«Por intermédio das palavras que flutuam à nossa volta, alcançamos o pensamento»
Friedrich Nietzsche
QUEM QUER SER PORTUGUÊS (poema didáctico)
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1
“Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo”
Alexandre O’Neill
Ser português nunca foi um problema. Os portugueses sempre foram bons a ser. Mas Portugal mudou, mudou tanto e tão depressa que os portugueses ainda não deram por isso.
Portugal é hoje um país medíocre, o que é bom para um país que sempre foi mau ou mesmo péssimo.
Portugal já não é o mesmo, mudou bastante, os portugueses é que parecem os mesmos de sempre.
Ser português é uma arte antiga, desacreditada e inútil, completamente inútil.
2
“O país é pequeno e a gente que nele vive também não é muito grande”
Almeida Garrett
Os portugueses raramente são inteiros, existem apenas do pescoço para cima ou do pescoço para baixo.
O português é sempre pessimista e taciturno. Mas se é pessimista a tempo inteiro, já taciturno só o é por turnos.
Os portugueses quando pensam não agem,
e quando agem não pensam.
O português observa sempre muito, pensa bastante e critica ainda mais, não é de admirar que pouco tempo lhe reste para agir.
Para o português a questão nunca é ser ou não ser, para o português a questão é sempre parecer ou não parecer. Para o português, pior do que ser pobre é parecer pobre. O português parece sempre rico, sobretudo quando é pobre.
O que mais distingue os portugueses é a sua quase obsessiva necessidade de imitar os outros. Apesar do aumento crescente das desigualdades em Portugal os portugueses continuam cada vez mais iguais: nenhum quer verdadeiramente ser diferente.
O português lembra-me muitas vezes aqueles homens que no esforço desesperado de esconder a sua calvície ainda mais a revelam.
O português esforça-se tanto por parecer quem não é que acaba por ser quem afinal parece: alguém a tentar desesperadamente ser quem não é. Ser português não é um estado, ser português é uma aldeia.
O português preocupa-se muito com quem é e com quem não é, quando melhor seria que se preocupasse com o que quer ser; ou então que não se preocupasse de um todo e se limitasse,
apenas,
activamente,
a ser.
A verdade, se querem mesmo saber, é que o português nunca fica bem na fotografia,
nunca fica bem na fotografia e todos os espelhos o deformam.
3
“Esta é a ditosa Pátria minha amada”
Luis de Camões
Em Portugal nada se perde, nada se cria, tudo fica na mesma.
Num país atrasado como Portugal, nunca chegar a horas nem cumprir prazos é sem dúvida uma sólida demonstração de sensatez. Em Portugal a justiça não é lenta,
o tempo é que passa cada vez mais depressa.
Em Portugal, o tempo comporta-se de forma muito estranha, o presente repete sempre o passado e o futuro não é mais
do que o presente repetido.
Em Portugal há um equilíbrio perfeito entre patrões e empregados: os patrões têm todo o poder, os empregados têm toda a responsabilidade.
Se existisse um super-herói português estou certo que diria que com um grande poder vem sempre uma grande
irresponsabilidade.
Mesmo quando nunca parece, o português
sempre padece.
Um português nunca está bem ou mal, está sempre assim-assim, ou então mais ou menos.
O verdadeiro português é completamente falso, tanto mais falso quanto mais verdadeiro.
Os portugueses são os primeiros a classificar a sua condição como boa
(uma boa merda, se quisermos ser exactos).
4
“Deus e o demónio são incompatíveis em toda a parte, excepto em Portugal”
Teixeira de Pascoaes
O português é um ser paradoxal, vive acima das suas possibilidades e abaixo de cão.
O português não gosta de trabalhar, quando não é preguiçoso é poeta.
O português odeia a corrupção. Odeia-a com a mesma intensidade com que inveja os corruptos. O português não discrimina os outros, o português trata igualmente mal uns e outros.
O português é pacífico, mas revolta-se com facilidade, a mesma facilidade com que de novo se submete.
