Teodora Cardoso leu os clássicos todos

Não que a entrevista interesse. Talvez interesse. O que chamou a atenção foi dizer-se que Teodora Cardoso, presidente do Conselho das Finanças Públicas, "leu todos os clássicos da literatura." Para além de ser algo inédito no mundo, e por isso digno de louvor, é também sintoma do alto desprezo que as elites portuguesas têm por qualquer coisa relacionada com as humanidades. Leu tudo, tanto que já nem lê o que de mais recente se vai publicando, possui colecções inesgotáveis de música clássica. Parabéns, Teodora. Este é o ano dos portugueses. Resta saber quantos são os clássicos e a partir de que ano de publicação é que um "romance", coisa pouco do gosto de Teodora, perde o rótulo de clássico e passa a ser "moderno", isto é, menor e portanto pouco apetecível em termos de leitura, ou melhor, de distracção do que realmente importa. Este é o discurso do lucro. O de alguém que não olha para o ensino das humanidades como crucial para a formação do indivíduo. Ler pode contribuir decisivamente para que nenhum Donald vire presidente ou para que não aceitemos de olhos fechados a inevitabilidade da austeridade ou da decadência ou do desemprego. Este é o discurso de quem diz que adora ler, que leu tudo, especialmente o que confere gravitas, virtus, mas que na verdade despreza a literatura, a história, a filosofia. Passos Coelho também apareceu um dia a garantir que não perdia tempo a ler romances. Lia a Fenomenologia do Tempo, ou a Fenomenologia do Ser ou do Existir - que interessam os títulos, quando o que conta é o conteúdo? Teodora leu os clássicos todos e agora lê romances policiais por diversão. Leu Tolstói. Aliás, releu Tolstói mas Dostoiévski nem ver. Com aqueles experimentalismos, não ensina a ganhar dinheiro nem a compreender o mundo. Vejam como a literatura é menor, como é pequena, contabilizável. Cabe no bolso de uma contabilista, perdão, economista, perdão, figura mundial.

Deixo um excerto da preciosidade:

A nível de literatura, não leio muitos romances, sobretudo modernos. Li os clássicos portugueses, ingleses, franceses, alemães e russos. Mas russos só o Tolstoi, de Dostoievski não gosto muito. Ainda há pouco tempo andei a reler “Guerra e Paz”, que é um grande livro, sempre atualíssimo. E li-os em geral no original, no caso dos alemães em traduções para francês ou inglês, muitas vezes com edições bilingues, porque de facto gosto muito de ler os originais. E filosofia também. Sempre gostei e continuo a gostar. Depois, há uma coisa completamente diferente destas todas e em que sou especialista, como com os chás, que são os livros policiais. Eu preciso de livros policiais para adormecer. Não é porque me deem sono mas porque me fazem desligar do dia a dia.

A banalização da escrita

Cassandra Jordão entrevista Lídia D.

Resolvi procurar os conselhos de Lídia D. porque entendo que a minha ligação contractual à Enfermaria 6 apresenta algumas deficiências espirituais. Estas deficiências espirituais manifestam-se sobretudo ao nível de me serem confiadas tarefas assaz mecânicas (como por exemplo, ter de juntar os versos de poetas que nos enviam poemas mal formatados através de horas de pressão continuada de uma combinação das teclas de caps lock e enter) que, no entanto, não são mecânicas o suficiente para que o cansaço me tire a vontade de espiolhar as páginas do Facebook dos autores nacionais. Juntámo-nos para falar do fenómeno que Lídia D. apelida de banalização da escrita.

 

O que é banalização da escrita?

