Visitações

Um dia já todas as vozes
chamavam ao mesmo tempo.
Neste calendário não havia
a métrica fílmica, discursos
ou palavras lúridas para revisitar,
somente imagens que se profanavam
a si mesmas na ânsia de se recriarem.
Os tecidos envelhecidos do verbo não eram
pardos, as complexas idades da mente
estavam a ser preparadas. Lembravam
os tecidos moles de rio e rochedo, carmes
conseguidos com a primeira saliva do dia.

Esquecemos a cega censura da génese.
O que distingue as manhãs supremas
de Shelley e Keats só pode ser
o descuido de uma ou outra gota a mais
vertida na lâmina do orvalho. Sabemos
como eram essas visitações escandidas
pelo ângulo de uma luz ainda nodosa.
Um dia já todas as vozes
chamavam ao mesmo tempo
no nosso quintal delapidado,
e súbito eram horas de Shelley
e Keats neste calendário inumerado.

Vou em plena voragem amniótica do tempo.
For ‘twas the morn: febre nos olhos,
Sopro estéril no sangue das pedras frias
quando as levantei para conhecer
o tenebroso desenho das lagartixas.
Dedos desencontrados de futura biografia,
sinas que nem um sutra saberia destecer.
Na aragem da visão passavam mãos meninas
com selhas transbordantes de branco,
aventais com a goma dos líquenes
enquanto, marcado pelos dentes das estrelas,
flectido na terra, este coração desaparecia. 

(inédito)

Ciclismo e Filosofia

Há muito que sigo a Volta à França (Tour de France) em bicicleta. Sigo à distância, primeiro em diferido, quando as notícias desportivas impressas apareciam em Bragança (a minha Ítaca mal-amada) cerca de 12 horas depois de serem publicadas na capital; agora pelo direto televisivo, podendo mesmo escolher que comentadores quero ouvir. Sonho em estar lá, de corpo inteiro, nos sítios onde alguns segundos, ou minutos, valem o tempo longo de muitos compromissos existenciais sem qualquer intensidade dionisíaca. Tudo isto porque mantenho a esperança ambiciosa de recuperar um mundo no qual me possa encontrar a mim. Aos agnósticos do ciclismo, parece absurdo demorar meio dia a posicionar-se numa curva de estrada de montanha para ver e vibrar (raras são as vibrações do olhar) com a passagem dos 20 ou 30 primeiros corredores, capturando o eterno no efémero. E desde 1903 (o primeiro Tour) que é assim, ano após ano (interrompido somente durante a Segunda Guerra Mundial), um eterno retorno do épico.

Os Monty Python fizeram humor com duas equipas de futebol compostas por filósofos (Alemanha vs. Grécia). David Foster Wallace escreveu sobre a experiência religiosa que emergia (uma física divina) do jogo de ténis de Roger Federer. Outros descreveram um José Mourinho infiel a si mesmo ao padronizar-se. Muitos ainda sobre desportistas e desportos, sobre uma das principais condições de possibilidade de ser humano, porventura mais homo ludens do que homo laborans, o jogo (que talvez não retire ao real a sua realidade, como defendeu Jean-Paul Sartre). Um ludens muito sério, agora que o lazer já não é ócio, mas negócio.

Cada desporto, elevado à institucionalização e absorvido pela economia capitalista, tem traços dominantes (mais de existência do que de essência), por exemplo: no futebol, intensidade e fanatismo; no ténis, pancada certa e tenacidade mental; no basquetebol, potência e exatidão; na natação, deslizar e respirar; no atletismo de velocidade, explodir e quase levantar voo… No ciclismo, viagens épicas, o melhor desporto para prolongar o culto do herói dos Olímpicos gregos, as etapas de alta montanha exigem aguentar torturas extremas nas subidas e medos de morte nas descidas, enquanto nos contrarrelógios (estranho agon filosófico, o Humano e o Tempo, um tempo que termina na vida em vez de na morte, a ontologia do morrer de Martin Heidegger) há um sofrimento solitário que concentra toda a tortura num só indivíduo. Apesar das disparidades, os diferentes desportos oferecem várias oportunidades aos melhores.

Aproveitando a experiência dos Monty Python, que filósofos podemos associar aos principais candidatos à vitória do Tour deste ano? Aposto em quatro corredores: Tadej Pogacar (talvez o favorito, mesmo tendo feito a Volta à Itália, que ganhou com muito à vontade), Jonas Vingegaard (vencedor dos dois últimos Tour, mas com um acidente grave há alguns meses, obrigando-o a refazer o plano de preparação física e psicológica), Primoz Roglic (perdeu incrivelmente o Tour de 2020 para Tadej Pogacar) e Remco Evenepoel (o mais novo, o mais imprevisível, talvez o mais talentoso, mas com uma preparação para este Tour muito condicionada devido a uma queda na Volta ao País Basco). Há outros excelentes ciclistas, por exemplo João Almeida (da mesma equipa de Tadej Pogacar, UAE), mas é pouco provável que a vitória final fuja àqueles quatro sobredotados (sobre-homens), todos eles corsários, prontos a roubar o que for necessário para vencerem.

