As Cidades Invisíveis, Italo Calvino

Esta semana, aguilhoaram-me dois moscardos (para recuperar uma imagem de Sócrates, o filósofo). O primeiro foi Heraclito (VI-V a. C.), que parece ter dito o seguinte: «É preciso apagar a desmesura [húbris] ainda mais do que um incêndio.» O segundo foi Italo Calvino (1923-1985), ou melhor, um comentador deste soberbo escritor, Alfonso Berardinelli, num artigo publicado na revista Electra (nº 24, Primavera 2024, pp. 18-25), «Calvino e o pathos da distância».

Fui aguilhoado e comi uma madeleine (talvez como Proust), ativando a memória de As Cidades Invisíveis, recordo o espanto, o encantamento e a admiração que lhe dediquei. De que darei nota aqui depois de atendermos ao que escreveu Berardinelli.

Diz este conhecido crítico italiano: «É difícil imaginar um destino literário mais bem-sucedido e feliz do que o de Italo Calvino.» Todos o admiraram e amaram (leitores, críticos e académicos). Calvino «desconfiava do romance» e «evitava o espírito das vanguardas». Preferiu produzir textos com «micro-história» e fazer uma literatura acessível, «queria ser um escritor para todos, mesmo quando a sua escrita narrativa pressupunha uma teoria narratológica do mito e da fábula». Por isso, restringia o material narrativo ao mínimo. Sem condescender com o seu moralismo da ordem e da higiene mental, mantendo afastados «os medos, as angústias e as dúvidas paralisantes». Berardinelli coloca-o próximo do estruturalismo, porque quis superar a confusão da sua época: «E o que era o estruturalismo senão uma nova codificação retórica das formas literárias, depois das aventuras anárquicas e do angustiante desafio ao caos expresso pela modernidade?» Além do mais, «É um escritor reconfortante. Na sua narrativa, ninguém sai ferido. Ninguém é vencido, nenhuma lágrima é vertida, nunca é emitido um suspiro ou um grito. Ninguém reclama, ninguém acusa nem é acusado».

Agora, as minhas notas, mais de reflexão do que repetição ou destaque. Em As Cidades Invisíveis, Marco Polo é, primeiramente, um aventureiro que se exila numa China que é quase outro mundo, e depois um viajante por conta do imperador Kublai Khan, com a missão de lhe contar o que vê no seu império, as realidades, invisíveis para o conquistador, do seu imenso território. Visitará cidades, várias cidades, cada uma delas com o seu próprio ethos. As personagens do livro são, pois, Marco Polo, Kublai Khan mas igualmente as cidades que este último conquistou e que Marco Polo visita e descreve. Instaura-se então um vaivém de Marco Polo entre as cidades (só aparentemente de uma China medieval, mais exótica e improvável do que atrasada ou pitoresca) e o palácio, para relatar o que observou ao seu Senhor. Portanto, o princípio narrativo está na impossibilidade, ou falta de vontade, de um imperador conhecer o que detém. Khan desconhece o seu império e escolhe um estrangeiro (ignorante) para lho dar a conhecer. Estrangeiro que, neste caso, terá sempre como ponto de referência implícito a sua cidade: Veneza (são várias as peças venezianas nas cidades do imperador). Mais, no início, Marco Polo não fala a língua de Kublai Khan, inventando um novo código (dança, sons, gestos, objetos…) para descrever o que viu. Esta novilíngua, com uma pureza semiótica surpreendente, tem força literária, mas também filosófica: com que grau de fidelidade é possível pôr algo em comum? Apesar dos esforços e do relativo sucesso da comunicação, Kublai Khan parece interessar-se mais pelo que pensa e ressente Marco Polo do que propriamente pelas cidades. Mostra igualmente interesse pela viagem que Marco Polo fez desde Veneza até ao Oriente. Curiosamente, quanto mais os dois homens se compreendem, mais tempo ficam em silêncio.

