Ulrich Seidl, um estudioso da condição humana
/“Os que afirmam que desprezo as pessoas não me percebem”, lê-se numa entrevista concedida por Ulrich Seidl ao Guardian (2013). A implacabilidade do realizador austríaco para com criaturas inadaptadas, a crueza e detalhe com que exibe as imperfeições de gente malfeita (gordos, deficientes, pobres), talvez contribuam para disseminar a ideia de que o desprezo é um dos sentimentos que o motivam. O ser humano é apresentado nos filmes de Seidl como um animal não só simples na sua barbaridade e fealdade, mas também complexo, que oscila entre o ridículo e a fragilidade, entre a comédia e a mais profunda depressão (depressão essa em grande medida alimentada pela incapacidade de satisfazer os seus mais básicos instintos). Desprezo não é palavra com que se rotule a obra de alguém inteiramente dedicado à compreensão da condição humana.
Muitos dos comportamentos (bizarros na aparência) filmados pelo realizador são tão verosímeis que dão a sensação de terem tido lugar na vida real. A trilogia Paraíso acompanha a história de três mulheres que bem poderiam existir na Áustria, em Portugal ou em qualquer local em que existam humanos. São três mulheres, três existências transbordando de gordura, sebo, pêlos, estupidez, mesquinhez e egoísmo. Em Paraíso: Amor (2013), Teresa viaja para o Quénia procurando amor entre jovens famélicos vendedores de sexo. A personagem principal de Paraíso: Fé (2012), Anna Maria, irmã de Teresa, é uma fanática religiosa que gasta os tempos livres pregando a mensagem do Senhor pelos subúrbios. Já em Paraíso: Esperança (2013), Melody, filha de Teresa, apaixona-se, ou não se apaixona, fica obcecada por um médico do campo para obesos em que a mãe a inscreve antes de partir para África. O carácter insólito ou macabro de muitas das situações descritas nestes filmes não nos desvia da realidade, pois a realidade é sempre mais anormal do que normal, ou melhor, a normalidade é nas nossas vidas uma ficção em que acreditamos para sobrevivermos num quotidiano de estranhezas e absurdos. Não existem paraíso ou amor no Quénia, nas férias de austríacos, alemães, europeus, velhos debochados à caça de pénis erectos e selvagens. Teresa sonha com sexo, com sentimento e delicadeza. Paga ao negro, escravo, para satisfazê-la. Ensina-lhe bons modos. Como acariciar um seio. A senhora comporta-se como se estivesse a lidar com macacos e, ao mesmo tempo, ambiciona que os macacos a tratem como a princesa que nunca foi. É preciso saber tocar no seu corpo disforme. É grotesco, quase pornográfico de tão inestético, assistir a uma cena de "amor" entre esta mulher acabada para a sensualidade e um negro viçoso. Porém, não nos chocamos. Aquilo a que assistimos poderia acontecer a qualquer pessoa, dependendo das circunstâncias e do estado de alma. O "eu nunca" não é aconselhável a elementos desta espécie tão pouco virada para a consistência e a firmeza de princípios. Não há vilões. Comportamentos desvairados ou pérfidos fazem parte da vida, são banais. A mulher tira fotografias numa escola decrépita frequentada por crianças miseráveis, como se fosse exótico fotografar a pobreza. A mulher é estúpida, é. O amante negro não sabe amar, às vezes nem erecção consegue ter, a mulher bate-lhe, comporta-se como se fosse sua dona. Choca? E se colocássemos a mesma senhora em Lisboa, pagando a pobres, entrando em eléctricos para sentir a fome, deambulando pelas ruas de Alfama em busca do desdentado e do fadista macabro, o que seria diferente? A estupidez humana é universal e não se escapa à angústia. É o aniversário da mulher e ninguém lhe liga. Está sozinha no seu quarto de hotel, bêbeda e despida. Os calções de turista e os chinelos de enfiar no dedo assinalam a nossa pobreza. A mulher acaba deprimida, aquele mundo não era o paraíso, nem com dinheiro compraria amor ou bom sexo. O mundo é assim no Quénia, em Nova Iorque e na Mouraria.
O que pode chocar quando, em Paraíso: Esperança, vislumbramos uma adolescente obesa morrendo de desejo por um homem muito mais velho, e um homem muito mais velho que prescinde de toda a ética profissional para se aproveitar da adolescente? Em Paraíso: Fé, as acções da fanática religiosa são macabras mas banais. Obcecada, a senhora lambe as fotografias de Jesus, masturba-se com a cruz pendurada por cima da cama. O que incomoda? Que se pense em sexo? Que se deseje fornicar com Jesus? Que sejamos um pouco como essa senhora, que sejamos como ela sempre que estamos calados?
O desejo impulsiona estas personagens. O desejo corporal, o desejo de viver num paraíso em Terra. O médico de Paraíso: Esperança insinua-se e, à medida que o filme avança, percebe-se que a culpa do médico é não passar das insinuações, não satisfazer a adolescente como ela desejaria. Os quenianos são tão abusadores quanto a velha munida de maços de notas. Ser gorda, religiosa, peluda, enfim, ser humano, ser hediondo perseguindo ideais elevados como o amor. A fanática religiosa casa-se com Jesus. Mãe, filha e tia têm uma grande carência emocional. Querem sentir-se amadas por alguém, encontrar um lugar no mundo. A mãe acaba a chorar sozinha no seu quarto de hotel no Quénia. A tia acaba a chicotear a estatueta de Jesus. Ulrich Seidl explora a fragilidade, esta condição humana que não torna melhores ou piores, esta condição que nos sujeita a uma nojenta animalidade.