Je suis Paris

Paris, um certo Paris, foi atacado por cerca de uma dezena de terroristas que foram matar o maior número possível de pessoas. Não é preciso qualquer adjectivo para amplificar o horror que esta descrição provoca imediatamente.

Antes de mais, as minhas condolências, e as da Enfermaria 6, aos familiares e amigos das vítimas (mais de uma centena de mortos, muitos feridos, alguns gravemente, outros traumatizados, vivendo no horror de ter estado perto da morte ou de se terem safado, imaginando que terá sido à custa de alguém). Infelizmente, este meu impulso ético é irrelevante para o consolo dos vivos, mas é bom que a performatividade do que fazemos e dizemos seja também um exercício existencial, preparando-nos para viver numa comunidade. Neste caso, uma comunidade de vida, de vida e de liberdade, de liberdade e de felicidade, de felicidade e de fraternidade.

O que aconteceu em Paris parece resistir ao pensar, como se tivéssemos transposto a fronteira do humano. Mas não, foi só a repetição de cenas que acontecem frequentemente, embora com cenários semióticos e sociais diferentes, no Médio Oriente. O Impensável só nos embaraça quando se mistura com o pensável, isto é, quando um grande niilismo vem abalar uma ordenação que conhecemos (racional e afectivamente). Assim, sofremos, cognitiva e moralmente, mais com o esboroar da Ordem do que com o que provoca o Caos. O que nos choca sobretudo agora é muitas vidas cessarem, sem redenção, de estar connosco. Não queremos verdadeiramente, apesar do que se vai escrevendo, ir à fonte do sopro mortífero que apagou sem qualquer misericórdia todas estas magníficas vidas, cada uma delas plena, completa, exuberante..., cada uma delas sagrada.

É por isso que o discurso de vingança, directo e invertido, a definição intuitiva sobre quem semeou mais ventos para a tempestade assassina, polui o já de si toldado horizonte actual de sentido. Num dos campos, vemos nascer ou amplificar-se o ódio ao Islão, à teologia da morte do Estado Islâmico, ao terrorismo arcaico dos fundamentalistas islâmicos. Noutro, buscando a culpa infinita do Ocidente, há os que acusam incansavelmente a Europa de se ter posto a jeito ao participar militarmente no vespeiro político e teológico do Médio Oriente. Os primeiros, convocam para a marcha o velho reaccionarismo vingativo que nos alimenta desde a Grécia Antiga, as Tragédias clássicas sublimavam isso mesmo, sabendo que era imperioso conter no faz-de-conta estético os impulsos vitais do contra-ataque exterminador. Os segundos, em geral do campo da esquerda política, apelam à racionalidade e à compaixão (o que se assemelha a pedir a alguém para ter calma quando se lhe vai cortar uma perna), mas também a que o Ocidente assuma mais uma vez todas as culpas, mesmo se não as conseguimos formular, isso não importa realmente, é preciso, como em algumas personagens kafkianas ou na penitência cristã, ir à procura da culpa. Num caso como no outro, alimenta-se a fogueira, já bastante descontrolada, da vingança. Prevalecem os impulsos de morte (Freud), busca-se o prazer na destruição e não na afirmação, na morte e não na vida.

Se num primeiro momento parece que não queremos realmente tornar pensável aquilo que abre a condição humana a possibilidades que preferíamos guardar para outros seres, talvez só ficcionais, surge depois um imperativo, cognitivo e ético, que exige explicações. E, embora mergulhados numa irremediável linha de tristeza, começamos a ensaiar hipóteses sobre premeditações, porque é ainda mais insuportável supor a pureza de um acontecimento sem intenções. No meu caso, li estes ataques terroristas como um complemento ao ataque a Charlie Hebdo em Janeiro último. No primeiro caso, tratou-se de atacar um dos pilares do Ocidente: a liberdade de expressão. Agora, foi o outro pilar (não há necessariamente só dois): o do hedonismo. Veja-se que o bairro da République, o Canal Saint-Martin, a rua Bichat são locais de encontro e divertimento da juventude parisiense. O Bataclan é uma sala de concertos, local de felicidade musical e de contactos amorosos. O Stade de France, onde decorria um França-Alemanha, representa também, aos olhos dos super-sérios e míopes fundamentalistas, um lugar de diversão, de vida demasiado exaltante.

Ora, o que este islão rigorista, teológico até às entranhas, adito a ritos de morte, incapaz de lidar com a complexidade luxuriante da vida, temente à sexualidade partilhada mais elementar, com a preguiça dos que agem a partir de uma checklist de 5 mandamentos, alimentados por maniqueísmos elementares, o que este islão quis, dizia, foi degolar alguns dos principais campos do nosso estilo de vida.

