Perséfone nos Infernos


Comeu pois Perséfone as seis sementes
porque percebeu que ao ter sido colhida pela morte
seria para sempre flor da morte naquele palácio de xisto
Ela que dantes colhia gerânios, se lambuzava em mel
ferrava-se toda a ela e às irmãs, sansânica em cabelo
tirava-lhes dos rabos nus a rir os espigões
És tão bonita e tão tontinha, respondiam-lhe elas
já não a vêem há duas semanas e nem um telefonema
não deve andar a comer nada, e se definha
Viu Perséfone a coroa da morte e comeu pois as seis sementes
porque já não se imagina na luz fúlvida a ser rainha
Agora sim, coroados de negro negros os lindos olhos
colhe vida aos mortos, colhe da morte os vivos
ama sôfrega as flúvias cinzentas do marido
(e este outra ninfa à entrada dos xistos, junto às heras)
E uma a uma as seis sementes deglutidas
puseram os olhos mais que negros negros de Perséfone
a quererem mais que cegar, olhar para dentro

persefone.jpg

"TWOMBLY FALA SOBRE LEONARDO" e outros poemas sobre o fogo

TWOMBLY FALA SOBRE LEONARDO *

“Não saberão, os Homens, que é mais difícil

  copiar um sorriso do que um corpo; um

  Twombly do que um Rubens?”

                                   - Raúl Milhafre

 

Quando subi as escadas da

National Gallery e olhei para

a minha esquerda todas as

paredes do museu ruíram.

Aos pés de Maria do Amor

da Doçura eu era outra vez

menino e não sabia quem era.

Hoje sei o que sou. Sou uma leve

pedra aos pés de São João Uma

lágrima romana nos olhos de Leda

Uma vincada linha Uma curva

num ovo de cisne. E mais do que

tudo uma mancha de sangue nas

costas de um efebo adormecido.

E. P. TWOMBLY JR COPIANDO PICASSO

 

“Desire is not simple or Safe”

                         Joshua Rivkin

 

Este cabelo loiro enrolando-se

sedoso no interior fino deste

lápis diz carinhosamente que sim.

Os teus olhos Thérèse inocentes

perscrutam o meu templo Absoluto

um templo recuperado de Apolo

no meio do ardente deserto.

 

E é aqui que tu dizes vinda

do alto “Dá-me a tua chave

da vitória” enquanto cai sobre

mim o ouro e a pena de Zeus -a que

anuncia o passado transposto.

 

Tão pequeninos olhos cinzelavam a

minúcia do desenho e estendiam

a captação impossível da emoção.

 

Quando dois astros se cruzam

numa explosão galáctica para

que serve um raio num papel?

PANDATERIA

“I’m totally unprepared so i must

    compose as i singing”

        - Peter Ustinov as Nero

Aquela mulher que fui já não mora aqui!

As minhas sandálias gastou-as a terra e

já não tenho outra esperança senão

aquela que sei que virá: um afiado e

seco gume de uma espada entrando

no meu macio e esguio pescoço. Não

não mais evito o meu triste destino.

Com o lenço ensanguentado da minha

pobre mãe vítima dos homens e do

 

poder eu Octavia dou-me por fim

vencida. Mas antes que o frio metal

 

me fure a garganta quero no meu

triste leito de espera praguejar

mil pragas àquele que em tempos

foi meu marido: “Que a força quente

do fogo sob a sua lira seja o raio

inevitavelmente certeiro sobre

os seus virados trinta Anos!”

                                               

                                         TOCHA

Desespero

                    Arrependimento

                                                    Ternura

é tudo e é pouco o que sinto por ti.

              Todo o bem que poderia ter existido

  não existe. E é o não ter acontecido

que nos prende essa possibilidade

          paralela daquilo que nunca aconteceu

   ou acontecerá. E dada a distância da

abertura do arco solar das plantas do

meu jardim de flores a escolha foi a certa.

 

É na ternura deste Fim de poema que

                                          todo e qualquer elo

                          entre a minha memória e a tua pele

                                        se esgota e se apaga.

                                             Para com ele

                                                    fazer a

                                                     tocha

                                                       do

                                                      fogo

                                                      que

                                                       se

                                                    apagou.

*Poema de “O Nardo” (2020)

Cy Twombly (1921-2011) Petals of fire  dét. (1989.jpg

Cy Twombly - “Pétalas do Fogo” (pormenor), 1989.

