A presença em si de Johannes

O diálogo demasiadas vezes forçado entre a Literatura e o cinema consegue ser interrompido por excepções relevantes. A Palavra, livro a partir do filme homónimo de Carl T. Dreyer, é um desses casos.

Datando de 2007, A Palavra reúne um texto introdutório de João Bénard da Costa, fotografias de Rita Azevedo Gomes, desenhos de José Loureiro e poemas e testemunhos de João Miguel Fernandes Jorge. E é a presença aí do poeta João Miguel Fernandes Jorge que queremos destacar. Chamamos-lhes “testemunhos”, na medida em que serão apontamentos, re-leituras do filme: o poeta parte dessa obra de Dreyer, mas não lhe cingindo já que se acrescenta intimamente. É em especial em torno de Johannes, protagonista do filme, que JMFJ forja o testemunho aporético da sua própria leitura.

O poema Duas Rosas começa com os seguintes versos: “No caminho para deus viu-se obrigado/a parar várias vezes./Vinha do tempo das quimeras./Partia, a passos rápidos, sem direcção/definida”. Assim, o poema não narra – não tem um começo definidor -, antes surge num interstício, a saber, a revelação desde logo do objectivo de Johannes: a procura do encontro com o transcendente; para mais, essa “procura” alude à persistência – caminho não linearmente progressivo. 

Porque “Levava dentro de si a cumplicidade de um/relâmpago, trazia recados de si mesmo/para mais dentro de si próprio./ todas as suas forças ficaram isoladas/e o tempo tinha o valor físico de um deserto.”, a dialéctica interior-exterior mostra-se com especial vigor, uma vez que o “para mais dentro de si próprio” se relaciona (motivo?) com o isolamento das forças e com o tempo, aqui veemente e indómito - “valor físico de um deserto”.

Os últimos versos não finalizam, antes reforçam o carácter des-regulado do objectivo de Johannes: “Vivia sob lentidão extrema,/ não muito longe do que jamais acontecera./ Regressou ao inanimado do seu corpo, aos objectos do próprio quarto.”

Regresso que não fecha ou baliza, antes amplia e interrompe, o poema de JMFJ, na sua linguagem específica – rente, pouco ou mesmo nada metafórica e cujo teor performativo é discreto se bem que impressivo -, postula a discordância com um tempo saturado e impossibilitador da escolha por um caminho singular. Por isso, Johannes serve de arquétipo ao consentimento relativamente a um Logos não necessariamente revelado, como o é, nomeadamente, para o cristianismo.

Com efeito, o poema referido é complementado pelo texto O Lustre, sendo ambos, porém, autónomos. Aí, JMFJ considera A Palavra “o melhor exercício que conheço de deus; sobre a suspensão do tempo”, acrescentando depois que “Johannes pertence a esse meu corpo de intenções de escrita.” (p. 21). Esta última expressão - “corpo de intenções de escrita” - mostra-se sintomática da ressonância que a linguagem poética tem. Desejo que pode nem se concretizar (intenção), a escrita de JMFJ salienta o comprometimento, tal como Johannes para quem o tempo é indissociável do gesto de Deus (aí-ser que não significa de modo nenhum alheamento). Tratar-se-á, assim, da certeza absoluta de quem acredita.

Ao propor formas que permitam pôr-em-causa a finitude, JMFJ coloca a personagem de Dreyer em Madrid; “Mãos de condutor de sonhos, mais do que de almas” (p. 23), Johannes cria o que é da ordem do difusor, ou seja, passagem e passagens que re-fazem o curso da vida: “É verdade que há um futuro, mas o tempo em que um rosto vive não é um tempo absoluto. Não vai além de um momento: o da passagem da transparência da mão à circunstância quietante do lustre” (p. 23). A irredutibilidade do diferenciado faz-se como Johannes pelo tal caminho instável mas múltiplo, pela busca do presente em si, i.e., repetindo.