Por isso, je suis Paris, aujourd’hui et toujours!

Glucksmann morreu

Morreu hoje, com 78 anos, o filósofo francês André Glucksmann. Tinha a coragem de se envolver física e intelectualmente para sustentar ou recusar o que achava justo ou injusto. O “ex-novo-filósofo” (uma piada exclusiva do pensamento francês) tinha uma atracção desmesurada pelo terreno, por meter as mãos na massa, pela tradução panfletária do que pensava. Obrigava-se obcecadamente a combater o que achava mal (inscrito no desvio aos Direitos Humanos).

Glucksmann esteve entre gerações – Sartre, Aron, Foucault, Deleuze, Guattari... e os “nouveaux philosophes” (sobretudo Bernard-Henry Lévi) – e transitou do marxismo para o maoismo (forma de combater o estalinismo e a raízes totalitárias do marxismo) ao publicar La Cuisinière et le Mangeur d’hommes (Seuil, 1975, bestseller), mas continuou a pensar no horizonte da esquerda política até à década de 90. Aí, toma posições mais pró-americanas, inspirado por um atlantismo moderado, e assume reservas profundas em relação aos movimentos pacifistas. A defesa dos Direitos Humanos passou a ser o critério magno da sua acção (militando pelo acolhimento dos boat people fugindo do Vietname comunista, apoiando a intervenção contra a Sérvia, defendendo a intervenção militar na Líbia ou na Síria, criticando sem concessões o “Tsar” Putine...). Acabará por apoiar Nicolas Sarkozy, embora faça pouco depois um acto de contrição. 

 

Guy Sorman rende-lhe homenagem definindo-o como “um justo e um puro, porta-voz das vítimas de todas as ideologias totalitárias”. Além disso, segundo Bernard-Henry Lévi, ele sabia que se pode ter razão sozinho, que a verdade não resulta do jogo democrático ou estatístico. Isso dava-lhe a força de preservar as suas convicções dos ataques, por vezes ferozes, dos mestres do pensamento mais à esquerda (a França manteve-se durante quase toda a segunda metade do século XX sem qualquer intelectual de direita).

Numa síntese apressada: viveu corpo-a-corpo com a realidade política, muitas vezes guiado por aquilo que Michel Foucault designava a “grande cólera dos factos”; era ela, mais do que qualquer ideologia prêt-à-porter, que o punha em movimento, tornado humano capaz de abanar a indiferença até a transformar em gestos consequentes a favor dos mais desprotegidos. Se um lugar qualquer, mesmo imanente, estiver guardado para os melhores, Glucksmann habitará agora nele.  

una forma de arder, 1

Poemas de amor más o menos

XXII

En los poemas de amor hay demasiados corazones,
muchos poetas parecen médicos o carniceros,
con las manos cubiertas de sangre,
pero ignoran en qué consiste una pericarditis,
un electrocardiograma, el dolor o la fiebre,
cómo se despieza una ternera o un cordero,
nunca han visto un corazón de verdad.

Una vez me ofrecieron un pedazo de corazón
y todavía siento náuseas.

Enseguida me contaste, por hablar de algo,
que tu apellido significa corazón
en tu idioma, me explicaste cómo
se pronuncia, cómo llegaste aquí.

A continuación encendiste la tele
para ver el fútbol, muslos entre abrazos,
y quejándote del nivel del fútbol en tu país,
nos olvidamos ya de los corazones y comenzamos
a amar nuestros cuerpos en el minuto diecisiete.

Rikardo Arregi Diaz de Heredia, Vitoria-Gasteiz, 1958.


una forma de arder é uma selecção de poetas espanhóis, ao cuidado de María Mercromina. Rikardo Arregi Diaz de Heredia é o primeiro poeta da série. 

(before liberty was a lady.

Rente resta o rosto à maré que insiste recomeça

vindo avanço vago verte frente enfim força essa

 

que algo sangue decerto derrama sobre o verso

assim carne se ergue esparso espaço submerso

 

sobe instante urgente aí farol acima assente estás

já concreta já figura a mais mesmo coroa capaz

 

e luz parece enquanto bruços no deserto rezo-te

ciente quão preste tal gesto raso te traz peço-te

 

olho por crente qual credo torrente cuja vista encena

eis soberana livre isenta tua imagem diante terrena

 

ver-te sim ver-te pronta perto supera exato indício

até que deus é destruído pelo extremo exercício

da beleza.)