Olhe, você conhece aquela marca de cerveja, a BrewDog? Aquilo é um bando de gente que sabia muito de cerveja e dormia no sofá em casa dos pais, que agora vendem muito mas ainda não têm um departamento de marketing porque se divertem a escandalizar as pessoas de uma maneira mais ou menos terrorista. Fazem umas quantas declarações bombásticas para vender mais umas cervejas, no fundo não oferecem nada que você não possa beber noutro lado, mas no fim é tudo sobre a cerveja. A primeira parte da minha descrição da BrewDog existe no mesmo espectro de fenómenos que levam à banalização da escrita. A BrewDog é um fenómeno mediático de gosto discutível, que gera muito barulho numa tentativa de chamar a atenção sobre si própria. A segunda parte é a descrição de uma arte, porque é a descrição de uma paixão, você é bom numa coisa e só existe aquilo, e toda a sua vida está construída ao redor dessa coisa, e tudo o resto é uma impaciência chata que você atura com tristeza até chegar ao momento de se ver sozinho com o seu trabalho, o que não significa que você seja o Dostoievsky naquilo que faz. As pessoas bebem a BrewDog em parte porque intuem esse lado mais profundo do ofício de fazer cerveja, que os brewers  da BrewDog são de facto brewers e não apenas figurantes de brewers a quem a cerveja importa bem menos do que a publicidade. Você pode amar escrever e ser um autor menor e ser bom na sua menoridade. A crítica nacional aprecia mal ou não sabe apreciar esse intervalo dos autores menores e eu acho que isto tem banalizado uma série de discursos em tornos do acto de ler e escrever, expressos em críticas formulaicas que banalizam escritores e leitores. O Borges tem um poema sobre autores menores, em que diz que a meta para um escritor é o esquecimento, e aquele que é menor é o que chega antes disso. Digamos que um Rilke e um Celan, para mim, não se confundem com um Zweig, mas que sinto uma certa felicidade de saber que tenho umas quantas páginas de Zweig à minha espera num lugar qualquer e não sinto que tenha perdido o meu tempo ou tenha sido enganada ao lê-lo. A banalização da escrita é você ler o jornal e ficar com a impressão de que um país de dez milhões produz um facto literário da dimensão do Guerra e Paz de duas em duas semanas, é a confusão da crítica literária com um discurso normativo em torno dessa arte complexa que é a literatura, a confusão da tarefa do crítico com a da criação do cânone, e a outra confusão a cheirar a caruncho que se esconde atrás dessas, que é a noção do génio iluminado que só pode ser reconhecido por dois ou três críticos mais avisados, coisas que normalmente são descritas na ordem do segredo bombástico que explode na mão. Se alguma coisa me vai explodir na mão eu prefiro que não me avisem, porque ao fim de três explosões falhadas o que eu estou é desapontada, para não dizer irritada, tenho comprado e lido muita merda porque mirones míopes no Público, na Ler e no Jornal de Letras usam despudoradamente a palavra génio e tendem a avistar um Celan em Telheiras a cada duas semanas. Não há nada de errado em querer escrever sobre um escritor menor ou um livro apenas competente sobretudo porque um Dostoievsky aparece uma vez numa lua azul, com muita sorte há um numa geração inteira de milhões de pessoas. O crítico nacional tem de esvaziar a mente para a página de semana a semana e às vezes mais do que uma vez por semana. É difícil que isto não se torne da ordem da masturbação. A vida pode ser um lugar aborrecido, um acontecimento digno de ser recordado pode não acontecer durante semanas. Para qualquer pessoa ter uma ideia de jeito que valha a pena atirar para o papel pode levar semanas, meses até, imprimi-la pode exigir muito mais do que isso. Muitos críticos contornam esta dificuldade de não lhes chegar nem uma frase de belo efeito nem um Dostoievsky todas as semanas afectando uma postura de autoridade, não raramente referindo-se a uma suposta coisa que não importa a um leitor mediano um cu, a maestria do autor. O que é a maestria do autor? Maestria vem do latim, magister, professor, cuja raiz talvez se confunda com a que dá origem à palavra mago, mas muitos dos mestres que por aí são anunciados tendem a não passar de discípulos, e os melhores mestres podem bem regredir para a triste condição de discípulos sem talento, como se aprende no doloroso exercício de ler o Lawrence Durrell de O Quarteto de Alexandria e o de O Quinteto de Avinhão (o génio no triste pastiche de si próprio), eu vejo uma literatura cheia de jovens mestres de 40 anos, mas achava que os melhores mestres são os que preferem ser deixados em paz para serem alunos a vida toda, que tendem a ser atormentados amiúde pela pergunta, mas afinal o que é que eu sei? O que é a maestria? O crítico não sabe, acha que pode ser essa coisa a explodir-lhe nas mãos (se bem ordenhada), o génio. E o que é isso, você sabe? Então você tem alguém que lhe atira o conceito do raro que é para uns happy few. Como é? Você, burguês lisboeta, comedor de tremoço que bebe cerveja na esplanada em Junho, quer entrar no círculo ou não? Vai deixar o último Pessoa andar para aí trancado no quarto ou a beber bagaço em paz no Martinho da Arcada, sem você estar devidamente informado? Não, o crítico é alguém avisado e cheio de autoridade moral e agora avisou-o também. O que este tipo de discurso focado na maestria (anda o crítico a tentar aprender, ou a fingir que aprendeu, o que é ser um Dostoievsky vislumbrando um em toda a parte a cada semana?) produz é uma grande tristeza e bastante decepção num leitor mediano. E olhe que quando uso aqui a palavra mediano não imagine o universo mental de Michael Bay e a poética de um Toy. O meu leitor mediano lê Tchekov, comove-se com a poesia de Joyce, e é viciado em Tony Judt, só não vem a correr escarafunchar num caderno, sempre que um arrepio lhe passa pela espinha, que ouviu um tolle et lege. Isso acontece e é lá com ele, no silêncio mais fundo do que existe dentro dele, sozinho a tentar entender o mundo e a tentar chegar a uma visão do mundo que possa ficar na imaginação como um mapa que possa ser sempre navegável, nós gostávamos que ele partilhasse isso connosco, mas com alguns livros até é bom que ele não possa, a algumas coisas você pode chegar pelo intermédio de outros, mas não pode bem ser preparado. E você tem então de se perguntar: como pode um crítico responder a estas dificuldades? Que posição pode este pobre coitado escriba, que no fim, como você e eu tem é de ganhar o seu pecúnio para comer batatas fritas no Chiado, ocupar, num ofício em que ser um leitor é muitas vezes confundido com um exercício de auto-afirmação? E como fazê-lo sem ser apelidado de coninhas pelos restantes críticos (leia-se a crítica nacional que jaz abaixo do paralelo do Correio da Manhã)? Primeiro, há isto, há uma diferença entre pensar sobre um assunto, escrever umas linhas sobre ele, e achar-se o Super Homem por isso, o que subsequentemente lhe pode dar a ideia errada de que você tem o direito de perseguir os outros e de policiar o que eles apreciam ou não apreciam ler, e o que lhes apetece escrever ou não. O que é muito mau é profundamente fácil de criticar, se você está a ler sobre batatas na secção de crítica literária não se perturbe, não é tanto que o seu crítico de pacote ache que você é um leitor tão desavisado que confundiria um saco de amendoins com Walter Benjamim, é que ele tem uma agenda e você pode bem descobrir que o pobre marreco que assinou um verso de mau gosto não lhe caiu bem no goto quando lhe pagou o café, ou então chateou algum amigo dele. Se você leu que um livro é mau, e ninguém lhe está a explicar a relevância dessa fraqueza para a sua vida de leitor, para a cultura em que essa falta de qualidade, ou mesmo maldade, se expressa, então você perdeu o seu tempo. E depois é aceitar o facto de que por um crítico não topar com um Dostoievsky todas as semanas não significa que haja algo de errado com o crítico, ou que ele tenha de ir arranjar uma receita para comprar Viagra. O que me leva ao meu segundo argumento, o que importa a um leitor não é a maestria de um autor, mas o que um livro diz e sobretudo o que um livro lhe diz a ele, muito privadamente no contexto da narrativa da sua própria vida. Eu prefiro que o crítico que escreve no jornaleco todas as semanas me fale do primeiro argumento, e me deixe em paz para decidir por mim se um livro tem o potencial para me dizer alguma coisa do modo que acabei de descrever, o que um livro significa para mim. Um crítico muito bom consegue talvez comunicar o que um livro lhe pode dizer a si privadamente, mas isso é uma capacidade excepcional de falar de coisas que foram escritas e são profundamente únicas, e mesmo esse momento é de algum modo excepcional para o crítico, não acontece todas as semanas, o resto é um ofício mecânico, e de algum modo triste. Você é um crítico, o que significa que, se você está agarrado à normatividade bombástica do génio hoje em dia ou da monótona descoberta do oásis no deserto, você é um bocado a extensão de um departamento de marketing de uma editora, e pode muito bem não ter muitas ideias. Para valer a pena ler um pedaço de crítica, a crítica pode bem falar-nos sobretudo das ideias de um livro, e o estilo do autor é apenas uma dessas ideias, e não é a mais interessante. Se mais nenhuma ideia lhe ocorre além do estilo, vulgarmente descrito por maestria, então o livro que você leu é uma merda, ou você é um mau crítico, ou ambos. O que é que acontece aí? Você acaba a lamentar-se que Herberto Helder vá ser lido, ou que os seus amigos que escrevem não são convidados para tantos festivais quantos deviam. Nada disto tem que ver com a alegria de ler um bom livro.

 

O que é a não banalização da escrita?

O curto sono de Kafka, duas horas a cada tarde depois do escritório, para pouco a pouco e com muito esforço, das oito à meia-noite a cada noite, enquanto o Hermann Kafka ronca no quarto ao lado, lhe trazer A Metamorfose, O Castelo, O Processo. É Arquíloco a confessar a canhalice de ter deixado o escudo aos trácios, Nunca ninguém tinha dito aquilo daquela maneira, o que não significa que não tivesse havido milhares de soldados antes dele que cheios de medo fugissem do campo de batalha sem sequer trazerem o escudo com eles. Bloom a masturbar-se numa praia em Dublin mais o monólogo da Molly quase no fim, coisas que ainda não tinham sido ditas daquela maneira, de repente inadiavelmente reais, disponíveis para serem pensadas mais do que por críticos por gente com espírito crítico, no fim é só aí que a tarefa do crítico é sagrada como a de um escritor, trazer ao de cima, ou inspirar, o espírito crítico dos outros, o que na melhor das hipóteses pode até ser contra ele e apesar dele, esse é o crítico que o ajuda a viver, que nem sequer é bem só crítico, é mais uma criatura da literatura. Os críticos no fundo são os verdadeiros Íons do ofício literário, o ofício deles não é específico, é ainda menos específico do que o do escritor, mas se forem mesmo bons inspirarão nos outros uma ideia, um ponto de partida, e por isso ficaremos sempre agradecidos e voltaremos a lê-los com prazer. A não banalização da escrita vem da escrita que não é banal e que não o banaliza enquanto leitor, é o que resulta de uma combinação de amor, necessidade e culpa. É você saber que vai perdoar ao Lobo Antunes aquela parvoíce do leão e da cria na entrevista sobre a Elena Ferrante porque ele é o tipo que escreveu o Fado Alexandrino. Você lembra-se como foi? Ler o Fado Alexandrino? Agora não seja estúpido, tenha esperança e lembre-se que o crítico que assina o fait divers medíocre na temporada morta de Agosto, para coscuvilhar a parvoíce que o seu Homero disse na última entrevista, não raro para enaltecimento da própria inteligência banal do crítico, pode apanhar um dia destes com um Thomas Bernhard que lhe acerte umas furiosas pauladas de indignação justa e impaciência. Nesse momento você vai lembrar-se do longo olhar de Petrónio no banquete de Trimalquião e constatar que o mundo é espetacular de maneiras que ainda nem sequer nos passaram pela cabeça. E isto é ainda uma coisa que um belo escritor fará por si. Na viagem que é ler seja o que for, esse pode bem ser o melhor momento de todos.  