Ao Zé Pedro Moreira

Isto dos deuses
Pedro Braga Falcão

Isto dos deuses já soou a revolução

agora vejo-os esparramados no sofá

à procura do telecomando já não há

divisão isto é tu ficas aqui no céu

tu no mar tu na terra tu com os humanos

porque desses humanos todos se esqueceram

tinham olhos no céu e ossos na terra

e que se saiba nunca souberam respirar

debaixo de água agora um dos deuses

muda de canal vê mulheres bonitas

suspira de enfado vê-las assim abertas

confunde-o antes Vénus andava sempre nua

mas ninguém a mandava despir-se

e se alguém a visse decerto morreria

ou fazia-lhe um filho não sei o que é pior

isto dos deuses já teve mais templos

coitados é difícil ver televisão entre ruínas

entra muita água não que chova acho

acho mesmo que um deus nunca chove

deve ser por isso que os templos antigamente

eram ciclos no céu sem paredes

aí sim seria confortável para um deus

fechar as portas fechar os olhos fechar os altares

e pensar que bem que estou aqui celeste

mas lá vieram uns barbudos e uma vestes

com sacerdotisas lá dentro fazer sorrisos

um a um dois a dois três a três

e quando deram por isso pronto já os deuses

tinham sido enterrados porra não enterrem

não enterrem os deuses deixem-nos lá em cima

a ver televisão ao sábado de manhã

sabe bem já são crescidos não têm filhos

se tiveram já os engoliram ou cagaram

também lhes sabe bem ficar ali no alto

a descansar o tempo todo da nossa mortalidade

é muito pouco percebem agora aonde quero chegar

cada vez que nasce um deus é preciso admitir

que morremos uma eternidade a mais

é preciso mais uma tonelada de incensos

e um mar morto de libações e para quê

quando estamos quase a morrer eles fazem pausa

e vão à casa-de-banho aliviar-se

de todo aquele néctar que enjoo

mas como não querem perder pitada

fazem pausa e estendem a mão para a sandes

para a sandes de ambrósia feita há três séculos

ainda está boa não haveria de estar é divina

dão uma dentada e lá põem no continuar

é aquele momento-chave meteoritos por toda a parte

vulcões lava terramotos o pacote total

mas já estão com sono desligam a televisão

e deixam-nos ali a representar para o vazio

já viram esta merda nós aqui

com os nossos melhores gritos melhor maquilhagem

a interpretação do século ninguém representa

melhor do que os actores no momento da morte

e pronto já ressonam demónios com deuses

com deuses destes quem precisa de idolatria

mais valia fazer um canal privado

e destruir todos os seus templos mas claro

isso está fora de questão já os destruímos

todos não foi pelo menos aqui

os que falavam grego ou troiano ou outra

língua qualquer de esqueletos

já ninguém os entende bolas deve ser difícil

lá naqueles seus canais devem ter legendas

mas legendas em quê? divago

voltando ao assunto digam-me vá

não teria sido melhor não lhes destruirmos os templos?

Autores convidados em Março

Fernando Colitta nasceu em Grottaglie (Itália). Estudou Lettere Moderne na Università di Roma “La Sapienza” e Linguística na Università di Pavia, levando a cabo igualmente estudos teatrais. Em 2016 organizou uma conferência multidisciplinar sobre a Inteligência Artificial. Trabalhou como actor em Itália e leccionou italiano em França. Vive actualmente no Porto.

Gonçalo Sério Limpo, natural do Porto, é músico, ilustrador e designer. Desde cedo se interessa pela vida artística: aos 13 anos inicia-se no desenho e na pintura com os artistas Cristina Guise e Alberto Péssimo, na Cooperativa Árvore. Estuda também canto e viola d’arco no Conservatório de Música do Porto. É formado em Design de Comunicação, pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, e em Canto Lírico, pela Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo. Passa um dos semestres das Belas-Artes em Milão e viaja por toda a Itália, ganhando uma cresceste admiração pela arte do cinquecento, referência insistente na temática e estilo do seu trabalho. O estudo da música e do movimento complementa a sua visão com um entendimento mais abrangente de harmonia, ritmo, composição e corporalidade. A novela gráfica integra também parte do seu imaginário, pela alquimia das relações possíveis entre palavra, narrativa e ilustração. Procura criar formalmente uma gramática de cor, de linha e de palavra que floresçam numa área cinzenta entre o espaço negativo e o positivo, entre a ilusão do escultórico e o puramente bidimensional, entre o experimental e o arqueológico.