Adaptação, Antecipação, Fé e Custo

172. ADAPTAÇÃO

Sofria, sofria sempre, sofria de uma forma contínua e invariável; sofria de tal forma e com tal intensidade que qualquer alegria, por pequena que fosse, lhe era completamente insuportável.

191. ANTECIPAÇÃO

Desiludido com o presente, sentou-se à espera do futuro. Muitos anos depois, olhava para o passado com desespero e sentia ainda mais saudades do futuro.

211. FÉ

Todos os dias pela manhã, antes de ir trabalhar, levava o cão à rua. Ao fim-de-semana fazia o mesmo, apenas um pouco mais tarde. Caminhava ao ritmo do cão, num percurso quase invariável. Acreditava que era ele que passeava o cão, quando na verdade era o cão que sempre o passeava.

P.S. Pode ser de interesse para os leitores saber que o cão era branco.

232. CUSTO

Era um escritor de renome internacional, considerado porém um rematado machista, porque todas as suas personagens femininas obedeciam exclusivamente a uma exagerada visão masculina. Um dia o escritor cansou-se e escreveu um romance visto pelos olhos de uma mulher, considerado o melhor dos seus romances. Um ano depois da sua publicação o escritor ainda se vestia de mulher e estava a considerar colocar implantes mamários.

Apontamentos sobre o latir dos cães

Corre, bicicleta, corre.
Varre as folhas dos meus joelhos esfolados e diz-me porque é tão curta a estrada,
Que foi inaugurada há cinco minutos e já se fez noite. 

O caminho é de cinza e o pasto secou
As ovelhas emagreceram como os dentes gastos das velhas pretas de roupa e de luz.

As árvores bailam quando curvas o guiador.
Serão salgueiros?
Nem vi, tal a pressa dos rebuçados
Que se derretem nos bolsos descalços
Da rotativa vida a cem à hora
Ou o que a roda permitia.

A geografia muda
Como varia a ementa em casa,
Uma diferença no modo como se fazem as torradas
E as sopas com mais ou menos sal
Como convém aos velhos, senhores de razões.

Os anos dançam no esquecimento de muita coisa.
Morreu o cão,
Mas o gato imita-o. Pede comida e atenção
Na melancolia deste dia de Dezembro
E vai à rua no cio das gatas
E cruza telhados cheios de musgo e de salitre.

O meu corpo vai mudando.
É menos veloz, mais acostumado ao lento modo
De chegar à sala e pedir sono.

Já não recebo telefonemas
Ou quem me liga
Vende pacotes de imagens ou prestações de suor
Com um pequeno riso pelo meio,
A servir de garantia.

Ainda amo.
Ainda sonho com um Verão de nespereiras.
Ainda tenho uma bicicleta obsessiva
No rebentar das ondas do mar
Da minha solidão.

Ainda oiço o latir dos cães,
Quando se faz noite.

E foi um dia como outro qualquer.
Um dia para juntar ao jogo das paciências
E dos calendários.

Para descontar ao tempo.


O próximo livro de Rui Pedro GonçalvesUm Rapaz à Procura da sua Idade, é apresentado hoje. Foi publicado pela do lado esquerdo.

György Petri, Prendeste-me ao teu anzol, senhor.

Tradução: João Miguel Henriques et al.

 

Prendeste-me ao teu anzol, senhor. 
Há vinte e seis anos 
que me enrolo e contorço 
sedutoramente, mas 
a linha não fica mais tensa. 
É de ver 
que não há peixe no teu rio. 
Se ainda tens esperança, 
escolhe um isco diferente, 
Foi bonito 
ter sido escolhido. 
Mas agora apetece-me 
rastejar e secar ao sol.