Em Kierkegaard – presença no livro e no filme – a repetição marca o salto ético precisamente através de um comprometimento, ou seja, a possibilidade estética materializa-se eticamente. Ao contrário da anamnese que é em grande medida um dado, a repetição pressupõe a (re)confirmação não-sistemática; será excepcional e em constante relação com a memória (passado vertido no presente): “porque a excepção não justificada reconhece-se precisamente pelo facto de querer contornar o universal. Este combate é extremamente dialéctico e infinitamente matizado” (A Repetição, p. 137). Não obedecendo a um programa, o salto ético repetido efectiva-se, como salienta José Miranda Justo, no kayros (momento oportuno) que, como bem se entende, afigura-se aqui complexo por definição. Será, cremos, muito através da presença em si que a singularidade da repetição acontece. Para Kierkegaard, “O infeliz está sempre ausente de si mesmo” porquanto “está num tempo passado ou num tempo futuro” (Ou-Ou I, p. 258). O indivíduo, contaminado pela memória e pela expectativa, não consegue des-unificar o tempo e, por isso, mergulha na infelicidade ou angústia.

“Falta-me sempre tempo para perseguir até final uma imagem, um sentido, uma cor” (p. 21); este lamento de JMFJ encontra saída, ou espaço de sucessão, na figura de Johannes e na sua repetição até Deus. Investigação aproximativa, a linguagem póetica dos testemunhos de JMFJ exercita(-se) na revelação por si que o poema inventa. Não se trata de copiar a personagem do filme, mas sim da comutação com o indivíduo que os espaços de reflexão abertos pela poesia consentem. É que a linguagem não tem de ser uma amarra ou um mal necessário para o poeta; a doxa do Logos assimilado a um princípio fundador – o Verbo – não impossibilita que a presença em si do autor jogue com o determinismo. No fundo, o que JMFJ nos diz é que a poesia se coloca de modo original em relação com a referida falta de tempo, ou seja, com a perda.

O paraíso segundo Ulrich Seidl

Ulrich Seidl é apontado como um dos nomes fundadores da “nova vaga” austríaca, juntamente com Michael Haneke, Michael Glawogger e Nikolaus Geyrhalter. Antes de compor a sua, até então, mais ousada e surpreendente narrativa, Seidl já havia feito, dentre outros filmes, Amor Animal (Tierische Liebe, 1996), Dias de cão (Hundstage, 2001) e Import/Export (2007). Recentemente, apresentou-nos a sua Trilogia Paraíso. Amor (2012), (2012) e Esperança (2013) narram as trajetórias de Teresa (Margarete Tiesel), Anna Maria (Maria Hofstätter) e Melanie (Melanie Lenz). Três filmes sobre três mulheres em busca de três figuras masculinas. Com esta trilogia, Seidl constrói um painel de uma sociedade, sem deixar de lado o seu humor tão característico. Pelo contrário: é ele, creio, que dá um tom palatável ao que muita gente considera frígido e metódico.

Nas praias do Quênia, as “sugar mamas”, como são conhecidas as mulheres europeias em turismo sexual, buscam rapazes africanos que vendem amor para ganhar a vida. Teresa viaja nas suas férias para uma paisagem, de fato, paradisíaca. Lá, no Quênia – e só no Quênia –, ela tem status e “amor”, um misto perigoso de ilusão, decepção e negócio oferecido por beach boys que só querem saber de dinheiro. Este é o Amor.

Anna Maria mora sozinha e divide o seu tempo entre o hospital, onde trabalha como enfermeira, e sua casa, metodicamente limpa. Mas Anna Maria não se sente sozinha. Anna Maria tem Jesus. Anna Maria adora Jesus. E este amor incondicional impele-a a rezar constantemente e a usar frequentemente todo tipo de autoflagelação. Como membro de um pequeno grupo ultra-religioso, ela procura trazer a fé católica de volta à Áustria. Para isso, bate de porta em porta, com sua imagem de Nossa Senhora, convidando os moradores, pobre vizinhança ocupada em sua maioria por imigrantes, a rezar e purificar suas casas. Mas sua paz, se assim a pudermos chamar, é totalmente desestabilizada quando seu marido muçulmano e aleijado volta para casa, precisando de cuidados e exigindo o amor que ela destina apenas a Jesus. Assim é a .