Pequenas coisas mais literais: A tetralogia napolitana de Elena Ferrante

Romance, épica, arte poética, bildungsroman, biografia ficcional, não sabemos quanto de autobiografia, um longo ensaio sobre uma cidade, ou um longo ensaio sobre infância, adolescência, idade adulta, velhice, uma épica no feminino, uma meditação sobre Itália contemporânea, sobre maternidade ou sobre as implicações de nascer mulher no séc. XX numa sociedade ocidental, ou um longo romance sobre a vida de uma comunidade à margem de uma sociedade, todos estes ângulos vão desaparecendo e ressurgindo à medida que avançamos pelos quatro volumes da Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante.

É tentador para um classicista querer ler na crónica da amizade entre Lena e Lila o eco da amizade mítica de Aquiles e Pátroclo, esse lugar atravessado pelos tambores da guerra a partir de onde a história da literatura ocidental começou a desenrolar-se. Qualquer coisa neste livro sem dúvida joga com o paradigma de lendárias amizades literárias no masculino. A comparação com Homero não é irresponsável, sobretudo se quisermos acreditar no hype (tanto comercial quanto crítico) que acompanhou a recepção da obra de Ferrante, e porque, como com Homero, há ao mesmo tempo qualquer coisa de profundamente convencional acerca da Tetralogia, isto é, dependente das expectativas que nos são inspiradas por convenções supostas por géneros literários, e partindo dessas expectativas, à medida que atravessamos as linhas temáticas que separam os primeiros dois romances dos dois últimos (ou seja, quando passamos da crónica da juventude para a idade adulta), estas são estilhaçadas uma a uma (talvez por isso a maior parte dos leitores prefira os primeiros dois romances), o que em parte explica o lado profundamente inovador da Tetralogia. A escrita de Ferrante tem sido apelidada de radical. Talvez o que este rótulo descreva seja o estilo de crónica precisa e, para usar outro termo gasto à falta de melhor, visceral dos romances, que não deixa nada intacto. Ou talvez pudéssemos aqui citar a escritora polaca Olga Tokarczuk, que nos faz pensar no método criativo de Ferrante:

Anyone who has ever tried to write a novel knows what an arduous task it is, undoubtedly one of the worst ways of occupying oneself. You have to remain within yourself all the time, in solitary confinement. It’s a controlled psychosis, an obsessive paranoia manacled to work, completely lacking in the feather pens and bustles and Venetian masks we would ordinarily associate with it, clothed instead in a butcher’s apron and rubber boots, eviscerating knife in hand.[1]

Mas podemos começar por pequenas coisas mais literais. Se estes romances são tão populares, o que é a sua popularidade nos diz sobre nós próprios, crescente exército global de leitores insones, que se perguntam entre si és Lena ou Lila, Nino ou Enzo? Chavões críticos que sem dúvida podem ser aplicados à Tetralogia Napolitana: uma das obras mais interessantes e controversas do nosso tempo. Os quatro romances foram agora publicados em Portugal na sua totalidade pela mão da sempre atenta Relógio d’Água. Talvez porque seja a Relógio d’Água uma das editoras em Portugal que tomou para si a missão de saciar as insaciáveis elites cultivadas da pátria, pequeno pormenor que infelizmente escapa ao olho de falcão de António Guerreiro nesta crónica[2] (para quem publicam editoras como a Relógio d’Água se não para essa sedenta elite de miríades, segundo AG tão extensa quanto insaciável, mas que em outras crónicas suas tende a ser apresentada como insuficiente), a editora optou por não publicar os livros com as mesmas capas kitsch com que foram publicados no original e no mundo anglo-saxónico. Com esta opção algo se perde. De alguma forma, a totalidade da obra de Ferrante pode ser lida como uma paródia negra daquele tipo de narrativas que habitam a escala entre o conto de fadas e My Fair Lady e que foram, ao longo de gerações, como a precisão impiedosa das reguadas dos professores fascistas deste planeta, reforçando estereótipos de género. Mas talvez porque a elite nacional se “dá ao respeito” (expressão que alude talvez a uma certa falta de imaginação e sentido de humor), pelo menos no que a capas se refere, belas fotografias a preto e branco animam a edição nacional da Tetralogia Napolitana.

As capas originais são de alguma forma a marca indelével do primeiro jogo da autora com as nossas expectativas. Nas palavras de Antonella Di Marzio são também outra coisa: “Whenever I see those tacky covers I can immediately identify the world that has been at the origin of the novels. It can't be denied, and such an operation is denying this authenticity. As if it weren't possible that such a world has generated literature and that we need some tweaking to make it acceptable, appealing.” É verdade, a primeira coisa que os romances de Elena Ferrante nos dizem sobre nós enquanto seus leitores é que temos um interesse em narrativas sobre injustiça social, tanto quanto sobre sonhos, criatividade, inteligências míticas como as de demiurgos, ao género de Sócrates (o outro, não esse). Que gostamos de ler romances que dramatizam a psicologia da amizade, do amor, da violência, do sexo. 

A Tetralogia existe no centro de um cânone e o seu trabalho é provocá-lo, arrastá-lo para outros caminhos, actualizá-lo. Mutatis mutandis, com Homero, Elena Ferrante partilha uma ideia de literatura enquanto empresa anónima, enquanto herdeira de uma inteligência colectiva: [t]here is no work of literature that is not the fruit of tradition, of many skills, of a sort of collective intelligence. We wrongfully diminish this collective intelligence when we insist on there being a single protagonist behind every work of art.[3]

Mais vale perguntar: como é que estas personagens passam tão rapidamente a fazer parte da nossa vida? Porque nos interessam tanto? Se há um elo com a tradição, como podem personagens anteriores, narrativas anteriores, acrescentar algo à nossa experiência de ler a Tetralogia? Todos os livros que lemos anteriormente viajam connosco até ao livro seguinte (é também por isso que devemos a nós próprios imaginarmo-nos como poema contínuo). E os livros mantêm os seus diálogos com a tradição em que são gerados. Como Aquiles na Ilíada em relação a Pátroclo, Lena tenta articular o enredo da sua própria vida a partir da sua relação com Lila. O mesmo sucede com as nossas vidas, esse é grande parte do apelo dos romances. O enredo da vida de Lena está costurado com o de Lila, a amiga genial da infância, e a vontade de Lila é de alguma forma a força autoral da vida de Lena (de vez em quando a ordem inverte-se). Um dos aspectos mais importantes acerca deste conjunto de livros é recordar-nos que o amor não é linear, pacífico, agradável. É um desafio constante, cheio de uma ambivalência que requer de nós uma certa cegueira (uma habilidade para perdoar e seguir em frente) para se manter vivo.

