dentro de cada máquina escorre o sangue dos empregados

 Ernesto von Artixzffski, aka Sergio Maciel

 

dentro de cada máquina escorre o sangue dos empregados.
dentro de cada máquina escorre o sangue das empregadas, das mulheres e das fêmeas.
dentro de cada máquina, escorre o sêmen dos machos.
dentro de cada máquina. 

dentro de cada máquina há uma infinidade de pedras. 
dentro de cada máquina, há o choro das lâminas. 
dentro de cada máquina há o arrepio e o arrependimento. 
sempre dentro de cada máquina. 

dentro de cada máquina há ruas sem saída. 
dentro de cada máquina, há o cheiro dos mendigos. 
dentro de cada máquina, cai a neve esperada. 
dentro de cada máquina nunca nascerá nenhuma flor. 
dentro de cada máquina. 

dentro de cada máquina não cabe a lua. 
dentro de cada máquina, há divisões, cimento e dormitórios. 
dentro de cada máquina há sempre sirenes. 
dentro de cada máquina, cabe a noite e o peito devorado. 

dentro de cada máquina, o ar é fumaça. 
dentro de cada máquina, moribundos dormem sobre a ponta dos alfinetes.
dentro de cada máquina o banquete não sacia a fome de tantas bocas.
dentro de cada máquina não se faz sexo. 

dentro de cada máquina sempre haverá uma navalha para cada carne. 
dentro de cada máquina não existe a lembrança das coisas. 
dentro de cada máquina, há o pó, a pólvora e o fumo. 
dentro de cada máquina, sempre dentro de cada máquina, 
há insetos decrépitos, agrupados, abandonados e sós. 

mas apenas dentro de cada máquina. 

Comerei o teu ódio como se fosse amor

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Descobri a Miau! numa livraria espanhola em Berlim, a Bartleby and Co. Segunda edição, de Janeiro de 1997. Na contracapa lê-se: Villa 99, Hacienda 2 Mares. La Manga del Mar Menor. 30370 Murcia. Mati, Lidia, Mabel, Cuca, Mª Paz. São elas que na primeira página (chamar-lhe editorial poria a coisa em termos demasiado arranjadinhos para uma zine), escrevem: “Gracias a todos los que nos escribís cosas bonitas sobre Miau! Y a los que no nos quieran, nos comeremos su odio como si fuera amor.” E é a pensar nisto, talvez a temer que alguma parte do nosso corpo seja arrancada e esfiapada quem nem um bacalhau,  ou talvez com ar de quem acabou de se render ao sábio conselho – nunca deixes que façam farinha mole contigo –, que passamos para as páginas seguintes. Há uma crítica ao Festival de Bullas, festival de música independente que começou nos anos 90, na região de Múrcia, Espanha, e terminou em 1998, apesar de ter tido uma edição em 2003. Naquele ano (97) o festival recebera os Fangoria, Popstal e Iluminados, bandas que tiveram grande influência na cena indie dos anos 90 em Espanha.

Há um obituário sobre Mathew Fletcher (1970-1996), baterista dos Heavenly (indie pop anos 90), que se suicidara com 25 anos, críticas a álbuns (“Beat Happening”, da banda com o mesmo nome, lançado em 1985 pela K Records), retrospectivas de bandas (June of 44, antigos Rodan, com um álbum que revelaria influências de Slint, Shellac e Fugazi, e uma canção, “June Miller”, que supostamente faria referência ao triângulo formado por Henry Miller, June e Anaïs Nin) e entrevistas (Hood, banda britânica de indie rock, anos 90, e Run On, banda de rock americana da mesma altura).

E há ainda uma crítica a um filme, Half-Cocked, de Michael Galinski, baixista de Sleepyhead, um road movie de culto dos anos 90 sobre um grupo de jovens que decide assaltar uma carrinha e roubar todo o equipamento de música para formar uma banda e fazer-se à estrada.

