«Térmitas da página», Charles Bukowski

Charles Bukowski, in You Get So Alone At Times That It Just Makes Sense 
(Blacksparrowpress, 1986) 

Tradução: João Bosco da Silva

o problema que eu encontrei com
a maioria dos poetas que conheci é que
eles nunca tiveram um trabalho de 8 horas
e não há nada
que ponha uma pessoa
mais em contacto
com a realidade
que
um trabalho de 8 horas.  

a maioria destes poetas
que eu conheci
têm
aparentemente existido só do ar
mas
não tem sido verdadeiramente
assim: 
por trás deles tem estado
um membro da família
normalmente uma esposa ou  mãe
apoiando estas almas
e
então não é de estranhar
que eles tenham escrito tão
pobremente: 
eles têm sido protegidos
contra todas as realidades
desde o
início
e eles
não entendem nada
além da ponta das suas
unhas
e
dos seus delicados
fios de cabelo
e dos seus nódulos
linfáticos.  

as suas palavras não
têm vida, são vazias, fal- 
sas, e o pior- tão
elegantemente
enfadonhas. 

compassivos e discretos
eles reúnem-se para
conspirar, odiar, 
fofocar, a maioria destes
poetas Americanos
forçando e empurrando seus
talentos
brincando à 
grandeza.  

poeta (?): 
essa palavra precisa de re- 
definição.  

quando ouço essa
palavra
fico com uma revolta nas
tripas
como se estivesse para
vomitar.  

eles que fiquem com o
palco
desde que
eu não tenha que estar
na
audiência. 

Charles Bukowski, ou depois de ler a imortal literatura do mundo

1.

 O mal de grande parte da literatura é tentar ser complexa. Quando tenta não ser, falha. É pouca a literatura que consegue ser não-complexa e ser, ao mesmo tempo, literatura. É claro que uma leitura na diagonal – sendo aquilo que mais vezes acontece com a maior parte dos escritores que lemos – poderá induzir o leitor em erro, fazendo crer que a literatura não-complexa, que tem o privilégio de estar a ler, é ridícula e não é boa literatura. Um exemplo: Charles Bukowski.

Bukowski é associado à condição de marginal, de proscrito. É também associado a um estilo de vida que muitos consideram pouco aconselhável à saúde. Esse é o primeiro erro: acreditar que Bukowski é só álcool, mulheres e fornicação. Não vou dizer que o não seja. Grande parte da sua obra gira em torno destes três temas. Contudo, eles são apenas o ponto de partida para muito mais.

Charles Bukowski é, sem dúvida alguma, alguém que conhece profundamente o ser humano. O ser humano é o principal personagem da obra bukowskiana. O ser humano e a sua relação com o mundo. Disso não devemos ter a menor dúvida. O seu alter-ego, Henry Chinaski, é disso prova: «Bukowski created a literary persona named Henry Chinaski as a vessel for expressing his alternative view of the world, (…) Trough Henry Chinaski, Bukowski is able to attempt to reveal the absurdity of the world with an element of distance and without succumbing to despair.» (Daniel Bigna).

É claro que, para muitos, Chinaski não preenche os requisitos necessários para ser um verdadeiro personagem, isto é, segundo o cânone, Chinaski não possui a complexidade nem a profundidade, por exemplo, de Ahab, Meursault ou Raskolnikov.

 

2.

Charles Bukowski nasceu em Andernach, na Alemanha, em 1920, filho de pai germano-americano e mãe alemã (o avô materno de Bukowski era um ex-oficial do exército alemão). Os primeiros três anos de vida são passados na Alemanha, em contacto directo e diário com a língua alemã. É então que a família decide mudar-se para os Estados Unidos da América, escolhendo a cidade californiana de Los Angeles como destino final.