Em aparência sempre um passo à frente, Lila vai tentando moldar o curso da vida de Lena, como uma espécie de narrador obscuro, relegado para segundo plano. Na sua totalidade, o apelo destes romances talvez assente nisto: a opção por uma forma biográfica, cronologicamente organizada da infância à velhice, expõe afinal a operação de ambivalência por que certos objectos de arte se intrometem nas nossas vidas e se tornam parte da nossa história: eles são ao mesmo tempo perfeitamente particulares (referem-se a momentos muito específicos das vidas de outros) e universais (os outros afinal são como nós). Ao falar dos privilégios de ser um leitor, o compatriota de Elena Ferrante, Umberto Eco, disse:

An illiterate person who dies, let us say at my age, has lived one life, whereas I have lived the lives of Napoleon, Caesar, d’Artagnan. So I always encourage young people to read books, because it’s an ideal way to develop a great memory and a ravenous multiple personality. And then at the end of your life you have lived countless lives, which is a fabulous privilege.[4]

Os romances napolitanos são a história de uma amizade ao mesmo tempo solar e opressiva entre duas mulheres. Para voltar à minha analogia inicial, como Aquiles, Lila não existe exactamente numa escala humana, e ambos partilham uma clareza de visão que não lhes permite deixar de distinguir em quem os rodeia a mediocridade e a falta de coragem sobretudo daqueles que têm pretensões a ter sobre eles poder. O poder do dinheiro, da autoridade, da corrupção, do sexo – aspectos obcessivamente examinados nos romances. Este exame propõe-nos a seguinte realidade: que crescemos com certos papéis, supostos por outros mesmo antes de podermos escolher que tipo de história será a das nossas vidas, a bagagem que carregamos connosco desde a infância e que se apropria de nós mesmo antes de entendermos quem somos, quem são os outros, elementos que servem para reforçar convenções sociais, como o sexo com que nascemos, o bairro em que crescemos, quem são os nossos pais, os nossos amigos de infância. Ao imaginar Lila, Ferrante tem de se ter perguntado o que aconteceria se alguém escrevesse um romance que tivesse no centro uma personagem que estivesse disposta a ser imune a todas essas convenções? Como é que ela seria? Como seria a sua vida? E quem poderia narrar a sua história? E, pode-se perguntar, podemos ler o final do romance como um comentário acerca desta ideia? Poderá a autora ter hesitado e o final pode ser interpretado como a aplicação de uma moral punitiva sobre uma das personagens no centro da acção? Ler é um acto ético, político, e enquanto leitores devemos a nós próprios este tipo de perguntas. São estas perguntas que permitem que os romances se tornem explorações da nossa personalidade, dos limites do nosso universo moral, mas, mais do que isso, da nossa empatia. E para que serve a nossa empatia de leitores? Como Nicholas Dames nota num ensaio recentemente publicado na The Atlantic:

...a deficit in empathy imperils a democratic culture, and that novels keep us entwined and engaged when we might otherwise drift apart in shrill and narcissistic self-certainty...[5]

Os primeiros dois volumes da Tetralogia são particularmente eficazes a explorar a ausência da possibilidade de uma origem em branco para a história das nossas vidas (nenhum homem, ou mulher, nasce, afinal, livre e igual aos outros), eles surgem carregados ao mesmo tempo do encanto e do terror da infância, e acidentalmente expõem a hipocrisia de algumas narrativas que nos são conferidas nessa idade e que acidentalmente servem para graduar a nossa posição numa certa escala política e social (o inverosímil super-intelecto de Lila, excluída da escola mesmo antes de entrar no liceu, é também uma provocação neste sentido). Narrativas essas que, deu-se o caso, em Itália em meados do século passado foram exacerbadas e postas em causa por uma série de eventos políticos e culturais que formam o contexto histórico do romance (o fascismo, os movimentos políticos e culturais que floresceram a partir da década de 60, as Brigadas Vermelhas), e que reforçam a pertinência das personagens de Ferrante hoje: como nós, gente para um tempo instável.

Num conjunto de romances que avança por sucessivas intermitências de esperança e crise, o ponto de tensão inicial ocorre entre a imaginação de Elena e Lila e a realidade que lhes é imposta, à qual é suposto ambas submeterem-se. Se os romances se leem como a história da formação de um escritor, então eles surgem da consciência de um real em falência constante, cuja vantagem é este traduzir-se no adquirir de uma lenta capacidade de estranhar coisas aparentemente banais, como o processo de degradação sofrido pelos corpos das mulheres do bairro, a percepção de que elas se parecem com os homens com quem se casaram, ou a violência de que os rapazes constantemente se socorrem para se afirmarem sob pena de serem vistos como fracos. Num dos capítulos de A Amiga Genial, as amigas discutem Dido e Eneias, e mais tarde, um ensaio de Lena sobre Vergílio adapta uma observação de Lila que Lena involutariamente associa à decadência bairro, que onde não há amor não só a vida das pessoas é estéril mas também a das cidades. É difícil imaginar um comentário político e social mais pertinente para os dias de hoje.

Como é que o amor se transforma em poder?, é uma pergunta colocada por Anne Carson num dos mais belos livros de poemas alguma vez publicados sobre um divórcio, The Beauty of the Husband, mas talvez os romances de Ferrante arrastem esta pergunta para o nível seguinte, como é que o amor sobrevive ao poder?   

Lila intui a beleza das coisas sem poder deixar de se diluir nelas. Na amizade, como em tudo o resto, para Lila não existem meias medidas. Os episódios de sinestesia de que ela sofre talvez sejam sobretudo uma expressão desta ideia. O percurso de Lena, moderada e agradável em quase tudo, ainda que na maior parte do tempo apenas em aparência, paradoxalmente, herda alguma coisa desta ética. Num diálogo com Pietro, ele diz-lhe que ela é meio feminista, meio comunista, meio estudante de Foucault, apenas com ele meias medidas nunca foram usadas. O grande desafio destes romances tem a ver com o modo como cada leitor se relaciona com o percurso emocional destas personagens. O grande desafio do percurso emocional de Lila e Lena é manterem o controlo sobre esse percurso. Talvez a ideia de que nos compete recusar meias medidas no amor, na amizade, nas nossas diversas trocas com outros, na nossa arte (o que quer que ela seja, pode ser escrever ou informática), possa ser entendido como o grande contexto ético da obra, e nesse sentido, a popularidade destes romances assenta num desafio a que as personagens estão constantemente expostas. Entender o que lhes acontece e porquê importa-nos e é-nos útil: este é também o nosso desafio todos os dias.

As alusões ao mundo antigo abundam. Algumas estão listadas na recensão de Aaron Bady para o LitHub[6]: Lena chama-se Elena Greco, licencia-se em clássicas depois de vencer uma bolsa para estudar na Normale de Pisa, que é o que lhe permite abandonar o bairro em Nápoles, escreve uma tese sobre Vergílio, a um dado momento casa-se com um classicista. Um dos diálogos mais importantes para a caracterização de Lena e Lila é a tal conversa sobre Dido e Eneias, há qualquer coisa neste diálogo que é reminiscente do diálogo entre Míchkin e Rogójin nas páginas iniciais de O Idiota, é um daqueles casos em que duas personagens não podem evitar expor-se mutuamente e isto de alguma forma prepara o palco para o que vai suceder em seguida. E, de alguma forma, com as personagens de Dostoievsky as personagens de Ferrante têm em comum uma certa noção de um peso metafísico que precede as suas acções, que as marca de longe para o que vai acontecer em seguida, as suas acções tornam-se uma parte decisiva da sua caracterização. Talvez poucas criações depois de Dostoievsky sejam tão Dostoievskianas como Lila. E ao mesmo tempo há em Lila e Lena qualquer coisa de profundamente reminiscente das mulheres que habitam os dramas de Eurípides. Pensamos em figuras como Medeia, Hécuba, Fedra, que percorrem a linha divisória entre a civilidade e a loucura, entre as convenções morais das sociedades em que habitam e a total falta de escolha que expõe a falência (e muitas vezes a perversidade) dessas convenções e que acaba por forçá-las à vingança. Nas suas peças sobre mulheres é como se Eurípides se perguntasse, as nossas sociedades foram pensadas para proteger um certo número de privilégios, o que acontece àqueles que se tornam vítimas desses privilégios? Não só quando Elena Ferrante fala do seu interesse em narrar a diferença do seu sexo, mas mais do que isso num certo pendor neo-realista dos romances (o bairro, o poder dos camorristas, a ascensão social de Lena, etc.), pode a autora ter tido esta mesma pergunta em mente?

