Há muito que sigo a Volta à França (Tour de France) em bicicleta. Sigo à distância, primeiro em diferido, quando as notícias desportivas impressas apareciam em Bragança (a minha Ítaca mal-amada) cerca de 12 horas depois de serem publicadas na capital; agora pelo direto televisivo, podendo mesmo escolher que comentadores quero ouvir. Sonho em estar lá, de corpo inteiro, nos sítios onde alguns segundos, ou minutos, valem o tempo longo de muitos compromissos existenciais sem qualquer intensidade dionisíaca. Tudo isto porque mantenho a esperança ambiciosa de recuperar um mundo no qual me possa encontrar a mim. Aos agnósticos do ciclismo, parece absurdo demorar meio dia a posicionar-se numa curva de estrada de montanha para ver e vibrar (raras são as vibrações do olhar) com a passagem dos 20 ou 30 primeiros corredores, capturando o eterno no efémero. E desde 1903 (o primeiro Tour) que é assim, ano após ano (interrompido somente durante a Segunda Guerra Mundial), um eterno retorno do épico.
Os Monty Python fizeram humor com duas equipas de futebol compostas por filósofos (Alemanha vs. Grécia). David Foster Wallace escreveu sobre a experiência religiosa que emergia (uma física divina) do jogo de ténis de Roger Federer. Outros descreveram um José Mourinho infiel a si mesmo ao padronizar-se. Muitos ainda sobre desportistas e desportos, sobre uma das principais condições de possibilidade de ser humano, porventura mais homo ludens do que homo laborans, o jogo (que talvez não retire ao real a sua realidade, como defendeu Jean-Paul Sartre). Um ludens muito sério, agora que o lazer já não é ócio, mas negócio.
Cada desporto, elevado à institucionalização e absorvido pela economia capitalista, tem traços dominantes (mais de existência do que de essência), por exemplo: no futebol, intensidade e fanatismo; no ténis, pancada certa e tenacidade mental; no basquetebol, potência e exatidão; na natação, deslizar e respirar; no atletismo de velocidade, explodir e quase levantar voo… No ciclismo, viagens épicas, o melhor desporto para prolongar o culto do herói dos Olímpicos gregos, as etapas de alta montanha exigem aguentar torturas extremas nas subidas e medos de morte nas descidas, enquanto nos contrarrelógios (estranho agon filosófico, o Humano e o Tempo, um tempo que termina na vida em vez de na morte, a ontologia do morrer de Martin Heidegger) há um sofrimento solitário que concentra toda a tortura num só indivíduo. Apesar das disparidades, os diferentes desportos oferecem várias oportunidades aos melhores.
Aproveitando a experiência dos Monty Python, que filósofos podemos associar aos principais candidatos à vitória do Tour deste ano? Aposto em quatro corredores: Tadej Pogacar (talvez o favorito, mesmo tendo feito a Volta à Itália, que ganhou com muito à vontade), Jonas Vingegaard (vencedor dos dois últimos Tour, mas com um acidente grave há alguns meses, obrigando-o a refazer o plano de preparação física e psicológica), Primoz Roglic (perdeu incrivelmente o Tour de 2020 para Tadej Pogacar) e Remco Evenepoel (o mais novo, o mais imprevisível, talvez o mais talentoso, mas com uma preparação para este Tour muito condicionada devido a uma queda na Volta ao País Basco). Há outros excelentes ciclistas, por exemplo João Almeida (da mesma equipa de Tadej Pogacar, UAE), mas é pouco provável que a vitória final fuja àqueles quatro sobredotados (sobre-homens), todos eles corsários, prontos a roubar o que for necessário para vencerem.
Assim, à maneira de uma tentativa (versuch), tão apreciada e praticada pelo filósofo artista de Assim Falou Zaratustra, associo Friedrich Nietzsche a Remco Evenepoel (pela vontade que revela de correr riscos, de sobrestimar as suas capacidades, pela generosidade heroica, o oposto da piedade, um pathos da distância relativamente aos outros ciclistas, a vivência da tragédia, uma queda que quase o matou na Volta à Lombardia de 2020, menos refinado, contudo, do que Nietzsche, mas um homem das alturas e do risco, dos desastres grandiosos, até agora). Junto Byung-Chul Han e Vingegaard (a contenção precisa, sabe o que fazer em cada situação, e fá-lo bem, a subir as montanhas ou a lutar contra si nos contra relógios, reservado quase até ao enigma, uma potência que não desperdiça qualquer recurso, seguindo uma máxima de Han: «a vida não é autoconservação, mas autoafirmação»). Primoz Roglic e Gilles Deleuze (deslizar e rizomatizar em vez de enraizar, defendia Deleuze, é assim que corre Roglic, quando está em forma parece desenhar as estradas que percorre, em vez de se submeter a todas as leis que definem as entropias que travam os ciclistas, apesar de ser um bom trepador, tenho a sensação de que nele o vertical se horizontaliza, aspira ao ascético sem sair do mundo). Finalmente, o extraordinário Pogacar a Peter Sloterdijk ou Michel Foucault (pensadores mais vastos do que a filosofia, ciclista para lá de qualquer definição fornecida, ainda que em esboço, pela história do ciclismo, talvez só Eddy Merckx, belga como Evenepoel, autorize comparações, Pogacar é um campeão exuberante, assumindo um talento desmesurado com uma incrível modéstia — bem dentro do que disse Hannah Arendt: «Só os espíritos vulgares se permitirão retirar orgulho daquilo que fizeram» —, como Sloterdijk e Foucault é capaz de admirar o que os outros fazem, o colapso numa ou duas etapas do último Tour deram-lhe a aura que talvez lhe faltasse, os heróis trágicos precisam de cair de boas alturas, Foucault morreu cedo, Sloterdijk conseguiu indispor o intocável Jürgen Habermas por causa de uma desejável antropotécnica, Pogacar perdeu sete minutos para Vingegaard numa etapa do Tour de 2023).