O início de vida num novo país não foi fácil para Charles Bukowski. Foi em Los Angeles que ele teve, pela primeira vez, contacto com a língua inglesa, pois até então, em sua casa, só se falava o alemão. A relação com o pai também não foi fácil: era um homem violento, arrogante. Em contrapartida, a mãe era submissa à vontade do pai, nunca se opondo a nada que ele decidisse, por mais estranho e descabido que fosse. Isso criou em Bukowski um grande e poderoso sentimento de revolta, pois a única pessoa que o deveria defender contra os ataques de fúria do pai, não o fazia. Bukowski chegou mesmo a dizer que o pai foi quem o ensinou a escrever, a ser escritor. O pai parece ser o motor de arranque de toda a escrita de Bukowski. Poderemos perguntar: sem a “ajuda” do pai, Bukowski teria sido escritor? A resposta é sim.

Bukowski, como um dia referiu o seu editor John Martin, nasceu com a consciência de que era um génio. Publicou pela primeira vez em 1944, com vinte e quatro anos, mas só aos trinta e cinco é que começa a publicar poesia. É a poesia que constitui grande parte da bibliografia do autor, apesar de ter publicado seis romances e várias colectâneas de contos, perfazendo, ao todo, mais de quarenta e cinco livros publicados em vida.

 

3.

Há um problema com os génios: dificilmente lhes perdoamos toda e qualquer “falha”, ou todo e qualquer “defeito”. O génio deverá ser um paladino da ordem e do socialmente aceitável. Ao génio não é permitido o desvio. Daí, talvez, o facto de a genialidade e a loucura andarem de mão dada. A fronteira, entre ambos, é muito ténue. O que é ser génio? O que é ser louco? Salvador Dali seria um génio-louco ou um louco-génio? Bukowski tinha consciência de tudo isso. De outra maneira não se entende a sua iconoclastia. A título de exemplo: a sua relação com as mulheres. Esta poderá ser justificada tendo em conta essa mesma iconoclastia, que Bukowski tanto prezava.

Sobre as mulheres muito se poderá dizer: machista, misógino, sexista. Na altura em que Charles Bukowski escreveu e publicou os primeiros romances (Correios e Factotum), os ideais da segunda onda feminista (iniciada nos anos 60) estavam a ganhar força na sociedade. Era, por assim dizer, “moda”. Ora Bukowski era tudo menos de modas, e talvez tenha visto uma oportunidade única para irritar uns quantos (ou umas quantas), fazendo justiça à fama que começava a granjear. No entanto, não é de todo errado pensar que a hostilidade em relação às mulheres é fruto da sua infância, fruto da relação de um pai obsessivo e de uma mãe passiva. E não podemos esquecer que toda a obra de Bukowski gira em torno de uma certa marginalidade dominada por homens: «I his underground society he describes a purely masculine world, in wich women are hardly more than splashes of a puddle through wich hardy fellows traipse, mostly drunk, or in wich they wallow.» (Karin Huffsky).

 

4.

Bukowski recusa a complexidade da maior parte da literatura Beat (lembremos, por exemplo, os romances de William S. Burroughs) e a metaficção do experimentalismo pós-moderno que grassou na literatura dos anos 60. Em vez disso, Bukowski opta por uma literatura livre, simples. É claro que nada disto é inocente. A pretensa simplicidade da escrita de Charles Bukowski pretende ser uma resposta àquilo que Gay Brewer designa como «collegeboy finger exercises». É claro que o autor de Mulheres sabe que expondo o seu trabalho à crítica o mesmo será comparado com aquele dos seus contemporâneos. Daí, talvez, a opinião generalizada de que a escrita de Bukowski é repetitiva, pouco “trabalhada” e muito pouco intelectual.

Mas a vida, afinal, não é repetitiva, pouco trabalhada e muito pouco intelectual?