Lila pertence àquele grupo de personagens literária que nunca projectam uma imagem definitiva de si próprias, a sua existência é da ordem da interrogação, não da resposta, as suas acções não correspondem tanto a factos como a actos demiúrgicos. A sua personalidade é capturada na descrição de Lena sempre no meio do drama, no momento em que se manifesta, Lila nunca se explica a si própria, e tudo o resto é o resultado da especulação de Lena. Juntas, Lena e Lila, como Pátroclo e Aquiles, são duas versões do mesmo tipo de inteligência humana e são tão inextricáveis que, inevitavelmente, em alguns momentos, desconfiamos que estamos perante duas versões da mesma personagem.

E se aquilo que na nossa inteligência é produto de uma inteligência colectiva não deve ser diminuído em favor do enaltecimento de um protagonismo excessivo, se o que nos ajuda a tornarmo-nos no que vamos sendo depende de uma exposição e de uma atenção constantes às ideias, interesses, paixões e histórias de outros, então a Tetralogia Napolitana, a história da formação de uma escritora (e neste aspecto os dois primeiros volumes habitam o mesmo espectro do nosso imaginário ocupado pela Autobiografia de Thomas Bernhard), o conjunto da obra de alguma forma desloca e expande o conceito de autor. Ligadas desde a infância, Lila parece em certos momentos ser a autora de Lena, a inventora do seu percurso, tal como de tantos outros objectos mais ou menos mirabolantes que lhe permitem assegurar alguma prosperidade, objectos nunca menos do que miticamente emocionais. E porque as mesmas versões da inteligência humana se reinventam com o progredir das tradições a que pertencem, neste aspecto, o herói de Homero com que Lila se parece é Ulisses, que na Odisseia a espaços deixa para trás um número de objectos construídos pelas suas próprias mãos que de alguma forma permitem a sobrevivência e, em alguns momentos, a opulência. Se Lila é ambivalente pela rejeição de uma ideia fixa de si própria, isto é de alguma forma um desafio à ideia de uma personalidade que encontra a sua melhor expressão na possibilidade de um destino narrativo linear, isto é, num destino que seja consequência dessa personalidade. Este é um dos aspectos mais fantásticos da Tetralogia. Lila, como Aquiles, é esta força cega no centro do romance, mas esta força falha em manter o controlo dos acontecimentos, falha em manter a ordem embora pareça ter o poder para a manter, convida o caos, no fim falha em controlar-se a si própria. De vez em quando cruzamo-nos com estas personagens, chamamos-lhes Aquiles ou Clitemnestra ou Mefistófeles, e é com um certo desconforto que depois voltamos à nossa rotina diária, mas somos um pouco menos banais depois desses encontros. A possibilidade de uma relação de causa e efeito entre personalidade e acção explica porque é que os romances são uma longa paródia das narrativas que habitam a nossa ideia do que são contos de fadas e a sua função na nossa cultura. Explicam também o apelo de Lila, uma heroína em falência constante, cujo último acto, o gesto que abre o romance, o seu desaparecimento, consiste talvez numa última tentativa de preservar a sua própria inteligência. E, no entanto, tanto o desaparecimento como as invenções de Lila têm qualquer coisa de dionisíaco, partilham da mesma natureza que uma ideia do cavalo de Tróia enquanto triunfo da inteligência: carregam ao mesmo tempo a potencialidade da vitória, do fim das tribulações, e da aniquilação total. O romance não nos deixa entender se este lado perverso da inteligência de Lila é intencional, e eis outro elo com Ulisses.

Neste aspecto, o fio da tradição que a Tetralogia alonga é o da nossa atracção por formas de inteligência herméticas, que de alguma forma são animadas de um potencial inesgotável que rapidamente se pode tornar numa força para a destruição. Entendido enquanto romance feminista, um rótulo de resto nem confirmado nem rejeitado por Ferrante, talvez seja este o contributo do romance nesse aspecto: duas mulheres que crescem num bairro pobre, dominado pela corrupção e pela violência da Camorra, e que entendem cedo, e em certo sentido quase inconscientemente, que a única solução é inventarem-se a si próprias apesar das restrições que lhes são impostas. A Tetralogia de certo modo diz-nos, nada é tão belo como a força gasta em construir as nossas histórias.

Uma última nota. O que tem sido apelidado da extrema violência dos romances, de resto, a meu ver, mal lida por críticos de outro modo competentes[7] porque confundida com uma estratégia fácil para agradar ao leitor, um rótulo descartado por Ferrante (“Literature that indulges the tastes of the reader is a degraded literature. My goal is to disappoint the usual expectations and inspire new ones.”[8]), cuja função é traduzir a violência constante deste mundo, é um sintoma de porque é que estes romances de alguma forma são objectos tão pouco convencionais. Como notou Megan O’Rourke:

Ferrante’s project is bold: her books chronicle the inner conflicts of intelligent women (professors, novelists) who, having made their way to Florence or Rome and to good jobs, find themselves confronting memories of the crude violence and misogyny of their youth. Shaken by a surprising event, they lose their grip on reality, lapse into a Neapolitan dialect full of obscenities, and are drawn into hallucinatory quests to heal old emotional injuries. The books’ taglines might be “No self can be left behind”: in Ferrante’s world, no character can escape her past.[9]

É verdade, há uma violência comum a todos os romances de Ferrante, que podemos correr o risco de querer rotular de gratuita. Mas também é verdade que existe um certo nível de violência com que convivemos todos os dias (que os romances de Ferrante são eficazes em sintonizar, até o seu ruído se tornar insuportável e ela ter de ser enfrentada). Podemos escolher fechar os olhos, deixá-la justamente aí, no passado, tentar domesticá-la, ou mesmo reparti-la pelos dias para que nunca nos falte. Mas talvez estes romances nos causem tanto desconforto justamente por aí, porque nos lembram de uma necessidade ética de que falava Maya Angelou[10], ao afirmar que a única virtude de que realmente precisamos é a da coragem, porque esta garantirá que seremos constantes em todas as outras. Esta ideia é outra chave possível para ler estes romances. Talvez seja particularmente pertinente para ler o percurso de Nino no seu envolvimento com as duas personagens principais. Mas podemos perguntar-nos, há alguma virtude em Nino?

Violência psicológica, física, que envolve homens, mulheres e crianças, e que traz à superfície o desafio que é mantermo-nos humanos e descobrirmo-nos ou reencontrarmo-nos a nós próprios, depois de nos perdemos, decepcionarmos, sermos destruídos pelas nossas expectativas, destruirmo-las pela nossa própria vontade. Será que alguma vez nos reencontramos? Será isso o que acontece? Depois dos acontecimentos do segundo volume, Lila alguma vez se reencontra? Este é um dos grandes desafios de estar vivo e o grande desafio no centro da Tetralogia. Alguns dirão, é também a grande alegria de embarcar na aventura de ler um romance que ronda a extensão do Guerra e Paz.


[1] http://www.asymptotejournal.com/fiction/olga-tokarczuk-flights/

[2] http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/os-excedentarios-da-cultura-1724781

[3] http://www.theparisreview.org/interviews/6370/art-of-fiction-no-228-elena-ferrante

[4] http://www.theparisreview.org/interviews/5856/the-art-of-fiction-no-197-umberto-eco

[5] http://www.theatlantic.com/magazine/archive/2016/04/the-new-fiction-of-solitude/471474/

[6] http://lithub.com/elena-ferrante-master-of-the-epic-anti-epic/

[7] Tim Parks, http://www.nybooks.com/daily/2015/11/10/how-could-you-like-that-book/

[8] Elena Ferrante, Paris Review, Art of Fiction No. 228 (http://www.theparisreview.org/interviews/6370/art-of-fiction-no-228-elena-ferrante).