Melanie vai para um campo de reeducação física e alimentar para adolescentes obesos enquanto a mãe está de férias no Quênia. Num internato onde tudo é rigorosamente controlado, Melanie segue buscando escapes. Em meio a conversas sobre sexo com as companheiras do campo e comidas roubadas, eis que surge o médico-residente do internato. Ela o seduz. Na verdade, tudo não passa de sucessivas e provocadoras tentativas. Talvez esteja aí a esperança do título, já que se trata de uma espera – ou de uma expectativa – e não de uma realização. E isso pode ter a ver tanto com o seu objetivo de transformar o seu corpo, seguindo um padrão atual de magreza, ou com a sua paixonite púbere pelo doutor (que também pode veladamente significar uma busca por uma figura paternal que não aparece em nenhum momento). O assédio derivado da queda pelo doutor justapõe a paixão clichê pelo homem maduro e a busca por uma figura masculina. Aqui, a meu ver, elas são a mesma coisa. E cá está a Esperança.

Em busca de uma felicidade, as três personagens esbarram em silenciosos moralismos de uma sociedade extremamente hipócrita. E Ulrich Seidl compõe quase pictoricamente três mulheres que mostram e ao mesmo tempo ironizam seus moralismos e suas hipocrisias. Uma linha tracejada une as vidas dessas três personagens. Enquanto mãe e filha são deslocadas (Melanie para um campo de dieta, Teresa em férias no Quênia), Anna Maria evangeliza por toda Viena.

O projeto original de Seidl era formado por um único filme que interligasse as três histórias. Mas o diretor acabou transformando-o numa trilogia em que cada filme focaliza uma personagem. Com este tríptico, Seidl compõem um ousado retrato da sociedade moderna – uma crítica que não se destina apenas à cultura de seu país, apesar de que, muitas vezes e em outros de seus filmes como Dias de cão, isso pode parecer causticamente direto. A forma impiedosa com que costuma disparar contra a sociedade torna-se aqui mais complexa mas não menos ácida. Amor, e esperança poderiam ser substituídos por carência, fanatismo e puerilidade, e funcionam como formas de auto-conhecimento, e, ao mesmo tempo, refúgios, evasão. Todas estas temáticas da superfície escondem, de fato, outras: como as pessoas se aproximam e se distanciam umas das outras, conectam-se e se desconectam, tentam trilhar seus próprios caminhos, mas não sabem bem como.

Ao colocar o espectador em seu mero lugar de espectador, Seidl expõe a realidade de um grupo de pessoas, descrevendo e reduzindo seus jogos de poder à sua essência imediata. Acusado de pintar com seu usual desapego um retrato desencantado da sociedade, percebo que é exatamente o contrário. Só um homem muito apaixonado pode oferecer um olhar aparentemente descrente, mas certamente sarcástico da realidade que o cerca. Vê e repara! É o primeiro passo para a mudança. Aliás, é esta – a mudança, a mudança nas relações interpessoais – creio, o grande tema por trás de todo o Paraíso

Ulrich Seidl, um estudioso da condição humana

“Os que afirmam que desprezo as pessoas não me percebem”, lê-se numa entrevista concedida por Ulrich Seidl ao Guardian (2013). A implacabilidade do realizador austríaco para com criaturas inadaptadas, a crueza e detalhe com que exibe as imperfeições de gente malfeita (gordos, deficientes, pobres), talvez contribuam para disseminar a ideia de que o desprezo é um dos sentimentos que o motivam. O ser humano é apresentado nos filmes de Seidl como um animal não só simples na sua barbaridade e fealdade, mas também complexo, que oscila entre o ridículo e a fragilidade, entre a comédia e a mais profunda depressão (depressão essa em grande medida alimentada pela incapacidade de satisfazer os seus mais básicos instintos). Desprezo não é palavra com que se rotule a obra de alguém inteiramente dedicado à compreensão da condição humana.