No que toca à língua, os portugueses lembram alguém que atraiçoa o seu amor, a torto e a direito, por tudo e por nada, e depois afirma que o amor é que é traiçoeiro.
O português quase nunca é quem se julga ser; ou então é quem não é, o que é afinal uma outra forma de não ser.
O português é sempre vários, o problema é que a soma nunca dá certo.
Portugal tem sido tão constante a exportar portugueses quanto a não se importar com eles.
Será que o português não gosta de trabalhar porque é mal pago, ou será que é mal pago porque não gosta de trabalhar?
5
“terra de poetas tão sentimentais que o cheiro de um sovaco os põe em transe”
Jorge de Sena
Os portugueses são inventivos e criativos, conhecem 1001 maneiras de cozinhar bacalhau, mas têm um único modo de ser, triste e envergonhado.
Os portugueses riem muito, mas é quase sempre um riso alarve, que ri dos outros e nunca de si mesmo. Talvez por isso, quem sabe, os portugueses sejam tão tristes.
Os portugueses são tristes, tão tristes que os sorrisos têm sempre de se submeter a rigorosos testes de selecção.
Os portugueses são tristes,
são tristes mas não são uns tristes.
Os portugueses são tristes, são tristes e são poetas.
Por isso é que em Portugal tantos poetas são tristes e tantos tristes
são poetas.
Escusado será dizer que o português adora a língua, mais a de vaca do que a de porco, sobretudo quando estufada, com ervilhas.
O português culpa-se muito,
culpa-se muito e desculpa-se ainda mais.
Os portugueses lamentam-se tanto que, quando não se lamentam tanto,
ainda mais se lamentam.
Para o português é sempre tudo ou nada e,
por isso, raramente alguma coisa.
6
O meu país é o país dos quatro efes
João Bentes
O português é persistente, muito persistente, persiste continuamente nos mesmos erros. Ser português é sempre não ser, não ser mais do que isso.
Ser português é afinal uma enorme arte, uma enorme arte e um ainda maior desastre.
Ser Português não se ensina;
mas também quem o quereria aprender?
O corpo humano é constituído por 60 a 70 por cento de água. Fosse vinho e todo o planeta seria português.
O português reage aos problemas e adversidades de forma singular mas invariável: ou somatiza ou soma tusa.
Não ter cão e caçar com gato é ser esperto. Ter cão e caçar com gato é ser português.
Em dias de nevoeiro os portugueses passeiam-se orgulhosamente de óculos escuros.
O pior de ser português, de acordo com a maioria dos portugueses, é que não há nada pior do que ser português
7
No meu país não acontece nada
Ruy Belo
Em Portugal nada se cria, nada se perde, tudo fica na mesma. Nada vale a pena em Portugal, quando não é o corpo é a alma que está mal.
Existe uma tão grande correspondência entre a pequenez do país e a pequenez dos portugueses, que é legítimo perguntar se foi o país que os fez à sua medida ou se foi exactamente o contrário.
Deixassem os portugueses de se preocupar tanto com o seu real tamanho e talvez pudessem
vir a ser do tamanho dos seus sonhos.
O português ora fala de mais ora de fala de menos, que é afinal o que normalmente acontece a quem não tem nada para dizer. Mas o português tem de falar-se, pena é que seja muito melhor
a calar-se.
Esquecida que foi a raça, os portugueses tornaram-se rafeiros. Uma raça de rafeiros, se é que me percebem.
Em Portugal a única regra que não tem excepção é a de que não há regra sem excepção.
Será que os portugueses acreditam em Portugal?
Os portugueses acreditam em Portugal, não parecem é acreditar que são Portugal.
8
“Minha pátria é a língua portuguesa”
Fernando Pessoa
Portugal é dos Portugueses, mas só de alguns, dos mesmos que querem vender Portugal.
O português vive mal,
vive mal mas sobrevive bem. O português é inculto, piegas e não gosta de fazer sacrifícios. Não admira assim que tenha
os governantes
que tem.