Niilismo 4/ c.10 Tatuagens

I

Adenda ao meu mini-ensaio sobre a vandalização de Dirty Corner

Um artigo de Vanessa Rato para o jornal Público (20/09/2015) reproduz algumas declarações com uma semana de Anish Kapoor, quando ainda pensava deixar Dirty Corner ser suplementada por graffiti, autorizado pelo Palácio de Versailles (“Deixar ou apagar as inscrições feitas por terceiros é um privilégio que, à partida, assiste a Kapoor”). A instituição não arriscou mexer numa obra protegida pelas leis da propriedade intelectual. Kapoor, por sua vez, afirmava a Vanessa Rato: “Afinal, o que é que eu posso fazer? Qual é a coisa certa? Não sei de facto a resposta” […] “É muito vil [o que ali está]. E eu quero ver-me livre daquilo. Mas, por outro lado, talvez seja isto que o trabalho está a pedir. Como artista, chega-se ao estúdio, tem-se uma ideia, acha-se que se está a fazer uma coisa específica, depois outra coisa acontece. Por exemplo, entornamos qualquer coisa e chegamos à conclusão de que, na verdade, a obra funciona melhor assim... Temos de seguir esses momentos. No caso de Versalhes, é a segunda vez que tenho um desses momentos. Tenho de me perguntar: sigo o momento? Não sigo? O que faço? Qual é a coisa certa a fazer?” Pelo que disse a outros órgãos de comunicação social, pretendia realmente “seguir o momento”.

Entretanto, no sábado, 19/09/2015, os tags anti-semitas inscritos na instalação foram cobertos com um pano preto por ordem da justiça francesa, que impôs a Versailles a supressão imediata das inscrições acrescentadas à “escultura”. Para os juízes, “a liberdade de criação e de expressão artísticas implica o respeito do direito moral de qualquer autor sobre a sua obra”, mas quando se expõe publicamente, “esta liberdade, deve conciliar-se com o respeito das outras liberdades fundamentais.” Anisch Kapoor só poderia lamentar-se, fê-lo no dia seguinte numa entrevista ao Le Figaro: sente-se como uma “rapariga violada que é condenada [por isso], dizendo-lhe para se ir vestir” (Kapoor é de origem indiana), não compreende como ainda se desconhece quem, e como, vandalizou a obra, assegurando que os seus advogados o defenderão enquanto artista agredido no solo da República Francesa.

Portanto, o espaço de liberdade por excelência que devia ser a produção artística tem de conformar-se, pelo menos em parte, à escala de valores vigente, neste caso a moral e a política interferem claramente na criação e expressão artísticas. L’art pour l’art, como aliás bem viu Nietzsche, é apenas uma frase, já que também ela está condicionada pelas linhas de sentido estabelecidas, embora tenha uma margem para experimentar e provocar, deslocar e chocar maior do que qualquer outro campo. Isto desmente em parte a tese que Paul Ardenne expressa em Extrême: esthétiques de la limite dépassée, segundo este autor passámos de uma “cultura do sentimento a uma cultura da emoção”, por conseguinte tudo se radicaliza, os limites são constantemente ultrapassados, os efeitos arrebatadores são mais relevantes do que os dispositivos de codificação (mais o dionisíaco do que o apolíneo). O problema, ainda para Ardenne, é que o extremismo nos impede de pensar, submergindo-nos num mar tempestuoso, violento, de emoções que nos sufocam. Bom, esta decisão da justiça francesa vem pôr um pouco de água na fervura. 

II

Frequento uma praia em São João da Caparica que acolhe muitos jovens (já na meia-idade) da classe média, hedonistas ponderados que conseguem conciliar a prancha de surf e os banhos intensos de sol, nunca acompanhados por livros decentes (clássicos ou semi-clássicos), com empregos de 40 horas e muito respeitinho pelo chefe. Há cerca de 10 anos surgiu a moda das tatuagens, rapidamente disseminada, como qualquer fenómeno do género, por cerca de 50% da população banhista. Os corpos começaram a plasmar frases, símbolos e desenhos, alguns coloridos (a paleta de cores é critério de distinção). Tornou-se motivo de conversa e soldou laços identitários, excluindo-se fácil e assertivamente os puristas da pele nua, conservadores irremissíveis.

Recordemos que no Ocidente a tatuagem era um sinal de marginalização voluntária, uso da pele como forma de reforçar a margem onde existiam ou maneira de expressão e codificação dentro de um sistema forte de interditos (e.g., prisioneiros). Era ainda marca de distinção pela participação num acontecimento limite, os soldados do ultramar marcavam essa passagem pelo inferno com a data e o local, outros expunham a pertença a corporações militares especiais. A lógica geral era, pois, de distinção e de identificação, havia uma sentido neo-tribal em cada desenho indelével no espaço subcutâneo, mas de superfície, protegido da erosão, mas visível. Pelo contrário, hoje as tatuagens, embora mantenham um fio ténue de comunitarismo, expressam sobretudo um individualismo radical: redesenhar o corpo biológico, usando-o como montra do gosto e interesses pessoais.

