Os livros de Svetlana Alexievich

Svetlana Alexievich tem sido descrita como uma autora de não-ficção, um facto que tem sido apontado como exceptional na decisão da Academia Sueca em atribuir-lhe o Nobel este ano. Esta descrição é insuficiente: os livros de S.A. podem ser descritos como literatura reduzida ao essencial (e o termo “reduzida” é aqui, sem dúvida, redutor): os relatos que a autora compila nos seus livros – a sua criatividade é a mesma que fica reservada a um realizador de documentários – no fim somam-se para nos deixar com aquilo que foi descrito com a expressão uma história das emoções humanas[1], que é em última análise uma das grandes missões documentais da literatura, e um espaço amplamente partilhado pela ficção e não-ficção. Há uma missão testemunhal nos livros de S.A. que torna o seu trabalho herdeiro da função mais primordial, mais verdadeira se assim quisermos, da literatura: preservar a memória do que de outra forma jamais seria dito, jamais seria iluminado. Os livros de S.A. são, neste sentido necessários e valiosos.

Expostas à pressão da opinião pública, algumas das testemunhas que aceitaram falar com S.A. para o livro de que pretendo aqui falar, Zinky Boys, tentaram retirar os seus testemunhos mais tarde, ou processá-la em tribunal, "numa acção judicial em que autora acabou por prevalecer". Este aspecto é revelador não só do tipo de pressão política que governa operações de construcção de memória colectiva na União Soviética[2], mas das condições em que S.A. escreve os seus livros. Do seu valor testemunhal e do seu trabalho contraditório sobre a consciência colectiva: o desfasamento entre o que a imprensa diz e o que as pessoas dizem, o modo como elas se sentem. Enquanto histórias das emoções, os livros de S.A. catalogam relatos de violência, dor, injustiça, relações familiares e amor, que convergem para o retrato não do “homem soviético” como tem sido apontado num ou noutro artigo da imprensa internacional, mas das pessoas de um modo geral, em qualquer tempo ou lugar, nas suas intermitências de luz e escuridão. Em última análise, os livros de Svetlana Alexievich são isso: repositórios da nossa humanidade. 

Voltando ao ponto onde comecei, se queremos discutir o que é que os rótulos de ficção e não-ficção separam exactamente, podemos acrescentar que, em certo sentido, as realidades documentadas nos livros de S.A. acontecem precisamente no limite em que ficção e realidade se começam a separar, são produto daquele ponto da consciência em que estamos mais sozinhos com nós próprios, algo que S.A. tem em comum, por exemplo, com W.G. Sebald. (Sugerimos que faz sentido ler Zinky Boys e After Nature juntos.) E, na ordem do dia, se é de função que estamos falar, podíamos aqui citar o recente e badalado editorial de  David H. Lynn para a Kenyon Review (o hype é apenas parcialmente merecido, mas nós acreditamos nele) sobre o que torna um ensaio literário, porque estas palavras são muito oportunas para pensar o trabalho de S.A.:

Yes, language may provide a joy in itself, but the experience of fully engaging an essay’s tenor—the argument or subject or meaning—may sweep a reader toward a far deeper sense of fulfillment. This is equally true of poetry and fiction, naturally, of all true literature. It’s a process that catalyzes us into seeing in a new way, to grasping what may intuitively lie beyond language itself. [3]

 

Os livros de S.A. não são sobre joy ou fulfillment, nem sequer são exactamente sobre atonement, mas são representações daquilo que está para lá da linguagem, daquilo para que ela pode apenas apontar, essa profundidade com que só nos tornamos a encontrar quando ficamos completamente sozinhos com os nossos pensamentos, e isso, não sem ser através da evocação de experiências traumáticas, de alguma forma aponta para essa outra coisa que está para lá da linguagem, o lado misterioso do humano, que é a intimação do nosso amor. Não é a alegria da linguagem o que vamos encontrar nos livros de S.A., mas a sua força, a beleza brutal da sua função de instrumento, e, se tivermos sorte, no melhor e no pior, um encontro com nós próprios enquanto a sua superfície.  