Saudade é uma palavra que só existe em português. Imarcescível também. E o mesmo para tartamudo.
O português sente sempre saudade da ditosa pátria sua amada, aquele lugar triste onde nasceu e onde cedo conheceu o exílio.
Para o português a sua língua é cada vez mais a sua pátria, uma pátria resistente e portátil que poderá sempre ter consigo quando Portugal não existir.
Se um português está fraco é porque está doente, mas se está forte é porque está gordo.
Os portugueses são infelizes e talvez não o possam deixar de ser, mas bem podiam habituar-se a ser infelizes à vez ou apenas de vez em quando.
Portugal é pequeno e nunca será grande. Mas se nunca será grande, sempre poderia ser Grândola.
9
Eu gosto desta terra. Nós somos feios, pequenos, estúpidos, mas eu gosto disto.
António Lobo Antunes
Há duas formas comuns de ser português.
Uma é falar sempre mal de Portugal. A outra
é nunca falar bem.
O português nunca está ambivalente, nunca,
O português está sempre
ambimedroso.
Portugal é um país de mortos-vivos.
Em Portugal nenhum assunto se resolve,
nenhum assunto fica realmente
morto e enterrado.
Da discussão nasce a luz, é verdade, mas também é verdade que a luz se paga, e está cada vez mais cara. Talvez seja por isso os portugueses evitem tanto discutir.
Não é verdade que os portugueses sejam uma grande seca. Pelo menos 30% são seca extrema.
O homem está entre a besta e o arcanjo, o português está entre a besta e o marmanjo.
O melhor amigo do homem é o cão, o melhor amigo do português é o cão-guia.
Não sei do que o português gosta menos, se de ser mandado, se de mandar, mas, mandem-me onde me mandarem, deixem-me dizer que esse é sem dúvida o principal problema de Portugal.
Portugal, tal como os portugueses, vai sempre andando, andando, andando. Talvez por isso nunca chegue verdadeiramente a lugar algum.
10
Somos um povo de pobres com mentalidade de ricos.
Eduardo Lourenço
Em Portugal a política é sempre uma questão privada. Entre a política e o cidadão não há qualquer relação.
É certo e sabido que os portugueses amam os seus semelhantes. Por isso é que idolatram e escolhem para seus chefes homens sem qualidades, homens que por sua vez acreditam,
acima de tudo,
na ausência de qualidades dos portugueses.
Em Portugal a política e a arte são assunto exclusivo dos políticos e dos artistas, uns e outros tão pequenos
e auto-insuficientes como todos os
portugueses.
Em Portugal nunca se volta atrás com a palavra, em Portugal volta-se sempre atrás com a acção.
Em Portugal decide-se muito, é verdade.
decide-se muito e cumpre-se
ainda mais.
Um verdadeiro português nunca tem orgulho de Portugal mas tem sempre orgulho de ser português. Ou será ao contrário?
Encontrem um homem que se orgulhe de Portugal e dos portugueses e encontrarão um homem ingénuo. Ou então perigoso, perigoso e necessário.
É verdade que os portugueses contam piadas sobre tudo, mas o seu verdadeiro problema nunca foi esse, o seu verdadeiro problema é acreditarem nas piadas que contam.
11
“Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar”
Jorge Palma
Portugal é a terra onde vivem os portugueses, mas os portugueses são Portugal, o resto é paisagem.
Houve um tempo em que estávamos orgulhosamente sós. Esse tempo já passou. Agora já não estamos sós. E muito menos orgulhosamente.
Os portugueses invejam quem foram e lamentam quem são. A continuarem assim, grande coisa nunca
serão.
Os portugueses não acreditam na providência, mas acreditam em homens providenciais. O impossível parece-lhes sempre mais apetecível.
É verdade que os portugueses avançam sempre de olhos postos no passado e, em consequência, de costas voltadas para o futuro, mas isso não me parece um problema. Para alguma coisa existem os espelhos retrovisores!
Os portugueses dividem-se entre os que detestam e os que idolatram o processo de decisão, o que é o mesmo que dizer que um português, qualquer que ele seja, nunca chega realmente a decidir o que quer que seja.