Por outro lado, há uma contradição evidente no fenómeno actual das tatuagens: é um campo da moda que implica o corpo; mas ao mesmo tempo parece funcionar em antagonismo com ela, devido ao seu carácter tendencialmente indelével a tatuagem é “para toda a vida”. Se a moda vive na efemeridade e na vertigem da mudança, a perenidade das tatuagens parece opor-se ao ritmo alucinante das “novas tendências”. Embora consiga preencher melhor a vontade de realçar a singularidade e a autenticidade do que, e.g., o vestuário. É verdade que as impressões cutâneas seguem em geral páginas de catálogos pré-definidos, mas ainda assim há mais heterogeneidade do que nos outros campos da moda ligados ao corpo.

Posto isto, parece que as tatuagens, à primeira vista mais uma variação sem autonomia do mundo e da indústria da moda, desse niilismo estético que numa lógica autofágica hipertrofia o valor de objectos (novas colecções) para pouco depois os atrofiar (démodé); as tatuagens, dizia, reintroduziram no horizonte de sentido dos tempos “hipermodernos” o valor da durabilidade. É verdade que a novíssima tendência, contra o que acabei de dizer, está em tatuar com produtos e técnicas degradáveis. Se esta via ganhar amplitude, regressaremos ao niilismo da “mudança pela mudança”, por enquanto gozemos esta valorização de gestos que criam compromissos longos, ainda que por vezes bastante patéticos ou de gosto muito duvidoso.

P.S. Há umas semanas conhecemos uma bela pessoa numa prestigiada loja de sapatos em Lisboa. Chama-se Poliana (exemplo da liberdade onomástica brasileira) e tem tatuagens visíveis que emolduram com elegância um corpo bonito. Essas marcas discretas parecem pequenas portas entreabertas para o interior da sua biografia. Indícios ténues que reforçam os fios da sua identidade e permitem ao espectador, que não é voyeur, imaginar partículas de vida mais íntima. Tudo feito num magnífico claro-obscuro, sintoma de elegância. Bem diferente do registo vulgar que muitos tatuados imprimem na pose sobranceira com que olham a frugalidade da pele nua. 

A ÚLTIMA FRÁGIL PÁTINA DE REBELIÃO CAIU!

Numa carta escrita a Jonathan Franzen David Foster Wallace escreve: “The last thin patina of rebelliousness has fallen off. I am frightfully and thoroughly conventional.” Esta frase veio-me à memória numa altura em que me ocorreu a possibilidade de que nunca mais voltaria a entreter quaisquer pensamentos que envolvessem apartamentos sobre cafés em Casablanca, com ligações obscuras a Paris, a gabardine e o cigarro de Rick Blaine e as instruções de Ilsa Lund para Sam: tocar a mesma música outra vez. Isto serve para dizer, que, ainda que nestas circunstâncias não me seja possível proferir um here’s looking at you, kid no tom certo, com um sentido de estilo que Humphrey Bogart aprovaria, o que eu reconheço no momento em que as engrenagens das minhas circunstâncias em particular, este fim de tarde, neste ponto em que quatro ruas se encontram, em que as engrenagens complicadas do dia desaceleram e são forçadas a parar, gente que abandona escritórios, bibliotecas oficinas, o estrondo da porta do café nas minhas costas, o ar incomodado do barista, que eu tenha pretensões a ocupar este café depois das 19:00, hora a que ele tão respeitavelmente, tão familiarmente, fecha, tudo isto é uma outra versão ainda de the same old story, para o que aqui serve o meu argumento em particular, o facto de que reconheço agora, consigo ver mais nitidamente, aquele fio de lã que não é frágil e que liga o sentido de quem sou a um sentimento de revolta. A minha revolta é vital. Por exemplo, quando eu descer a rua, e parar para olhar na montra da OxFam onde vai estar uma cópia em segunda mão do primeiro volume do Quarteto de Alexandria, revolta, uma medida de raiva triste menos o ressabiar-me, é o que me há-de ocorrer quando me confrontar com o pensamento de que não tornarei a ler Justine pela primeira vez, e que, quando eu ler Justine pela segunda vez, eu serei diferente, a cidade que me rodeia será diferente, a maneira como se faz tarde, as circunstâncias.