Os livros de S.A. concentram-se num tipo particular de acontecimentos: aqueles que, tendo força suficiente para decidir as nossas vidas ou para as alterar radicalmente, são alheios à nossa realidade, no sentido em que não ocorrem no espectro da nossa rotina diária, isso que de outra forma pode ser definido como a normalidade, apontam antes para uma rotura completa com as leis que até àquele ponto regeram a nossa familiaridade com o real. Neste sentido, os livros de S.A. são estranhos.

A Segunda Guerra Mundial, a Guerra Afegã-Soviética da década de 80, Chernobyl. O quotidiano imerso na sua rotina de normalidade não é o que S.A. tem documentado, ainda que paradoxalmente isto tenha convergido para compor uma visão mais nítida dos processos históricos que são o pano de fundo dos seus livros. E esta nitidez advém sobretudo do facto de o objecto de S.A. não ser tanto relações de causa e efeito capturados na tentativa abstracta de reconstruir as leis gerais que guiam e decidem processos históricos, mas pessoas, sozinhas com as suas emoções, as suas memórias, os seus pensamentos, a sua imaginação, as suas perdas e derrotas, as suas nostalgias. S.A. tem sistematicamente escrito sobre gente em tempos de crise, gente na longa e solitária travessia de experiências traumáticas. Os livros de S.A. são, deste ponto de vista, uma experiência que testa os limites da nossa tolerância ao sofrimento. A própria admite que entre terminar de escrever o seu primeiro livro War’s Unwomanly Face (1985) e escrever Zinky Boys (publicado em 1992) a sua tolerância para o sofrimento tinha-se esgotado completamente.

Enquanto leitores de S.A., de alguma forma tornamo-nos parte de uma longa tradição que tem a sua origem entre os espectadores de tragédia grega, quando ler (ou assistir) se configura não apenas como um acto privado, mas como um acto cívico e político. No fim de ler S.A. o percurso que fizemos não é da ordem do nosso entretenimento, mas antes o do facto de estarmos mais alertados para a crueldade da vida, algo que em qualquer circunstância não devemos pensar que podemos ignorar. Isto é talvez uma descrição capaz da atmosfera dos livros de S.A. e daquilo que os motiva.   

Suspeito que este ano a academia sueca cometeu um acto que é um favor aos leitores deste planeta. O facto de S. A. ser uma autora de não-ficção é o que eu gostaria de descrever aqui como um não-debate[4], uma questão de resto muito menos interessante do que a ideia de que o gesto de premiar a obra de S. A. não será, nem no Ocidente, nem muito menos na Rússia de agora (como não foi nas datas de publicação destes livros)[5], entendido como um acto politicamente desinteressado.

Colocar os livros desta autora mais ou menos obscura sob o holofote gerado pelo prémio é um acto que convida a pressão da opinião pública mundial para a relação bastante dolorosa entre questões privadas e políticas na União Soviética e na Rússia de hoje; e os livros de S.A. todos eles lidam com momentos traumáticos na memória colectiva soviética.

Num conto de Mavis Gallant é possível ler-se esta descrição acerca de uma das personagens: “Pessimistic in the way women actually become when they settle for what exists.” Lembramo-nos desta frase quando em entrevista à New Yorker, S.A. explica a sua opção predominante por vozes de mulheres: “Women tell things in more interesting ways. They live with more feeling. They observe themselves and their lives. Men are more impressed with action. For them, the sequence of events is more important.”[6]

O segundo livro de S.A., cujo o título em inglês tem a duvidosa tradução de Zinky Boys (alguns críticos preferem a tradução alternativa Boys in Zink e foi com este título que os primeiros excertos foram publicados em inglês, em 1990, pela Granta[7]), compila uma série de relatos sobre a guerra Afegã-Soviética. A escolha de vozes predominantemente femininas é ilustrativa do ponto de vista da autora, citado acima. Os relatos dos soldados que regressam servem de contraponto aos relatos das mães e mulheres daqueles que não lograram regressar, tal como os relatos das mulheres que serviram em cargos médicos ou administrativos no Afeganistão de alguma forma colocam os homens no nexo de outros tantos papéis em relação a mulheres: filhos, maridos, amantes, vítimas de violência e perpetradores dela.