Os portugueses têm de mudar.
Nem que para isso tenham de deixar de ser portugueses.
Os portugueses têm de mudar.
Ou mudam o país ou mudam de país.
12
Eu sou o meu país,
sou aquele que se cala, sou aquele que se diz.
Sou o meu país e isso é que me dói.
Sou o meu país e isso é que me rói.
Bach, ou o silêncio
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Se há alguém que deve tudo a Bach, é seguramente Deus.
E. M. Cioran
§
Durante uma aula, e enquanto os alunos faziam uns exercícios, coloquei as Variações Goldberg. Foi o silêncio total.
§
Deixei de acreditar na existência de Deus. No entanto, sempre que ouço Bach essa minha não-crença desvanece. Quanto a mim é impossível um homem ter escrito música tão bela sem uma ligação directa a Deus. Se Deus existir, Ele está na música de Bach.
§
Por exemplo as Suites para Violoncelo. É nas pausas, nos silêncios, que mais vezes ouvimos o violoncelo respirar, recuperar o fôlego. Diz-nos algo que está para lá das palavras (que Bach me perdoe o cliché). Há uma Voz que nos diz que não devemos ter medo, que tudo irá correr bem. Essa Voz só pode ser concebida através da música. É aí que reside toda a grandeza de Bach: nessa Voz que só a música pode criar, pois de outra maneira ela seria ruído, estrondo.
§
Ao ouvir Bach todo o Homem hesita entre a crença em Deus e a não-crença em Deus. Ou nos Deuses, se preferirem. Ou no Divino. Esta é a principal característica da música de Bach: o contacto directo com algo que transcende o Homem, que lhe é superior, que o confronta com a sua pequenez, com a sua inequívoca mortalidade. Os Concertos de Brandenburgo não são o melhor exemplo para exemplificar esta minha posição. Foram, no entanto, a primeira obra de Bach que ouvi. Até os ouvir julgava que todo o Barroco era um amontoado de exageros, superficialidades, devaneios que não levavam a lugar nenhum. O que só prova a minha ignorância. Ora os Concertos de Brandenburgo foram uma revelação, uma manifestação de um Poder que, até então, acreditava não existir. Com essa primeira audição instalou-se em mim a dúvida, a inquietação.
§
Bach está para a música como Newton e Einstein estão para a Física. Sinceramente, não sei se já vi isto escrito em algum lugar. É provável que sim. Não consigo conceber as descobertas de Newton ou Einstein sem inspiração Divina – seja lá o que isso for. Com a música de Bach é a mesma coisa. Ninguém fica indiferente, por exemplo, a qualquer uma das suas cantatas. É humanamente impossível. Nessa impossibilidade reside o Divino em Bach. Talvez seja uma mera suposição. Mas há algo que nos ultrapassa quando ouvimos Bach, que não é explicável, que simplesmente é. E tudo aquilo que é ultrapassa-nos, projecta-nos para um outro patamar, onde Homem e Divino se encontram, tocam, são. E a música de Bach tem a capacidade de ser.
§
Não é estranho afirmar que a música de Bach tem uma forte componente teológica. Arrisco-me a chamá-la de teomúsica. Toda ela foi escrita para o Homem comunicar com o Divino, para estar mais próximo dele. Pensemos num exemplo: A Paixão Segundo São Mateus, BWV 244. Baseada nos capítulos 26 e 27 do evangelho de São Mateus, ela procura retratar os últimos dias da vida de Cristo, o seu sofrimento. Mas Bach (em todo o seu génio) vai mais além. Ele procura colocar o Homem em contacto directo com o Divino, transformando a sua música no veículo que permite esse contacto. Ela é, em certa medida, a única linguagem que Divino e Homem entendem e conseguem utilizar. Sem ela só haveria ruído.