Paraíso: Amor (2013)

Paraíso: Amor (2013)

Muitos dos comportamentos (bizarros na aparência) filmados pelo realizador são tão verosímeis que dão a sensação de terem tido lugar na vida real. A trilogia Paraíso acompanha a história de três mulheres que bem poderiam existir na Áustria, em Portugal ou em qualquer local em que existam humanos. São três mulheres, três existências transbordando de gordura, sebo, pêlos, estupidez, mesquinhez e egoísmo. Em Paraíso: Amor (2013), Teresa viaja para o Quénia procurando amor entre jovens famélicos vendedores de sexo. A personagem principal de Paraíso: Fé (2012), Anna Maria, irmã de Teresa, é uma fanática religiosa que gasta os tempos livres pregando a mensagem do Senhor pelos subúrbios. Já em Paraíso: Esperança (2013), Melody, filha de Teresa, apaixona-se, ou não se apaixona, fica obcecada por um médico do campo para obesos em que a mãe a inscreve antes de partir para África. O carácter insólito ou macabro de muitas das situações descritas nestes filmes não nos desvia da realidade, pois a realidade é sempre mais anormal do que normal, ou melhor, a normalidade é nas nossas vidas uma ficção em que acreditamos para sobrevivermos num quotidiano de estranhezas e absurdos. Não existem paraíso ou amor no Quénia, nas férias de austríacos, alemães, europeus, velhos debochados à caça de pénis erectos e selvagens. Teresa sonha com sexo, com sentimento e delicadeza. Paga ao negro, escravo, para satisfazê-la. Ensina-lhe bons modos. Como acariciar um seio. A senhora comporta-se como se estivesse a lidar com macacos e, ao mesmo tempo, ambiciona que os macacos a tratem como a princesa que nunca foi. É preciso saber tocar no seu corpo disforme. É grotesco, quase pornográfico de tão inestético, assistir a uma cena de "amor" entre esta mulher acabada para a sensualidade e um negro viçoso. Porém, não nos chocamos. Aquilo a que assistimos poderia acontecer a qualquer pessoa, dependendo das circunstâncias e do estado de alma. O "eu nunca" não é aconselhável a elementos desta espécie tão pouco virada para a consistência e a firmeza de princípios. Não há vilões. Comportamentos desvairados ou pérfidos fazem parte da vida, são banais. A mulher tira fotografias numa escola decrépita frequentada por crianças miseráveis, como se fosse exótico fotografar a pobreza. A mulher é estúpida, é. O amante negro não sabe amar, às vezes nem erecção consegue ter, a mulher bate-lhe, comporta-se como se fosse sua dona. Choca? E se colocássemos a mesma senhora em Lisboa, pagando a pobres, entrando em eléctricos para sentir a fome, deambulando pelas ruas de Alfama em busca do desdentado e do fadista macabro, o que seria diferente? A estupidez humana é universal e não se escapa à angústia. É o aniversário da mulher e ninguém lhe liga. Está sozinha no seu quarto de hotel, bêbeda e despida. Os calções de turista e os chinelos de enfiar no dedo assinalam a nossa pobreza. A mulher acaba deprimida, aquele mundo não era o paraíso, nem com dinheiro compraria amor ou bom sexo. O mundo é assim no Quénia, em Nova Iorque e na Mouraria. 