[9] http://www.theguardian.com/books/2014/oct/31/elena-ferrante-literary-sensation-nobody-knows

[10] Entrevista a Harriett Gilbert: http://www.bbc.co.uk/programmes/p02023bg

A lei do piropo

NOTAS SOBRE O PORTUGAL PROFUNDO (E O PORTUGAL SUPERFICIAL TAMBÉM)

As reacções que se podem ler nas caixas de comentários dos jornais portugueses sobre essa lei com um nome tão castiço, acabada de ser promulgada (Lei do Piropo), se uma lei promulgada em Agosto pode ser descrita deste modo, são todo um documento sociológico, e não parecem ser um vindo de um país particularmente evoluído. Fiquemo-nos por um jornal com fama de mais ou menos civilizado, mau grado as crónicas de Henrique Raposo (de quem, escusado será dizer, aguardamos reacção). Bem entendido que trolls abundam na internet, e de todos os géneros. Mas, na verdade, talvez que o tipo de comentários que se lêem a esta notícia (para mais algo normalmente tão desinteressante como a aprovação de uma lei - who cares, really?) não esteja inteiramente desligado do facto de ser possível uma pessoa sentar-se durante 12+5/6 anos (secundário+licenciatura+mestrado) em salas de aula do sistema de ensino público português sem ouvir muito regularmente expressões como "igualdade de género". Portugal não é herdeiro, e as pessoas não precisam de ser convidadas a reflectir, sobre coisas como por exemplo aquelas que são capturadas impecavelmente neste vídeo escrito por Ricardo Araújo Pereira, no qual talvez caiba uma explicação do tipo de postura intelectual (ou falta dela) de que as nossas atitudes para com questões de igualdade de género são herdeiras. Mas a ignorância traz a felicidade, lá se diz, e nós portugueses apreciamos isso como ninguém. A nossa atracção por esse tipo de postura intelectual é persistente e difícil de explicar, como implícito, diria uma certa casta de perigosos alienados, na aprovação tão tardia de uma lei para sancionar uma prática tão inofensiva como esta.  

"Igualdade de género" é uma expressão não tão ouvida como necessário, porque, como sabemos, reflectir sobre esta expressão nunca levou a uma reflexão séria sobre nenhum aspecto vital da estrutura de uma sociedade, da igualdade e liberdade conferida aos seus cidadãos (e toda a gente sabe para além disso que estas coisas não precisam de ser examinadas, é uma questão velha, a ficar cada vez mais ultrapassada). Para mais, Portugal é uma sociedade impecavelmente saudável. 

"Piropo", no entanto, essa palavra que designa uma série de expressões que (como não?), toda a mulher se devia sentir honrada de ouvir, é, no entanto, passível de ser ouvida em toda a parte. Ora, por exemplo, se vocês nunca foram uma menina de 12 anos de idade, que no caminho para a escola tivesse de atravessar por um prédio em obras, recomendo-vos a experiência. Mas tem de ser no corpo de uma menina de 11 ou 12 anos, porque se não, não é possível apreciar totalmente o efeito da arte deste grupo de poetas tão negligenciado e agora tão injustamente criminalizado (talvez não fosse tanto o caso de aprovar uma lei para matar a dita arte, mas antes de compilar os melhores ditos, ou talvez que a compilação dos melhores ditos, agora uma vez posta por escrito, tenha levado à morte da arte pela lei, com as tradições orais é sempre difícil de dizer). Mas o piropo permitia à mulher ter acesso a um primeiro inventário para expressões nunca antes ouvidas e isto vai-se perder (como por exemplo "casaco de cuspo" e outras uns furos mais abaixo), proferidas por todo o macho numa escala etária entre os 13 e os 70 (é um país de tanta virilidade). Aos 18 anos olhando as meninas de 11 fazer o mesmo percurso, muitas destas raparigas já mais ou menos conformadas a este aspecto tão rico da nossa cultura, restava-nos desejar a estes espécimes do homo sapiens que tivessem filhas. Aos 22, uma rapariga entende que não. Aos 22 anos, uma rapariga imagina todo o tipo de coisas, por exemplo, pode entender melhor o arrepio de nojo que certas expressões lhe causam (num país a caminhar a passos largos para produzir a geração mais bem preparada que alguma vez teve, há a forte probabilidade de uma rapariga nunca ouvir este tipo de expressões a um namorado, ou de ouvi-las apenas se houver um mútuo consentimento - questão mais ou menos acessória no que envolve mulheres, dirá um certo tipo de poeta), e uma rapariga nessa faixa etária pode imaginar a educação que estes homens tiveram, pode mesmo perguntar-se se o piropo é sintoma de alguma coisa (claro que não, apenas uma brincadeira inocente). E pode imaginar que tipo de educação estes poetas podem perpetuar nos seus filhos e filhas, e só pode mesmo sentir-se agraciada e agradecida por ver-se objecto de um tal destaque, afinal é tudo uma brincadeira, e é isso o que uma rapariguinha, como sublinhado por estes machos lusitanos em caixas de comentários que vão do Expresso ao Correio da Manhã (sem grande distinção entre o que imaginamos ser o tipo de leitor que frequenta ambos os jornais), devia sentir. Esqueçamos a discussão sobre se é lícito um indivíduo ter o direito de decidir modelar noutro o que é uma resposta adequada a determinada situação (o que fazer se não aceitar o tão inofensivo piropo?), ainda que contra a auto-determinação deste. Toda a gente sabe que deste impulso básico só têm saído benesses sociais: todas as que habitam o espectro que vai dos inofensivos miúdos bem comportados até quarenta anos de salazarismo. Evidentemente que isto é um exagero, para mais sobre uma coisa tão inofensiva como o piropo.

Ora, desde tempos imemoriais que o piropo é uma arte assiduamente cultivada, quase uma tradição, que é uma pena perder-se, só para que o mulheredo desse país, de resto acostumado por anos de prática, agora se possa revoltar. Possa, como as rapariguinhas de 11 até às mulheres de 50 sempre imaginaram, fazer alguma coisa sobre isso se se sentir profundamente insultada (violada psicologicamente?, por amor de deus, toda a gente sabe que isso é parte do que especialistas na questão têm designado por "a grande conspiração das mulheres") por determinado tipo de comentário. E num país que não melhora só por si, talvez o hábito de legislar para proteger o seu corpo de cidadãos venha - imagine-se! - a revelar-se um exercício saudável de reflexão para ambos os géneros.

Em tudo o resto, desejo-vos filhas, um mulherio que possa caminhar respeitável e livremente pelas ruas das cidades desse país. Evoé, como diriam as Bacantes nos seus delírios, celebremos 2015, em que Portugal parece ter finalmente deixado de ser um país do século XIV, entre outras coisas porque esta lei permite que práticas de assédio sexual, apenas abrangidas pelo código do trabalho, estejam agora também abrangidas pelo código penal. Em Portugal, o assédio sexual não era entendido como um crime de prisão? Porquê? Porque não há evidentemente nada de traumático em uma menina de 15 anos ver-se perseguida por um simpático senhor com idade para ser avô dela, que apenas deseja informá-la que lhe comia a cona toda. Só faz bem começar a ouvir isto desde cedo, ainda que de modo não solicitado (não solicitado? como é que ela estava vestida?). 

Importa aqui explicar que a lei não visa sancionar o inofensivo piropo, mas antes aquilo que nele e noutro tipo de comportamentos verbais, não apenas exercidos sobre mulheres, possa cair na definição de assédio sexual. Sem dúvida, algures há aí um desses poetas que sentirá falta de declamar as suas poesias para rapariguinhas de 11 anos (não que para mulheres de 30 seja melhor, mas em certas coisas convém ser o mais explícito possível), e que se poderá queixar que num só ano Portugal se tornou num país onde os paneleiros não só se podem casar como ter filhos (vai ser só pedofilia, já se sabe), onde as mulheres podem abortar legalmente, e agora um homem se vê ainda mais diminuído nos seus direitos.

