muda muda
olha a novacor de dez em dez segundos

um conjunto habitacional popular há quase cem quilômetros
da gente que levanta e nasce uma cidade submersa
sete prediozinhos de três andares pra amontoar a gente
saída de uma favela onde se gritar um estádio de futebol

ôôôôôôôôôôô

uma cidade surge submersa no prédio ao lado
é tanta gente é tanta gente e tudo que sente e faz a gente

incendeia, amor

incendeia
 

Variações sobre Teresa

a primeira vez que vi
teresa foi como se
fosse a segunda
os seus dentes
retornando em si
bemol os seus
cílios se atentando
à notícia diária
da terceira vez que
vi teresa o relógio
da esquina marcava
sete e quarenta e
cinco da manhã

 

a primeira vez que vi
teresa não achei o seu
lóbulo direito quando vi
teresa de novo percebi
o seu estômago arroxeado
da terceira vez que vi
teresa ela acenou pra mim
do outro lado da calçada
e desapareceu pela rua
das laranjeiras

 

a primeira vez que vi teresa
uns ruídos se ergueram por
entre as paredes e, atentos,
estabeleceram uma dinâmica
de grupo para fins de pesquisa.

quando vi teresa de novo
os ruídos se apresentavam para
a banca e todos diziam que
o trabalho tinha sido em
conjunto.

a terceira vez que vi teresa
os céus se misturaram com
a terra mas os ruídos logo
disseram que isso era
cientificamente impossível

 

eu acho que nunca vi
teresa

 

[Ver perfil de Gabriel Gorini]

Postal de Lagos

Ao contrário do habitual, não apanho o comboio da 9h de Lagos para Faro, decido apanhar o das 10.30 na estação seguinte, Meia Praia, e vou pela areia até à estação. 

Às 9 horas, a praia já estava a ficar com gente. As gaivotas tinham dado o lugar às pessoas e deixado na areia pegadas e penas. 

Vou pela praia. No caminho poiso o saco, visto o fato de banho e tomo banho.  Depois prossigo. 

Chego um pouco antes da 10 à frente da estação. Tiro o fato de banho e volto a pôr a  saia e blusa com que comecei a jornada. Ainda tenho tempo de beber um café no bar da praia. 

Apanho o comboio das 10.30 e ponho-me  a fazer contas. 

De Lagos a Faro a viagem é de 1h40m. Mas da Meia Praia a Faro é apenas 1.36 minutos. Poupei portanto 4 minutos na viagem de comboio.   

E paguei menos 20 cêntimos de bilhete.  

Sabendo que ñ posso somar cêntimos a minutos, decido atribuir uma equivalência a esse  dinheiro em tempo. Digamos que 20 cêntimos corresponde a 2 minutos e os 4 minutos a menos da viagem Meia Praia-Faro ficam em 6. Seis minutos a menos.   

Ainda me restam 44. 

Que desperdicei ou poupei? Eis a questão. 

E enquanto o comboio rola e os números enchem a folha de papel surge a soma límpida como a manhã. 

Em 6 minutos fiz 2 quilómetros, tomei um banho, nadei, despi e vesti roupa, bebi um café. 

Chego a Faro exactamente à mesma hora que teria chegado se tivesse apanhado o comboio em Lagos e não tivesse gasto 50 minutos a andar. Aparentemente os 44 minutos a mais não me fizeram perder nem o comboio nem Faro nem a hora a que deveria chegar a Faro. De onde concluo, que às vezes, ñ sempre mas às vezes, podemos dilatar o tempo. 

A volta foi sem sobressaltos: 1h40m, 7€30.  

Por acaso é mentira. Havia um incêndio na linha e cheguei a Lagos exactamente 44 minutos depois da hora prevista. Há coisas inacreditáveis!