Por que razão as cidades são invisíveis? Que estranha forma de apostar no ausente. O óbvio é que Kublai Khan não viu, nem pretende ver, pelo menos in loco, as suas cidades. Mas este critério podia ser invertido: Marco Polo vê as cidades. Porque não, então, chamar As Cidades Visíveis ao livro? Talvez sejam invisíveis porque são utópicas (no sentido literal de não-lugares), cidades exclusivamente literárias, imaginadas, fantásticas, produto onírico mais do que hermenêutico. Não ideais, mas construídas a partir de ideias, em vez de matéria. Talvez sejam uma forma de Calvino construir cidades, de o domador de palavras se aventurar na arquitetura, e na política, e na antropologia… Uma cidade é um ecossistema extremamente complexo e multiforme. Uma cidade de Calvino é-o ainda mais. Porque pode ser uma cidade de memórias, ou de desejos, ou de signos, ou de trocas, ou de olhares, ou de mortos, ou do céu, ou escondida, ou de instabilidade, ou de continuidade, ou… Uma estética «à la De Chirico», como alguém lhe chamou. No fundo — é nos abismos da racionalidade que os enigmas são solúveis ou insolúveis, definitivamente —, tudo pode não passar de uma invenção de Marco Polo, ele pode ter inventado, antes do próprio narrador, todas aquelas cidades. Aliás, o próprio Kublai Khan desconfia das narrações do seu mensageiro. Que pode, inclusive, não ter viajado pelas cidades que descreve, tendo-as simplesmente imaginado desde os seus aposentos. Até porque é evidente, como referi acima, que a representação, imaginada ou vivida, das cidades do império de Kublai Khan é composta por inúmeros fragmentos da cidade de Veneza.

O livro tem uma estrutura serial, cada tema ligado a uma cidade está na origem de uma série de textos. Onze séries com cinco textos cada uma delas. Há ainda uma linha de estruturação assente na divisão do livro em nove capítulos, compostos por cinco textos pertencentes a diferentes séries, exceto o primeiro e último capítulos, compostos por dez textos. Finalmente, a estrutura também resulta de um importante metatexto, constituído pelos diálogos entre Marco Polo e Kublai Khan. Esta estrutura multimoda pode dar pistas de leitura, bem como, para mim mais importante, a ideia, explícita na conclusão do livro, sobre como é importante reconhecer o que não é infernal nos caos citadinos. Recomenda-nos, pois, embora sem realmente se querer intrometer nas decisões dos leitores, uma leitura atenta, única forma de encontrar aquilo que brilha na escuridão ou, mais difícil ainda, aquilo que brilha e se distingue na máxima luminosidade.

SAL NA PELE, SÃO PAULO

Vamos fazer um filme, uma viagem
ao doce columbário das almas mortas.
Cada homem, cada fruto emagrecido
orará na suculência onírica do seu cadáver:
tantas vidas que não bastará uma para contá-las.
Capta isso ao arrepio, com uma luz lanceolada
que te atravesse a garganta em golpes de asa.

Olhos lambuzados de verdejante miséria
junto aos parques que atravessam o morro:
alcandorado percorro as pústulas de São Paulo.
Há quem se aproxime e cozinhe a sua versão
de humanidade com sacos e vozes nos ouvidos,
quem rejeite o perdão a prazo da homilia,
a chatice imensa da charneca do trabalho
que obriga a acumular breves batalhas
até ao perro desfecho da biografia.

Ao menos que o pouco que registamos
entretenha uma noção de verdade,
remova a praga dos deuses de barro
relidos em esquálidas folhas de jornal.
Vamos fazer o filme do furor perdido,
o mesmo que César viu transir de frio
ao virar a lenta página do desastre.

Que não deixe nunca de nos incomodar
a verde luzerna suicidando-se gelada
entre as ondas de nenhuma circunstância.
Assim que o fumo da névoa for propício,
captemos os testemunhos mais extraviados.
Quanto ao célebre estábulo da criação,
é estender-lhe por cima um pano de linho,
como se faz aos papagaios que se apeitam
na sua interesseira adoração.

(inédito)

Valor

Considero valor cada forma de vida, a neve, o morango, a mosca.
Considero valor o reino mineral, a assembleia das estrelas.
Considero valor o vinho enquanto dura a refeição, um sorriso involuntário, o cansaço
de quem não se poupou, dois velhos que se amam.
Considero valor aquilo que amanhã já não valerá nada e já hoje vale pouco.
Considero valor todas as feridas.
Considero valor poupar água, reparar um par de sapatos, calar a tempo, acudir a um grito, pedir permissão antes de sentar, experimentar gratidão sem recordar de quê.
Considero valor saber num quarto onde é o norte, qual é o nome do vento que está a secar a roupa.
Considero valor a viagem do vagabundo, a clausura da freira, a paciência do condenado, não importa qual a culpa.
Considero valor o uso do verbo amar e a hipótese de que exista um criador.
Muitos destes valores não os tenho conhecido.