São 45 páginas de música e outras variedades (de My Blood Valentine à Barbie e da Barbie a Nick Drake, com direito a uma biografia ilustrada da Hello Kitty – “Hello Kitty en Puroland”, “Kitty juega con dos keroppi”), nesta zine criada por seis miúdas com “un corazón riot grrrl”. 

Uma liberdade aterradora

O tempo em que fui mais feliz foi quando tinha cinco ou seis anos anos. Não por ser muito novo ou ainda não ter entrado na escola. Por volta dessa idade media um metro de altura e a proximidade do solo permitia-me sentir o cheiro da relva fresca. Agora o único que sinto é uma liberdade assustadora.

A actividade política distancia-se cada vez mais de qualquer coerência social e é o lugar privilegiado de homens e mulheres sem qualidades. Os efeitos são cada vez mais nefastos mas eu, na minha vida pessoal, enquanto indivíduo, acabei por lucrar com este deterioro crescente da administração pública. O ayuntamiento de Madrid através da consejeria de transportes adquiriu trinta novas composições que não têm cabimento nas actuais linhas da rede de metropolitano. Estes comboios, dotados dos sistemas mais modernos de navegação, permitem, por exemplo, conseguir o máximo de composições numa mesma linha. O sistema estabelece distâncias mínimas de grande comodidade para os clientes que nas horas de maior trânsito podem contar com intervalos de espera de menos de três minutos. Mas estas composições simplesmente não fazem falta. O desacerto das previsões foi total.

Tenho cinquenta e um anos. Há quatro anos que trabalho de noite, à hora em que o metro está encerrado ao público. Conduzo durante três horas composições novinhas em folha. De madrugada, conduzo comboios fantasma. Faço circular os vagões para evitar que o desuso cause um dano que geraria novos e avultados investimentos na reparação das máquinas paradas. No princípio ainda abrandava à chegada às estações; parecia-me infringir alguma regra se não o fizesse. Não tinha lógica nenhuma, não havia obviamente ninguém para entrar ou sair. Se abria as portas era por questões de conservação das peças e na maioria das estações não havia sequer iluminação. Não tinha nenhuma ordem expressa sobre como manobrar; a velocidade ou a delonga estavam entregues à minha disposição do momento. O aborrecimento e a solidão faziam-me divagar enormemente aos comandos dos vagões vazios; e o pior era quando não me sentia Deus, quando me sentia apenas um passageiro de um comboio louco e sem rumo, alheio ao fim da linha, à aproximação da estação terminal, quando devia travar, travar a fundo, ferro com ferro, estrépito agudo, sentimento de desespero, respiração suspensa, segundos intermináveis e, finalmente, a curiosidade sobre o que vem a seguir, quando já não existe outro desfecho que não seja perder para sempre as prestações relativas ao leasing de um trem fantasma; no instante em que Deus acordou do sonho e experimentou a realidade, a super-realidade: ser um simples passageiro de uma vida absolutamente desgovernada.

Ah, o campo

I.

 

Não sinto a menor falta do campo. Com morar lá tantos e tantos anos (uma eternidade aproximada), acabei por me render a toda espécie de dualismo fácil. Envergonha-me dizer que houve para mim, em algum momento, o campo – e para lá da rodovia, uma cidade, o seu plural, acidentes (as estradas que nos cintavam). Rapidamente se impôs a necessidade de rarefazer um pouco as coisas, sutilizá-las – afinal, era uma vida que não se colocava, dava-se ao fim e ao cabo em qualquer canto. Suavizada a luz a que me apareciam de costume estas questões, pude finalmente concluir que toda terra é estrangeira para alguém. Reconheço, não é difícil atinar com este raciocínio; há mesmo nele certo ranço a lugar-comum; torná-lo uma segunda natureza – não precisar remontá-lo a cada vez, por exemplo, que pego numa câmera – isto sim me custou um bocado. 

II. 

Não sei se entendi a sua pergunta. Você quer dizer estes retratos? Não, não sei de quem são, são meus irmãos, foram passar o ano-bom no sítio de um amigo. Sim, parecem muito felizes.