Paraíso: Esperança (2013)

Paraíso: Esperança (2013)

O que pode chocar quando, em Paraíso: Esperança, vislumbramos uma adolescente obesa morrendo de desejo por um homem muito mais velho, e um homem muito mais velho que prescinde de toda a ética profissional para se aproveitar da adolescente? Em Paraíso: Fé, as acções da fanática religiosa são macabras mas banais. Obcecada, a senhora lambe as fotografias de Jesus, masturba-se com a cruz pendurada por cima da cama. O que incomoda? Que se pense em sexo? Que se deseje fornicar com Jesus? Que sejamos um pouco como essa senhora, que sejamos como ela sempre que estamos calados?

Paraíso: Fé (2012)

Paraíso: Fé (2012)

 O desejo impulsiona estas personagens. O desejo corporal, o desejo de viver num paraíso em Terra. O médico de Paraíso: Esperança insinua-se e, à medida que o filme avança, percebe-se que a culpa do médico é não passar das insinuações, não satisfazer a adolescente como ela desejaria. Os quenianos são tão abusadores quanto a velha munida de maços de notas. Ser gorda, religiosa, peluda, enfim, ser humano, ser hediondo perseguindo ideais elevados como o amor. A fanática religiosa casa-se com Jesus. Mãe, filha e tia têm uma grande carência emocional. Querem sentir-se amadas por alguém, encontrar um lugar no mundo. A mãe acaba a chorar sozinha no seu quarto de hotel no Quénia. A tia acaba a chicotear a estatueta de Jesus. Ulrich Seidl explora a fragilidade, esta condição humana que não torna melhores ou piores, esta condição que nos sujeita a uma nojenta animalidade.

O drama dos objectos: notas sobre o "close-up" em Ozu

Quando Béla Balázs afirma em Theory of the Film — Character and Growth of a New Art que o close-up tem a capacidade de revelar «a vida escondida das pequenas coisas», desenvolve uma tese crucial para um entendimento esclarecido do conceito de «microdrama» e das suas implicações formais e estéticas no cinema. Para Balázs, estas serão tanto mais dinâmicas quanto mais amplo for o espaço fílmico que lhe é concedido pelo cineasta. Reflectir sobre estas ideias aplicando-as em particular aos filmes de Yasujiro Ozu pode revelar-se um exercício com conclusões interessantes, já que um dos aspectos que mais cativa o espectador da sua obra consiste na observação do modo como estas «pequenas coisas» são enquadradas cosmicamente.

 

Ozu é apontado pelos técnicos e actores com quem trabalhou frequentemente pelo carácter atento e pelo empenho — tocando, por vezes, num perfeccionismo desmesurado — em controlar todos os detalhes da mise en scène, podendo assim potenciar ao máximo a amplitude emocionalmente contida dos seus planos numa prática cinematográfica em que a imagem é dada ao nível do essencial e conforme uma justa medida. O equilíbrio passa a dominar a construção do plano, afastando a possibilidade da representação do «nervosismo moderno» (Simmel) e a demonstração efervescente dos sentimentos das personagens. Neste sentido, o uso do close-up é indispensável e assume uma função dupla na transmissão visual do conflito das vidas retratadas na película: por um lado, a suspensão da narrativa e o corte espácio-temporal; por outro, a concretização da imagem-afecto de Deleuze. As dificuldades e anseios com que as personagens de Ozu se deparam situam-se invariavelmente na dimensão do banal e do quotidiano, interessando-se os filmes pelos problemas do homem comum (naquilo que posteriormente se veio a designar por shomingeki) e pela forma como este lida com situações universais, que têm também lugar na vida do espectador. Mas o objectivo realiza-se não só pela atenção dada à vida das pessoas, como também pela visão da vida dos objectos. Assim, pode-se falar num cinema descritivo e contemplativo em que Ozu se serve do close-up para trabalhar o conceito de «rostificação das coisas» ou de microfisiognomia (Balázs).