 

Niilismo 6/c. 10 O progresso não existe

Não há qualquer plano de progressão infinita, só há transformações, que podem ser, de acordo com o ângulo interpretativo, melhores ou piores. Nesta questão, hermenêutica mais do que ontológica (o que “significa” em vez do que “é”), coabitam duas grandes linhas de sentido: declínio (uma tradição de pessimistas, dos cínicos gregos a Oswald Spengler, passando por Voltaire e Schopenhauer) e elevação (quase sem filósofos, talvez só Leibniz, mas com muitos economistas e gestores). Estas inclinações hermenêuticas, desde logo inscritas numa terminologia ambígua, dependem da época, do Zeitgeist, mas também do equilíbrio de forças projectadas pela nossa condição bipolar, somos seres fendidos entre o optimismo e o pessimismo, e quando encontramos alguém onde predomina claramente um dos pólos, pomo-lo rapidamente no índex da anormalidade.

Não havendo qualquer objectividade na ideia, ou sentimento, de progresso, sendo infrutífero, seguindo Karl Popper, procurar falsificar a sua possibilidade ou impossibilidade, emerge dessa ambiguidade a hipótese de nos acantonarmos, em modo quase-religioso, nas seitas dos conservadores ou dos progressistas. As designações assentam, nos dois casos, em termos que funcionam simultaneamente como substantivos e adjectivos: designar-se “progressista” remete para crenças optimistas; enquanto que os “conservadores” preferem as pessimistas (“realistas”, dizem alguns, eufemizando), identificados com a expressão: “para pior, já basta assim”.

A oposição que cultivam, como se só pudessem existir no equilíbrio improvável da contradição, tem uma fronteira relativamente clara, mas o caos semiótico, ou pelo menos a amálgama conceptual, reina em cada um dos lados. Neles acampam a diversidade política, a confusão estética e intelectual, as antinomias morais, a pluralidade existencial... Separa-os apenas um ecossistema de crenças, muitas vezes vagas, que oscilam, numa linha imaginária, entre o declínio e a elevação. Mas também isto é bem mais uma questão de discurso (dizia-me alguém que não escrevia textos alegres porque não tinha a gramática adequada) do que de análise de factores que pudessem confirmar ou infirmar a tese defendida.

A solução, que não resolve o problema (os verdadeiros problemas resistem sempre às soluções), passa talvez por Nietzsche. No Anticristo (ou Anticristão), §4, escreve que a humanidade não resulta de uma evolução contínua, que o progresso (Fortschritt) é uma ideia falsa. Posto isto, para ele e para nós, ou nos tornamos uns “enfastiados da vida” ou fazemos da ausência de progresso o estímulo para buscar novos valores vitais. Para isso, seguindo o mesmo autor, devemos combater o “pessimismo romântico”, dos “frustrados” e “vencidos”, com o “pessimismo da força” (Pessimismus der Stärke), um “pessimismo trágico” sem ilusões, feliz com o que acontece, um amor fati para quem reconhece, sem dramatizar, os seus limites e prefere mudar-se a si próprio em vez dos outros.

Por conseguinte, desaparece desta proposta o niilismo ligado ao pessimismo, a descrença no progresso linear, quase teleológico, dos optimista irremediáveis não conduz necessariamente ao nada. É possível rir depois de escorregar numa casca de banana, tanto quanto reconstruir a casa depois de ser varrida por um furacão. Se acharem estas sugestões pouco eloquentes, deixem-me convocar novamente Nietzsche: “[…] buscamos aqueles cuja existência é para nós uma alegria e encorajamo-los, enquanto fugimos dos outros – eis a verdadeira moralidade! […]” (Fragmento Póstumo, 1880, 6[203]) E para isto não é preciso ser-se optimista.

Se as dúvidas não se dissiparem com esta consolação (tipo Deus ex machina), asseguro-vos que o “pensamento positivo”, o optimismo de pacotilha, o entusiasmo ingénuo, a hipertrofia do eu, a embriaguez com álcool ou psicotrópicos gasosos... tudo isso está fora de moda. O psicólogo Yves-Alexandre Thalmann, segundo uma entrevista recente à imprensa francesa, acredita, é verdade, que a forma como pensamos, positiva ou negativamente, influencia os nossos comportamentos. Mas quando a corrente do “pensamento positivo” defende que realizaremos melhor os nossos desejos suprimindo as emoções negativas (medo, cólera, tristeza, angústia...) e esquecendo os obstáculos sociais e físicos, está a iludir-nos. Por um lado, o negativo não se apaga, no máximo será recalcado; por outro lado, os optimistas mobilizam menos energia para a realização dos seus objectivos, justamente porque são... optimistas. Thalmann propõe, assim, que se reintegre o negativo (emoções e ideias) de forma a acolher também uma parte importante da realidade, visto que quem visualiza os objectivos juntamente com os meios para os realizar e os obstáculos a enfrentar, é mais eficiente do que os órfãos do pensamento negativo.

Pessimistas trágicos de todo o mundo, uni-vos!