A guerra Afegã-Soviética é um evento desastroso na opinião pública da altura e é frequentemente apontado como o acontecimento que precipita a dissolução do exército soviético. A escassez de equipamentos adequados, os baixos salários, a falta de condições de treino e a consequente inexperiência dos soldados (a guerra foi maioritariamente combatida por recrutas entre os 18 e os 20 anos de idade), tudo isso é amplamente documentado pelos testemunhos compilados por S.A. É acessório falar aqui daquilo que foi a recepção da opinião pública russa (um apêndice do livro publica cartas de vários leitores) quando os primeiros relatos do livro de S.A. começaram a ser publicados em jornais na Rússia. Mas a carta de um leitor que se queixa a S.A. de que todos sabem que há uma distância muito grande entre a realidade e aquilo que os jornais russos publicam, e que os relatos dela vêm perturbar o status quo de um modo que roça a falta de pudor, pode ser citado como um exemplo ilustrativo do contexto da recepção do trabalho de S.A. Este desfasamento entre realidade e uma opinião pública manipulada é ainda demonstrado num aspecto particularmente cruel: o livro intitula-se Zinky Boys numa alusão aos caixões de zinco fechados (no livro apenas uma família logra ver o rosto do filho depois de morto) em que os soldados eram enviados para casa, o que permitiu que durante boa parte da guerra esta fosse retratada não como uma guerra mas como uma intervenção militar com funções predominantemente humanitárias. “Dever internacional” era a expressão com que as funções destes recrutas eram descritas. Dizer que esta geração, no regresso, se sentiu traída pela pátria não é uma descrição suficiente, e o livro de S.A. vem colmatar essa falta.  Num dos relatos (p. 29, 31, 32) uma mãe diz:

Yura was my eldest son. A mother shouldn't admit it, probably, but he was my favourite. I loved him more than my husband and my younger son. When he was little I slept with my hand on his little foot. I wouldn't think of going to the cinema and leave him with some baby-sitter, so when he was three months old I'd take him (together with a few bottles of milk) and off we'd go. I can honestly say he was my life. I brought him up to model himself on figures like Pavka Korchagin, Oleg Koshevoi and Zoya Kosmodemyanskaya... He understood ideals but not real life... Then one day, strangers came to the door and I knew from their faces they were bringing bad news. I stepped back into the flat. There was one last, terrible, hope: "Is it Gena?" They wouldn't look at me but I was still prepared to give them one son to save the other.

Assim, é também neste apecto que entendemos como um livro pode iluminar aquilo que, neste caso, muito literalmente nunca seria dito. E este é um dos aspectos mais cruéis do livro, porque nos permite entender que esta falta de esclarecimento da opinião pública, que acaba por vir a condenar esta guerra em termos que não estão muito afastados da do Vietnam no Estados Unidos, é um dos motivos pelos quais estes soldados foram entendidos no regresso quase como criminosos e, em muitos casos completamente alienados socialmente. O livro de S.A. de alguma forma tenta preencher esta lacuna e é eficaz em demonstrar que o processo de responsabilização por uma guerra deve ser um processo colectivo, que envolve a sociedade civil e militar. (De alguma forma, a pertinência deste tipo de debate é tanto mais visível hoje, sobre a responsabilização dos Estados Unidos pelas suas sucessivas campanhas no Médio Oriente, um debate dolorosamente actual face aos acontecimentos não apenas das últimas semanas mas dos últimos anos.)

E aqui podia ser feita uma última generalização sobre o significado da obra de S.A., naquilo em que esta tenta preencher uma lacuna na história de uma memória colectiva, o seu trabalho é o de, de alguma forma, restaurar o que já não pode ser recuperado. E isso é ainda o que esta relação entre literatura e memória colectiva pode fazer por nós, ou como se lê nas últimas linhas do livro, na reprodução do epitáfio de um dos soldados:

 

“Died defending his country.
The whole earth is a desert without you.”

 

[1] Sara Danius.

[2] "As a young journalist, in her native Belarus, Alexievich had found that the newspapers failed entirely to represent what made reality interesting to her. She said, “I began to understand that what I was hearing people say on the street and in the crowds was much more effectively capturing what was going on than anything I was reading.” Philip Gourevich em Human Rights Watch. Este artigo inclui um excerto de Voices from Chernobyl. Outro pode ser lido na Paris Review.