Mas tudo isto nos devia dar uma fezada neste Portugal dos anos de crise, jardim à beira mar plantado, a tentar caminhar na direcção certa muitas vezes pelos motivos errados (há aí uma porção de gente que diria, havia outros debates mais urgentes), mas que se lixe, rapariguinhas de 11 anos desse país, e o mulheredo ingrato que não aprecia um elogio bem mandado, agradecem-vos, com o sentimento de que a febra finalmente terá a brasa que sempre mereceu, poupando as ditas mulheres de ter de proferir outra expressão que é todo um outro tratado sobre questões de igualdade de género e o modo como elas recaem sobre o sexo oposto, "vão para o caralho, seus grandes filhos da puta". Com esta lei, Portugal dá um passo difícil em direcção a uma não-questão, a igualdade de género. Extremamente improvável para Portugal. Sem dúvida a esta catástrofe não é alheio o facto de se ter atascado a Assembleia da República de mulheredo, mulheres com quem não gostaríamos de casar (embora agora, promulgada a lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, se quiséssemos, pudéssemos). Mais um assalto bem-vindo aos valores da nossa sociedade. Elena Ferrante escreve no primeiro volume da trilogia napolitana, a propósito de Dido e Eneias, que se o amor é exilado das cidades, a sua boa natureza transforma-se numa má natureza. O amor, escreveu Anne Carson algures, só funciona se houver igualdade. Este não é um passo acessório porque é um passo nessa direcção. E conta sobretudo como um passo que chama a atenção para uma das muitas formas em que esta falta de igualdade se expressa.

Evoé! 

Despeço-me com uma elegia norte-americana aos poetas de piropos deste mundo. Para quem possa ter duvidado que estamos a lidar com uma arte cosmopolita.

Os livros de Svetlana Alexievich

Svetlana Alexievich tem sido descrita como uma autora de não-ficção, um facto que tem sido apontado como exceptional na decisão da Academia Sueca em atribuir-lhe o Nobel este ano. Esta descrição é insuficiente: os livros de S.A. podem ser descritos como literatura reduzida ao essencial (e o termo “reduzida” é aqui, sem dúvida, redutor): os relatos que a autora compila nos seus livros – a sua criatividade é a mesma que fica reservada a um realizador de documentários – no fim somam-se para nos deixar com aquilo que foi descrito com a expressão uma história das emoções humanas[1], que é em última análise uma das grandes missões documentais da literatura, e um espaço amplamente partilhado pela ficção e não-ficção. Há uma missão testemunhal nos livros de S.A. que torna o seu trabalho herdeiro da função mais primordial, mais verdadeira se assim quisermos, da literatura: preservar a memória do que de outra forma jamais seria dito, jamais seria iluminado. Os livros de S.A. são, neste sentido necessários e valiosos.

Expostas à pressão da opinião pública, algumas das testemunhas que aceitaram falar com S.A. para o livro de que pretendo aqui falar, Zinky Boys, tentaram retirar os seus testemunhos mais tarde, ou processá-la em tribunal, "numa acção judicial em que autora acabou por prevalecer". Este aspecto é revelador não só do tipo de pressão política que governa operações de construcção de memória colectiva na União Soviética[2], mas das condições em que S.A. escreve os seus livros. Do seu valor testemunhal e do seu trabalho contraditório sobre a consciência colectiva: o desfasamento entre o que a imprensa diz e o que as pessoas dizem, o modo como elas se sentem. Enquanto histórias das emoções, os livros de S.A. catalogam relatos de violência, dor, injustiça, relações familiares e amor, que convergem para o retrato não do “homem soviético” como tem sido apontado num ou noutro artigo da imprensa internacional, mas das pessoas de um modo geral, em qualquer tempo ou lugar, nas suas intermitências de luz e escuridão. Em última análise, os livros de Svetlana Alexievich são isso: repositórios da nossa humanidade. 

Voltando ao ponto onde comecei, se queremos discutir o que é que os rótulos de ficção e não-ficção separam exactamente, podemos acrescentar que, em certo sentido, as realidades documentadas nos livros de S.A. acontecem precisamente no limite em que ficção e realidade se começam a separar, são produto daquele ponto da consciência em que estamos mais sozinhos com nós próprios, algo que S.A. tem em comum, por exemplo, com W.G. Sebald. (Sugerimos que faz sentido ler Zinky Boys e After Nature juntos.) E, na ordem do dia, se é de função que estamos falar, podíamos aqui citar o recente e badalado editorial de  David H. Lynn para a Kenyon Review (o hype é apenas parcialmente merecido, mas nós acreditamos nele) sobre o que torna um ensaio literário, porque estas palavras são muito oportunas para pensar o trabalho de S.A.:

Yes, language may provide a joy in itself, but the experience of fully engaging an essay’s tenor—the argument or subject or meaning—may sweep a reader toward a far deeper sense of fulfillment. This is equally true of poetry and fiction, naturally, of all true literature. It’s a process that catalyzes us into seeing in a new way, to grasping what may intuitively lie beyond language itself. [3]

 

Os livros de S.A. não são sobre joy ou fulfillment, nem sequer são exactamente sobre atonement, mas são representações daquilo que está para lá da linguagem, daquilo para que ela pode apenas apontar, essa profundidade com que só nos tornamos a encontrar quando ficamos completamente sozinhos com os nossos pensamentos, e isso, não sem ser através da evocação de experiências traumáticas, de alguma forma aponta para essa outra coisa que está para lá da linguagem, o lado misterioso do humano, que é a intimação do nosso amor. Não é a alegria da linguagem o que vamos encontrar nos livros de S.A., mas a sua força, a beleza brutal da sua função de instrumento, e, se tivermos sorte, no melhor e no pior, um encontro com nós próprios enquanto a sua superfície.  

Os livros de S.A. concentram-se num tipo particular de acontecimentos: aqueles que, tendo força suficiente para decidir as nossas vidas ou para as alterar radicalmente, são alheios à nossa realidade, no sentido em que não ocorrem no espectro da nossa rotina diária, isso que de outra forma pode ser definido como a normalidade, apontam antes para uma rotura completa com as leis que até àquele ponto regeram a nossa familiaridade com o real. Neste sentido, os livros de S.A. são estranhos.

A Segunda Guerra Mundial, a Guerra Afegã-Soviética da década de 80, Chernobyl. O quotidiano imerso na sua rotina de normalidade não é o que S.A. tem documentado, ainda que paradoxalmente isto tenha convergido para compor uma visão mais nítida dos processos históricos que são o pano de fundo dos seus livros. E esta nitidez advém sobretudo do facto de o objecto de S.A. não ser tanto relações de causa e efeito capturados na tentativa abstracta de reconstruir as leis gerais que guiam e decidem processos históricos, mas pessoas, sozinhas com as suas emoções, as suas memórias, os seus pensamentos, a sua imaginação, as suas perdas e derrotas, as suas nostalgias. S.A. tem sistematicamente escrito sobre gente em tempos de crise, gente na longa e solitária travessia de experiências traumáticas. Os livros de S.A. são, deste ponto de vista, uma experiência que testa os limites da nossa tolerância ao sofrimento. A própria admite que entre terminar de escrever o seu primeiro livro War’s Unwomanly Face (1985) e escrever Zinky Boys (publicado em 1992) a sua tolerância para o sofrimento tinha-se esgotado completamente.

Enquanto leitores de S.A., de alguma forma tornamo-nos parte de uma longa tradição que tem a sua origem entre os espectadores de tragédia grega, quando ler (ou assistir) se configura não apenas como um acto privado, mas como um acto cívico e político. No fim de ler S.A. o percurso que fizemos não é da ordem do nosso entretenimento, mas antes o do facto de estarmos mais alertados para a crueldade da vida, algo que em qualquer circunstância não devemos pensar que podemos ignorar. Isto é talvez uma descrição capaz da atmosfera dos livros de S.A. e daquilo que os motiva.   