 

Esta utilização das propriedades do plano que têm o poder de despertar a eloquência material parece atingir o seu apogeu no final de Banshun (1949). O filme é a primeira inscrição no conjunto de filmes vulgarmente designado por Trilogia de Noriko, título que faz referência ao nome partilhado pelas personagens interpretadas por Setsuko Hara nas três obras. Embora Ozu nunca tenha explicitamente declarado que estas pudessem ser encaradas enquanto complementares, é indubitável que todas elas representam variações sobre temas constantemente trabalhados e aprofundados pelo próprio: o casamento, o consequente abandono da casa da família por parte de uma filha e as alterações provocadas por essa situação. Em Banshun (Primavera Tardia, na tradução portuguesa), o patriarca, já viúvo, insiste no casamento de Noriko, persuadido por uma tia notoriamente preocupada com a aparência e reputação da família, já que ainda se enquadra no tradicional sistema japonês. Contra a sua vontade, Noriko fá-lo e a última sequência corresponde à entrada do pai na casa vazia, exemplificando as «imagens como entidades» (Deleuze). Depois do plano geral da personagem isolada no centro do enquadramento, e sem outra forma de iluminação para lá do candeeiro (produzindo um subtil chiaroscuro), a acção de descascar uma maçã é filmada em close-up. Nesse momento, a percepção de que a vida se alterou radicalmente dá origem a uma tristeza que se reflecte visualmente na suspensão da tarefa: a faca deixa de se mover em torno do fruto. A tragédia é dada pelo sentido que a imagem encerra em si própria, ao invés de uma observação geral dos acontecimentos. «Não uma imagem justa, mas justamente uma imagem», para trazer Godard ao debate.

 

A forma, encarada como banal e completamente ignorada no plano da vida, adquire um novo significado no plano da arte, sendo mais um dos exemplos que dá razão ao que Wilde afirmava. Assim, Ozu materializa a visão de Balázs do «cinema revelador» num momento genesíaco em que o mundo é realmente descoberto pela primeira vez. Cumpre-se o propósito do close-up enquanto elemento de um trabalho de personificação dos objectos e de «visibilização do invisível». É curioso notar, no campo da invisibilidade, que num filme em que a ritualidade e as festividades desempenham um papel tão importante — recorde-se a maravilhosa cena de ciúmes de Noriko durante o Noh — a elipse é também aplicada à cerimónia nupcial, tornando-se esta num vazio narrativo que não pode ser mostrado. Mais do que a «produção de emoção conseguida através de uma resistência à emoção» (Bresson nas Notas sobre o Cinematógrafo), parece ser a ocultação de um sentimento que pertence apenas aos membros daquela família: não temos o direito de nos envolver ou interferir no curso da renovação associada à passagem das estações. A ideia é ampliada e complexificada em Bakushû (1951), em que a instituição casamento já não encontra eco nas jovens despreocupadas e seduzidas pelo modo de vida ocidental; o cinema de Ozu é também espelho das transformações histórico-culturais do Japão. Ao contrário do que sucede em Banshun, neste filme a jovem não se casa com o par proposto pela família, mas com alguém que, aparentemente, foi escolha sua. Se Noriko fica em melhor estado com esta decisão, o mesmo não se pode dizer do restante núcleo familiar, que mesmo assim sofre mas aceita.

 

Para concluir, e ainda sobre as características da imagem-afecto, Noël Burch comenta em To the Distant Observer: Form and Meaning in the Japanese Cinema que os close-ups que focam os objectos em Ozu traduzem uma ideia assertiva de que «o Homem não se encontra no centro do universo». Deste modo, a tragédia do pai é também a tragédia dos objectos e dos espaços sem a presença de Noriko. Por intermédio da prosopopeia, Ozu dá voz às coisas (da mesma forma que Francis Ponge o faz na poesia?) e integra todos os elementos da realidade num drama duplamente minimalista, por se dar do lado das coisas e pela inexistência de explosões do pathos no seu cinema: mesmo a desilusão face à própria existência, que se confessa em 1953 em Tôkiô Monogatari («Não é desapontante, a vida?»), é aceite de forma estóica. Lições de vida e lições de cinema.