[3] http://www.kenyonreview.org/journal/novdec-2015/index/#.VjhW1eWYi9E.twitter

[4] Philip Gourevich na New Yorker: The second writer to win the Nobel, back in 1902, was Theodor Mommsen, the first of several historians and essayists to win the prize. Bertrand Russell was one; Winston Churchill was another. But it has been more than a half century since any such recognition—a half century that has seen an explosion of great documentary writing in all forms and lengths and styles, and yet there is a kind of lingering snobbery in the literary world that wants to exclude nonfiction from the classification of literature—to suggest that somehow it lacks artistry, or imagination, or invention by comparison to fiction. The mentality is akin to the prejudice that long held photography at bay in the visual-art world. 

[5] This year, in Izvestia, Zakhar Prilepin, one of Russia’s best-known writers, said that Alexievich was “not a writer,” and that she had been chosen only for her opposition to the Kremlin—and for not actually being Russian. “We get the picture: Bunin, Solzhenitsyn, Pasternak, Brodsky,” he wrote. Alexievich’s agent, Galina Dursthoff, who lives in Cologne, told me that she had accumulated a pile of hate mail from Russia comparable to the pile of congratulations from elsewhere in the world. The writers blasted the Nobel committee for awarding the prize to “a Russophobe” as well as “a Jew and a lesbian.” (Alexievich is not Jewish and has never made any public statements about her personal life.) Masha Gessen, “The Memory Keeper: The Oral Histories of the New Nobel Laureate.” 

[6] Masha Gessen, idem

[7] Granta, Boys in Zynk. Em português, sobre a autora, é possível ler-se o artigo de Luís Miguel Queirós no Público.

Que fazer, senhor juiz?

De mindinho em riste para melhor saborear o café, revela um imberbe quase trintão que pondera ser juiz. Anos de privação semearam-lhe um complexo de inferioridade que o leva a desbaratar o dinheiro que não tem em futilidades tais como telemóveis equiparáveis a naves espaciais ou relógios da dimensão de meio braço. Em virtude de nunca ter entrado numa universidade e de não ter convivido com o que apelida de “gente elevada”, tenta a todo o momento provar que não é por falta de inteligência ou de conhecimentos que não está onde julga que merecia. Não obstante careça de pensamento crítico, garante o folgazão ter lido a obra completa de Foucault e jura ter fruído de diversas páginas de Kant, mesmo que decepção seja a palavra que lhe ocorre quando lhe perguntam se aprecia algum trabalho dos referidos autores. 

Depois de comprar um carro, uma vivenda e de se revestir de pequenos luxos patrocinados pela Lacoste ou pela Apple, cursar Direito e ascender a juiz talvez corresponda nas fantasias deste escravo da cobiça a uma coroação que a muitos encherá de inveja. Não admitindo opiniões que enfraqueçam esta sua infantil forma de pensar, não parece que o comova saber que sete ou oito dos nossos melhores escritores (Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro, Cesário Verde, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Sophia de Mello Breyner, Natália Correia, Agustina Bessa-Luís, José Saramago, Mário Cesariny ou Eugénio de Andrade, por exemplo) não concluíram qualquer curso universitário, e muito menos exerceram cargos na administração da Justiça do Estado. Mais do que desenvolver um talento ou aprender a desempenhar um ofício, o candidato a juiz suspira por ser admirado por quem nunca o admirou. Alimenta-o um exibicionismo e um desejo de vingança contra o mundo e contra si próprio por não ter sido desde início o que agora pretende ser. Dificilmente a acumulação de medalhas, diplomas ou dispendiosos objectos aniquilará as suas mais tenebrosas memórias. És juiz, e agora? Não deixaste de ser quem eras. 