 

Erri de Luca, Opera sull’ acqua e altre poesia, Einaudi, 2002.
Tradução de Tatiana Faia

Os educadores que nos libertam

Nietzsche leu, em profunda admiração e embriaguez filosófica, O Mundo Como Vontade e Como Representação de Schopenhauer em 1864

Deus morreu, os monoteísmos, foram-no envenenando até o tornarem ou anódino ou fanático (o excesso revela o desespero perante o féretro). Libertos da figura tutelar (iconográfica, bibliográfica e ritualógica), parecia que finalmente corríamos o grande, heroico risco de sermos livres, tornando-nos aquilo que somos. Depois, sem nos apercebermos, surgiram os influenciadores globais, exímios gestores do senso comum. Iniciou-se uma nova era de alienação, aliviando o stress aos mais ansiosos.

Conhecemos o «Como nos tornarmos aquilo que somos» (Wie man wird, was man ist) do subtítulo de Ecce Homo de Friedrich Nietzsche (1888). Mas todas a sua obra é pontuada por uma tensão para se ser o que se é, impondo-nos a responsabilidade pela nossa vida (só tornando-nos aquilo que somos confirmamos o seu valor). A vocação de cada um é, antes de mais, tornar-se aquilo que é, única forma de nos diferenciarmos da massa humana dos iguais, humanos, demasiado humanos. Pelas ações, como queria Píndaro (e os Gregos, para os quais o «cogito ergo sum» de Descartes seria quase incompreensível, viviam num mundo agonístico, no qual cada indivíduo corria o constante o risco de cair na desmesura, dele ou de outrem, humano ou divino, cada grego era mais um elemento do grandioso pathos trágico, feito de uma poiética do sofrimento), mais do que pela reflexão, mesmo reconhecendo a qualidade e a força da autoanálise crítica nietzschiana.

Tornarmo-nos aquilo que somos (werde, der du bist) parece ser um paralogismo, dedicado a manipular uma racionalidade exaurida de dispositivos críticos. Como podemos tornar-nos aquilo que já somos? Talvez Nietzsche queira renovar, noutros termos e noutra trama vital e filosófica, o «Eu sou aquele que (quem) sou» do Antigo Testamento. Manter a potência, talvez trágica, da autonomia individual (sou eu que me torno aquele que sou), acrescentando-lhe (o que é uma revolução ontológica) o processo, dentro do tempo, e da temporalidade, do eterno retorno, de me tornar, de me ir transformando, autotransformando, modelando um qualquer barro original, feito de genética, de social e de vontade.

Na terceira Consideração Intempestiva, Schopenhauer Educador (1874), consagrada à figura solitária do mestre filósofo, o seu mestre, Nietzsche defende, a partir de uma conceção da genialidade romântica, evitando o pessimismo niilista schopenhaueriano, isto é, um pessimismo insolúvel, que se os jovens querem ser livres devem saber o seguinte: «Um homem nunca se eleva tão alto como quando não sabe aonde o levará o caminho que escolheu» (citação de Ralph Waldo Emerson, que foi emulando ao longo da sua vida). E não sabe porque os impulsos que o levam a escolher vão sendo definidos, não por uma qualquer essência, alojada no centro do seu eu, que seria ou não possível reconhecer, mas pelas influências, tantas vezes paradoxais, dos mestres, dos educadores, como Schopenhauer. Mestres que devemos seguir, com certeza, mas também trair, com o mesmo grau de necessidade.

Eis o que Nietzsche diz nessa Intempestiva, cap. 1, depois de perguntar sobre como nos encontramos a nós mesmos («Aber wie finden wir uns selbst wieder?»): «O que é que realmente amaste até agora, que coisas te atraíram, o que é que te dominou e, ao mesmo tempo, o que é que te preencheu? Observa a série completa desses objetos venerados e talvez eles te revelem, pela sua natureza e sucessão, uma lei, a lei fundamental do teu verdadeiro eu (eigentlichen Selbst). Compara estes objetos, vê como eles se completam, se ampliam, se ultrapassam, se transfiguram, como formam uma escada pela qual subiste até ao teu eu. Porque a verdadeira essência não está escondida no teu íntimo, mas incomensuravelmente acima de ti ou, pelo menos, daquilo que tu consideras habitualmente o teu eu. Os teus verdadeiros educadores e formadores (Erzieher und Bildner), aqueles que te formarão, revelarão aquilo que é verdadeiramente o sentido original e a substância fundamental da tua essência, em todo o caso aquilo que é de difícil acesso, como um feixe atado e rígido: os teus educadores não podem ser outra coisa que não os teus libertadores (deine Erzieher vermögen nichts zu sein als deine Befreier).»