Lugar onde quatro ruas se encontram.

Lugar onde quatro ruas se encontram.

    Quanto mais tempo passamos vivos, mais revolta é preciso sentir. A sua função é preserva-nos. E aqui podíamos, claro, juntar o caveat de Montaigne sobre a cólera, a irmã da revolta. Ao recordar o que Aristoteles diz sobre o assunto (que a cólera serve a virtude e a coragem como uma arma), Montaigne diz-nos que os que discordam disto tendem a afirmar que a cólera é todo outro género de arma: enquanto normalmente somos nós a manipulá-las, a cólera manobra-nos a nós. Montaigne é ágil, como um gato. Um sentimento de revolta é preciso, actua sobre o luto, a tristeza, a ansiedade, a angústia, a depressão, como uma fina película de ironia com força suficiente para nos separar de nós mesmos na porção necessária, isto é, quando te perguntares o que existe entre ti e a aniquilação pode bem ser o sentimento de revolta que sentes ao reconheceres a inadequação entre estas circunstâncias em particular e, por exemplo, o mundo de Casablanca. O mundo de Casablanca não existe aqui, o tempo e o espaço mental da minha liberdade para revisitar mentalmente duas ou três falas que sei de cor, e no entanto, posso apreciar a ironia de pensar em Casablanca aqui e agora. Isto é revolta. E com isso vem a resistência, apenas a quantidade necessária de resistência para que estar vivo possa seguir o seu curso. E agora que o teu pulso acelerou, e que sei que é inconveniente mostrar fraqueza (tudo isto repousa à superfície), sabes para que serve sentir revolta e é melhor do que Montaigne, manipulador e manipulado. 

    O mundo ainda não deu a volta para fazer tanto sentido quanto em Casablanca, podemos levar vários anos até percorrer toda a distância necessária entre o ponto A e o ponto B, isto é, o tempo e o espaço e tudo o que ainda tens para viver entre ti e a aniquilação, aquilo que estás a ver agora e que golpeia a tua atenção não da maneira como o pequeno esteta de trazer por casa que há em ti tinha antecipado (com a suavidade da descrição de Vergílio ao aportar em Brindisi no princípio de A Morte de Vergílio), mas em sucessivas ondas de dor que fazem um trabalho de machado a partir de dentro, volteando no interior do esterno, no interior do crânio. Agora que reduziste tudo ao essencial tens de reconhecer que o essencial é ainda demasiado: uma questão de coração e cabeça.

Justine na montra.

Justine na montra.

    Tony Morrison diz, numa entrevista dada à BBC World Service Book Club, acerca do processo de escrever Beloved, que quando se está a escrever you don’t go over your emotions, you go through them. Nos seus ensaios, Montaigne volta ao tema da cólera, que nem sempre está ligada a um sentido de revolta, e contradiz-se. É preciso conter a nossa revolta, diz o filósofo algures. E de novo, algumas páginas mais tarde, às vezes o melhor é dar espaço às nossas emoções, deixá-las seguir o seu curso. Mas não é disto que eu estou a falar aqui. Eu estou a falar da necessidade de um sentimento íntimo, privado, de revolta, que é preciso cultivar instintivamente, para aprender a resistir à erosão dos dias. Neste sentido, a revolta de que estou a falar nada tem que ver com a incapacidade sofrida pelo respeitável Monsieur de Montaigne de se conter e não castigar fisicamente os criados quando estes falhavam em algum aspecto do seu trabalho. Eu estou falar dessa espécie de revolta que pode ou não ter um pé na cólera, e que serve para preservar as coisas que realmente me importam, o meu amor, a minha criatividade, a habilidade de sentir alguma ternura pelo mundo, sem a qual não é possível experimentar uma certa forma de felicidade. Going through them.