 Expressões como “aprende a amar-te” não iluminam corações mergulhados na escuridão.  A auto-ajuda não funciona, entre tantos outros motivos, por se esgotar numa sucessão de frases esvaziadas de sentido. Forçamos os sorrisos, como nos é pedido pelo phd em felicidade, até nos tornarmos sorridentes,  e substituímos o pessimismo pelo optimismo, e atiramo-nos da ponte. Existe nestes livros uma obsessão com a alegria, tropeçamos num ror de dicas e passos a seguir para perdermos a sisudez. Mas a vida prática precisa da filosofia, da história ou da literatura. A procura do saber ou, como diria Ortega y Gasset, o incessante esforço para encontrar convicções acerca das coisas, do mundo e do universo, é o caminho que nos ajudará a escapar deste caos chamado vida. Num texto intitulado A Missão da Universidade, assinala o espanhol que cabe à universidade o ensino de uma cultura que não seja mero ornamento, pois é a cultura que salva os homens da sua tragédia, que os ensina a viver no seu tempo: não basta estar preparado para exercer uma profissão, é preciso viver à altura dos tempos. O homem que não vive à altura do seu tempo, acrescenta Ortega y Gasset, vive aquém do que deveria ser a sua própria vida. Como resolvo a minha vida, como me poderei começar a aceitar? Comprei tudo o que o dinheiro poderia comprar, segui uma série de fantasias que descambaram nesta tristeza, que fazer? Que fazer, senhor juiz, se não corremos para conhecer? 

una forma de arder, 2

UNA PLEGARIA POR LAS MUJERES SOLTERAS

Ángel
de los pisos de soltero,
ángel de las solteras
que duermen varias noches en un piso de soltero,

¿lo sabías?

Antes del amor el hombre
se entrena golpeando.
Su hogar lo construye con el ruido:
tan firmes las paredes
tan familiares tan firmes las paredes,
los cimientos de su casa los ha hundido daño a daño.

Ángel del sexo
con los inquilinos de pisos de soltero,
ángel del no querer oír
de las solteras,

¿lo sabías?

Después del amor
el hombre se incorpora para escoger un disco
y suena una canción y susurra
me gusta esta canción:
para entonces está otra vez dentro de ella.
Luego habla de su hogar en otra parte
y de quienes viven en él ‒sin él, en ese hogar más suyo: enseña fotos‒
y la mujer lo abraza y él susurra
me gusta estar contigo.
Y la mujer oye.

Ángel del suelo sin barrer
de los pisos de soltero,
ángel de las solteras
que pasean desnudas por los pisos de soltero,

¿lo sabías?

Antes del amor la mujer predijo su futuro. Junto a él,
en su sofá, ella se fijó en sus libros. Debe de ser bueno
un hombre que lee así. (Pero también antes del amor
los amigos del hombre predijeron su futuro).
Debe de ser bueno
un piso en el que distingues dónde pisaste la otra noche
y dónde pisó la otra anterior.

Ángel del frigorífico vacío
de los pisos de soltero,
de las solteras que se conforman
y desayunarán solas, más tarde,

¿tú lo sabías?

Después del amor la mujer se ducha mientras
el hombre fuma en el pequeño salón de su piso
de soltero. Se despiden,
dos amigos: ella viste la ropa de la noche
anterior, él se avergüenza.

Pero tú

ya lo sabías.

Elena Medel, Córdoba, 1985.


una forma de arder é uma selecção de poetas espanhóis, ao cuidado de María Mercromina. Elena Medel é a segunda poeta da série. 