Assim, à maneira de uma tentativa (versuch), tão apreciada e praticada pelo filósofo artista de Assim Falou Zaratustra, associo Friedrich Nietzsche a Remco Evenepoel (pela vontade que revela de correr riscos, de sobrestimar as suas capacidades, pela generosidade heroica, o oposto da piedade, um pathos da distância relativamente aos outros ciclistas, a vivência da tragédia, uma queda que quase o matou na Volta à Lombardia de 2020, menos refinado, contudo, do que Nietzsche, mas um homem das alturas e do risco, dos desastres grandiosos, até agora). Junto Byung-Chul Han e Vingegaard (a contenção precisa, sabe o que fazer em cada situação, e fá-lo bem, a subir as montanhas ou a lutar contra si nos contra relógios, reservado quase até ao enigma, uma potência que não desperdiça qualquer recurso, seguindo uma máxima de Han: «a vida não é autoconservação, mas autoafirmação»). Primoz Roglic e Gilles Deleuze (deslizar e rizomatizar em vez de enraizar, defendia Deleuze, é assim que corre Roglic, quando está em forma parece desenhar as estradas que percorre, em vez de se submeter a todas as leis que definem as entropias que travam os ciclistas, apesar de ser um bom trepador, tenho a sensação de que nele o vertical se horizontaliza, aspira ao ascético sem sair do mundo). Finalmente, o extraordinário Pogacar a Peter Sloterdijk ou Michel Foucault (pensadores mais vastos do que a filosofia, ciclista para lá de qualquer definição fornecida, ainda que em esboço, pela história do ciclismo, talvez só Eddy Merckx, belga como Evenepoel, autorize comparações, Pogacar é um campeão exuberante, assumindo um talento desmesurado com uma incrível modéstia — bem dentro do que disse Hannah Arendt: «Só os espíritos vulgares se permitirão retirar orgulho daquilo que fizeram» —, como Sloterdijk e Foucault é capaz de admirar o que os outros fazem, o colapso numa ou duas etapas do último Tour deram-lhe a aura que talvez lhe faltasse, os heróis trágicos precisam de cair de boas alturas, Foucault morreu cedo, Sloterdijk conseguiu indispor o intocável Jürgen Habermas por causa de uma desejável antropotécnica, Pogacar perdeu sete minutos para Vingegaard numa etapa do Tour de 2023).

Nos floridos silvados as amoras que não comerei — Haikus

Nos floridos silvados as amoras que não comerei — Haikus

 

 

Borboletas e abelhas

à volta da lavanda

dançando.

 

Armo-me de papel

e pena ­­—

morreu a poeta.[1]

 

Sente-se também

no pé do gigante

a mordida da formiga.

 

Cores e aromas

oscilando

na brisa de Junho.

 

À Lua encoberta

canta o sapo —

terra molhada ao amanhecer.

 

Sobre o centenário dragão

levemente pousa

a borboleta.

 

Em Junho

de calções

à lareira.

 

Pudesse eu descrever

o aroma do correr

desta agueira.

 

Espelhada na água

da agueira

hortelã fresca.

 

Tarde se lembrou o velho

de virar a água

para as cebolas.

 

De flor em flor

as abelhas na lavanda —

incansável beleza.

 

Duas lavandas floridas

invisível entre elas

uma roseira.

 

À sombra da videira

a rã canta

mais verde.

 

Inquietos os quilhões-de-galo

anunciam

a tempestade de verão.

 

Fugindo do Sol

para o buraco no muro

corre o caracol.

 

Contra o muro

da mesma encruzilhada

em três mulheres me verti.

 

Hora de almoço no Bairro

não se houve um talher —

cai uma telha da casa abandonada.

 

Atento ao canto das rolas

um cavalo solitário

entre ruínas.

 

Lá vai saber do almoço

o velho amigo

de meu pai.

 

Não tardam em saltar

do casulo felpudo

as sementes de giesta.

 

Rodeada de verde musgo

a sola de uma velha bota —

que resta do dono?

 

Nesta terra para quem

amadurecem os figos

senão para os melros?

 

Sobre esta fraga

aqui e agora sentindo

este vento que passa.

 

Nos floridos silvados

as amoras

que não comerei.

 

Conhecerá o rio

estes pés gelados —

Noite de S. João.

 

Nesta aldeia

é a enxada

o cajado do ancião.

 

Chega o verão

o rio vai grande

amanhã parto.

 

Hortências e andorinhas

a companhia

à hora do café.

 

Aquele esperado perfume

de figueiras ao sol —

finalmente verão.

 

Directamente da cerejeira

a barriga enche-se

de doçura e nostalgia.

 

Sobre o toro de madeira

repousam agora secas

as rosas de minha mãe.

 

Como um tracejado

a lagartixa

atravessa o caminho.

 

Gosto de sair de ti

e ver-te

o cu a pingar.

 

Torre de Dona Chama-Cidões, Junho 2024


[1] No dia da morte de Maria Quintans

O NASCIMENTO DE AUGUSTO

Mergulho em música probatória:
eu no meu período azul, talvez venial,
ouvindo a voz pátria muito ao de longe
em rasgo parturiente, toda ela ao comando:
em mim ordem ignorada, sentida como cesura.

Daí a minutos, horas ou dias, a intimidação,
mas por ora o consenso – sim, conservo-me
nesta cama de sangue, cetim e largas penas,
procuro tentar algo mais que salto barulhento –
a minha gramática é uma seta a gotejar de sol.

Ouves a canção que inaugura o mundo privado:
globo de maçãs vibrantes, esta correia de platina
que range sob a mais bela estação do zodíaco.
Contento quem me faz oferendas, cabeças firmadas
no plasma adiado da vitória, sombras simples

vertidas na concha destas duas mãos
através dum grosso cabo de corda
que puxo todo com toda a imaginação
mais o leite que sobeja de biografia
ebuliente, em combustão forte, bravosa. 

(inédito)