§
Uma coisa é certa: não sou conhecedor profundo da música de Bach. Apenas gosto de ouvir. Reflectir, talvez, sobre ela. Pensemos no Concerto de Brandenburgo n.º 3, no último andamento, o Allegro. Já aqui disse que toda a música de Bach se inclina para aquilo que designo por teomúsica, isto é, uma música que procura o Divino. Ora o Allegro do referido Concerto n.3 é, do meu ponto de vista, um exemplo que retrata bem essa procura do Divino. Este Concerto foi escrito para três secções de cordas – três violinos, três violetas e três violoncelos – não esquecendo a base de cravo, que é reforçada por um contrabaixo. No último andamento, o Allegro, a simbiose entre todos eles é, simplesmente, perfeita. Num crescendo os violinos abrem o caminho às violetas, que por sua vez combinam com o discreto cravo. Todo o andamento funciona como uma espécie de mantra, onde princípio e fim se confundem, são o mesmo.
Desconsolo
/Parte 1/2
Quando os filhos adormecem, ele fecha a porta do quarto, abraça a mulher e deita-se devagar a seu lado. Desliga a luz, sente uma tristeza absurda.
“Onde é que eu falhei, Raquel?”
Ela toca-lhe na cara e a sua voz serena diz-lhe que não falhou. Os filhos são assim mesmo: decidem o seu caminho e nós nada podemos fazer; é uma guerra perdida, a última palavra nunca é nossa.
Naquela tarde, ele entrou no quarto de Débora, a filha de quinze anos. Ela veste-se mal, vai chumbar pela segunda vez. Entrou no quarto dela porque desconfiava dos seus ataques de riso à hora do jantar, quando se sentam à mesa e conversam sobre o dia que está a terminar.
Foi Raquel quem primeiro desconfiou desses ataques de riso, depois sentiu o cheiro a tabaco na roupa da enteada. A princípio nada disse, mas os sinais ficaram cada vez mais evidentes. Ponderou ser ela a falar com ela, mas seria inútil porque Débora não a respeita, não lhe reconhece qualquer tipo de autoridade. Débora não quer que Raquel ali esteja e nunca o escondeu.
Semanas mais tarde, Raquel sentou o marido no cadeirão da varanda e contou-lhe. Ele ficou incrédulo, depois enraivecido. Ela segurou-lhe no braço, pediu serenidade, mas o olhar dele estava vazio, não a escutava.
Os dias foram passando, nada mudou. Esta tarde, ele entrou no quarto da filha, revolveu as coisas dela, obrigou-a a confessar. Débora disse-lhe que fuma charros e que não vê mal nisso. Ele teve vontade de esbofeteá-la, mas não o fez. Sentou a família no chão da sala, falou demoradamente sobre os erros de Débora, que ouviu em silêncio, sem culpa, não se defendeu, ficou indiferente como se ali não estivesse.
Ele sentiu-se derrotado.
À noite, depois de fechar a porta do quarto, pergunta a Raquel onde falhou e ela, doce, explica-lhe que não falhou. Ele não a escuta porque está a pensar em Judite e em como tudo seria diferente, como tudo seria melhor, se ela não tivesse morrido, se ele não a tivesse deixado morrer. Raquel beija-o na testa enquanto ele pensa em Judite.
Depois, ele fecha os olhos, adormece cansado. Ela sai do quarto devagar, não o quer acordar. Não acende a luz da sala, entra na varanda, senta-se no cadeirão, o gato salta para o seu colo e ronrona.
Raquel sabe que não é amada, que o marido não fez o luto e que se culpa pela estúpida morte de Judite. Raquel está presa a algo que nunca existiu e que nunca existirá. Entre eles não há amor nem paixão. Houve consolo na dor, mas agora não há mais que conforto. Ela prefere este conforto ao risco. Nunca encontrou o seu lugar porque nunca o procurou. Agora sente que é tarde, desiste e aceita o pouco que lhe resta: ele não a ama mas é um bom homem.
A noite está quente, um camião e três homens recolhem o lixo dos caixotes da rua. O cheiro nauseabundo não a distrai dos seus pensamentos e o gato continua a ronronar no seu colo.