Cavalos em movimento

Uma vez disse que gostava de entrar em Lisboa a cavalo, que partia de muito longe, nem sabe de onde, e que ia por aí fora comendo terras e terras a caminho do cotovelo do mar, desse recosto de terra onde, diz, bate e bate o mar, e entrar na cidade montado no seu cavalo com ar fresco e sorriso montado, e a malta toda a ver, todo o mundo na rua com metais coloridos e braços altos tipo estátuas de vidro, mas um vidro diferente, que não sabe bem explicar, e entra na cidade e vai por aí fora, desfaz as ruas que muitos tempos antes, muitos anos antes palmilhara sem freio, quando ali morava ou passava perto ou simplesmente se imaginava pisando aqueles passeios, diz ele que se vê entrar na cidade montado no cavalo e que depois chega à porta de casa e diz já cá estou, e entra em casa montado no cavalo, tira qualquer coisa da mochila e arranca em sentido contrário, retomando o trilho que o levara até ali. Uma vez disse que gostava de montar uma tenda em Fuerteventura, mas que só sabe Fuerteventura depois de escutar o disco de uma madrilena que faz o sol inchar quando faz sol e a chuva engrossar no corpo quando chove, que gosta, que quer chegar lá e montar uma tenda e ser valente, correr descalço nos vulcões e pisar o mar, pisar do mar, diz, que a grande valentia é saber pisar do mar, e que a valentia é a parte gorda da vida, e quando disse isto nós sorrimos, nós gostamos e ficamos a pensar em Fuerteventura e nos cavalos em Lisboa, diz que chega e monta a tenda nas praias de Fuerteventura e depois fala numa selva, numa selva que não é dali, que corre num cavalo pelo meio do arvoredo e que corre cada vez mais depressa e o arvoredo não acaba, que passadas umas horas se apercebe que afinal o cavalo não corre e que portanto ele está sentado num tempo grosso mas um tempo ágil, nervoso, porque ao fim e ao cabo os membros do cavalo estão activos e sincronizam-se no movimento do passo, de um passo que parece vigoroso e harmónico, redondo, e que as árvores continuam a malucar de um lado e do outro, sempre as mesmas árvores, de todas as cores, diz, e perde-se na descrição das cores das árvores, dos troncos?, da folhagem?, perguntamos, e fala no verde e no roxo das árvores, do amarelo e do azul, do encarnado e do prata, diz o prata, fala em árvores brancas, árvores que se repetem umas depois das outras no bater aéreo das patas de um cavalo gigante, diz, um cavalo que imobilizado mas em movimento vai ganhando corpo e cresce e as árvores crescem mas não tanto, como se a vontade do cavalo prevalecesse sobre a da cor da selva. Fala devagar quando fala de Fuerteventura ou quando se lembra da alegria de Lisboa. Uma vez também disse que tinha uma vontade de barco e quando disse isto ninguém percebeu ao certo o que queria dizer, por minha parte só passados uns anos entendi o que era possuir um arranque daqueles, que tinha uma vontade de barco, e braços de barco e uma cabeça feita de barco, que tinha aquelas maneiras tão feitas e tão agrestes e que podia desaparecer para sempre mar adentro, qualquer mar, qualquer praia, diz, e remar meses e anos e todo o tempo rumo ao chão do mundo ou ao tecto do mundo e evitar terra quando a visse, inverter rota ao mínimo avistamento de um objecto fixo, desviar aquele corpo de barco dos outros, manter os olhos na mais ínfima das folas, diz, conservar o barco num ideal de movimento contínuo, incessante, um remar eterno, um remar de não querer chegar nunca, remar até que dele se esqueçam e ele próprio, muito antes disso, se esqueça daquele corpo de barco que a língua de um país lhe tinha ensinado.  

Cresce E Desaparece

Quando era miúdo, não deviam mostrar tudo na televisão, ou então só via
Os bonecos de manhã e depois de fazer os deveres, se calhar os adultos
Viam todos os horrores do mundo, daí se chatearem com partilhas e
Tão sérios e cheios de segredos e sorrisos, que eles chamavam amarelos,
Mas a cor era algo nos olhos, um brilho de medo, não sei, se calhar o terror
Apenas uma semente, regada ao longo de décadas, estrumada, bem estrumada
Com o sangue distante de vidas longínquas e remotas, lembro-me de areia
E americanos e petróleo a arder, a mesma coisa que matava os peixes
E os passarinhos da praia, diziam que se fazia gasolina daquela merda viscosa,
Que me enjoava quando atestávamos a 4l em Espanha para ir a Trás-os-montes,
Não se sabia tanto de tudo, as coisas demoravam mais tempo a chegar
E quando chegavam, tinham a distância do tempo a tornar tudo ainda mais
Longínquo, hoje temo que cada gole de cerveja seja o último para me tornar
Num número de uma guerra civil qualquer, cujos interesses se escondem atrás
Da ignorância e da cegueira, se apoiam na revolta que alimentam, se calhar é o castigo
Por a memória colectiva ser demasiado curta, por se ler história como ficção, não sei,
Cada vez estou mais certo disso e menos de tudo resto, quando era miúdo, se calhar
Passei por uma fase de esquecimento, um período entre um terror e outro, sim,
A guerra fria e o medo às bombas, agora o medo é aos olhos que entram no bar,
Com um grito, evocando uma razão estúpida e o apagar incompreensível de todos os sonhos.

Turku

14.11.2015