Suspeito que este ano a academia sueca cometeu um acto que é um favor aos leitores deste planeta. O facto de S. A. ser uma autora de não-ficção é o que eu gostaria de descrever aqui como um não-debate[4], uma questão de resto muito menos interessante do que a ideia de que o gesto de premiar a obra de S. A. não será, nem no Ocidente, nem muito menos na Rússia de agora (como não foi nas datas de publicação destes livros)[5], entendido como um acto politicamente desinteressado.

Colocar os livros desta autora mais ou menos obscura sob o holofote gerado pelo prémio é um acto que convida a pressão da opinião pública mundial para a relação bastante dolorosa entre questões privadas e políticas na União Soviética e na Rússia de hoje; e os livros de S.A. todos eles lidam com momentos traumáticos na memória colectiva soviética.

Num conto de Mavis Gallant é possível ler-se esta descrição acerca de uma das personagens: “Pessimistic in the way women actually become when they settle for what exists.” Lembramo-nos desta frase quando em entrevista à New Yorker, S.A. explica a sua opção predominante por vozes de mulheres: “Women tell things in more interesting ways. They live with more feeling. They observe themselves and their lives. Men are more impressed with action. For them, the sequence of events is more important.”[6]

O segundo livro de S.A., cujo o título em inglês tem a duvidosa tradução de Zinky Boys (alguns críticos preferem a tradução alternativa Boys in Zink e foi com este título que os primeiros excertos foram publicados em inglês, em 1990, pela Granta[7]), compila uma série de relatos sobre a guerra Afegã-Soviética. A escolha de vozes predominantemente femininas é ilustrativa do ponto de vista da autora, citado acima. Os relatos dos soldados que regressam servem de contraponto aos relatos das mães e mulheres daqueles que não lograram regressar, tal como os relatos das mulheres que serviram em cargos médicos ou administrativos no Afeganistão de alguma forma colocam os homens no nexo de outros tantos papéis em relação a mulheres: filhos, maridos, amantes, vítimas de violência e perpetradores dela.

A guerra Afegã-Soviética é um evento desastroso na opinião pública da altura e é frequentemente apontado como o acontecimento que precipita a dissolução do exército soviético. A escassez de equipamentos adequados, os baixos salários, a falta de condições de treino e a consequente inexperiência dos soldados (a guerra foi maioritariamente combatida por recrutas entre os 18 e os 20 anos de idade), tudo isso é amplamente documentado pelos testemunhos compilados por S.A. É acessório falar aqui daquilo que foi a recepção da opinião pública russa (um apêndice do livro publica cartas de vários leitores) quando os primeiros relatos do livro de S.A. começaram a ser publicados em jornais na Rússia. Mas a carta de um leitor que se queixa a S.A. de que todos sabem que há uma distância muito grande entre a realidade e aquilo que os jornais russos publicam, e que os relatos dela vêm perturbar o status quo de um modo que roça a falta de pudor, pode ser citado como um exemplo ilustrativo do contexto da recepção do trabalho de S.A. Este desfasamento entre realidade e uma opinião pública manipulada é ainda demonstrado num aspecto particularmente cruel: o livro intitula-se Zinky Boys numa alusão aos caixões de zinco fechados (no livro apenas uma família logra ver o rosto do filho depois de morto) em que os soldados eram enviados para casa, o que permitiu que durante boa parte da guerra esta fosse retratada não como uma guerra mas como uma intervenção militar com funções predominantemente humanitárias. “Dever internacional” era a expressão com que as funções destes recrutas eram descritas. Dizer que esta geração, no regresso, se sentiu traída pela pátria não é uma descrição suficiente, e o livro de S.A. vem colmatar essa falta.  Num dos relatos (p. 29, 31, 32) uma mãe diz:

Yura was my eldest son. A mother shouldn't admit it, probably, but he was my favourite. I loved him more than my husband and my younger son. When he was little I slept with my hand on his little foot. I wouldn't think of going to the cinema and leave him with some baby-sitter, so when he was three months old I'd take him (together with a few bottles of milk) and off we'd go. I can honestly say he was my life. I brought him up to model himself on figures like Pavka Korchagin, Oleg Koshevoi and Zoya Kosmodemyanskaya... He understood ideals but not real life... Then one day, strangers came to the door and I knew from their faces they were bringing bad news. I stepped back into the flat. There was one last, terrible, hope: "Is it Gena?" They wouldn't look at me but I was still prepared to give them one son to save the other.

Assim, é também neste apecto que entendemos como um livro pode iluminar aquilo que, neste caso, muito literalmente nunca seria dito. E este é um dos aspectos mais cruéis do livro, porque nos permite entender que esta falta de esclarecimento da opinião pública, que acaba por vir a condenar esta guerra em termos que não estão muito afastados da do Vietnam no Estados Unidos, é um dos motivos pelos quais estes soldados foram entendidos no regresso quase como criminosos e, em muitos casos completamente alienados socialmente. O livro de S.A. de alguma forma tenta preencher esta lacuna e é eficaz em demonstrar que o processo de responsabilização por uma guerra deve ser um processo colectivo, que envolve a sociedade civil e militar. (De alguma forma, a pertinência deste tipo de debate é tanto mais visível hoje, sobre a responsabilização dos Estados Unidos pelas suas sucessivas campanhas no Médio Oriente, um debate dolorosamente actual face aos acontecimentos não apenas das últimas semanas mas dos últimos anos.)

E aqui podia ser feita uma última generalização sobre o significado da obra de S.A., naquilo em que esta tenta preencher uma lacuna na história de uma memória colectiva, o seu trabalho é o de, de alguma forma, restaurar o que já não pode ser recuperado. E isso é ainda o que esta relação entre literatura e memória colectiva pode fazer por nós, ou como se lê nas últimas linhas do livro, na reprodução do epitáfio de um dos soldados:

 

“Died defending his country.
The whole earth is a desert without you.”

 

[1] Sara Danius.

[2] "As a young journalist, in her native Belarus, Alexievich had found that the newspapers failed entirely to represent what made reality interesting to her. She said, “I began to understand that what I was hearing people say on the street and in the crowds was much more effectively capturing what was going on than anything I was reading.” Philip Gourevich em Human Rights Watch. Este artigo inclui um excerto de Voices from Chernobyl. Outro pode ser lido na Paris Review.

[3] http://www.kenyonreview.org/journal/novdec-2015/index/#.VjhW1eWYi9E.twitter

[4] Philip Gourevich na New Yorker: The second writer to win the Nobel, back in 1902, was Theodor Mommsen, the first of several historians and essayists to win the prize. Bertrand Russell was one; Winston Churchill was another. But it has been more than a half century since any such recognition—a half century that has seen an explosion of great documentary writing in all forms and lengths and styles, and yet there is a kind of lingering snobbery in the literary world that wants to exclude nonfiction from the classification of literature—to suggest that somehow it lacks artistry, or imagination, or invention by comparison to fiction. The mentality is akin to the prejudice that long held photography at bay in the visual-art world. 

[5] This year, in Izvestia, Zakhar Prilepin, one of Russia’s best-known writers, said that Alexievich was “not a writer,” and that she had been chosen only for her opposition to the Kremlin—and for not actually being Russian. “We get the picture: Bunin, Solzhenitsyn, Pasternak, Brodsky,” he wrote. Alexievich’s agent, Galina Dursthoff, who lives in Cologne, told me that she had accumulated a pile of hate mail from Russia comparable to the pile of congratulations from elsewhere in the world. The writers blasted the Nobel committee for awarding the prize to “a Russophobe” as well as “a Jew and a lesbian.” (Alexievich is not Jewish and has never made any public statements about her personal life.) Masha Gessen, “The Memory Keeper: The Oral Histories of the New Nobel Laureate.” 

[6] Masha Gessen, idem

[7] Granta, Boys in Zynk. Em português, sobre a autora, é possível ler-se o artigo de Luís Miguel Queirós no Público.