Os maias
/Luzes vermelhas piscavam numa varanda do prédio em frente quando Carlos saiu. Dois andares acima, um Pai Natal pendurado numa escada tentava alcançar uma marquise que tinha todas as janelas fechadas. Desde o início do mês que ali estava, naquela posição, sem subir ou descer um degrau. Há uma semana, quando saíam para beber o café depois do almoço, os pais de Carlos tinham comentado aquele Pai Natal, lamentando viverem no rés-do-chão onde não podiam ter enfeites à janela. Carlos riu-se e gozou com a situação.
Olhou o boneco pendurado e não conseguiu lembrar-se quem dissera o quê. O pai e a mãe às vezes confundiam-se na sua cabeça, formavam uma unidade, composta por pai e mãe, em que não importava já quem fazia o quê, quem dizia o quê. Baixou os olhos para o passeio e caminhou apressado.
Faltava pouco para as dezoito horas e já era praticamente de noite. Na véspera de Natal, já o sabia, esta era a última oportunidade para beber um café. Desceu a rua em passo acelerado, virou à esquerda na esquina e entrou no primeiro café. Não era aquele aonde ia sempre e por isso mesmo o escolheu. Não se lembrava de alguma vez lá ter entrado, apesar de ter vivido quase todos os vinte e nove anos da sua vida naquele bairro, naquela rua, naquela casa.
Também no café havia enfeites dispersos pelo espaço. Três ou quatro clientes falavam sobre doces, presentes, crianças, o que ainda faltava fazer, quantas pessoas iam ter para o jantar, o que ia ser o jantar, e despediam-se sempre com muitos votos de felicidades, de bom Natal, de bom ano novo, se a gente já não se vir até lá. Carlos pediu um café, sentou-se numa mesa perto da porta e saiu assim que o terminou, sem dar tempo a que alguém lhe desejasse o que quer que fosse. Subiu a rua de olhos postos no alcatrão que pisava, enquanto lhe chegavam aos ouvidos conversas dos vizinhos que ainda não tinham recolhido ao lar para a consoada. Toda a gente fazia os mesmos votos.
A luz do prédio estava apagada, sinal de que não havia ninguém a descer as escadas. Não a acendeu. À porta do seu rés-do-chão esquerdo tacteou com a ponta da chave em busca da fechadura. Depois de entrar deu duas voltas completas para trancar a porta e encostou-se a esta respirando fundo. A casa estava imersa em escuridão.
***
Carlos entrou na sala escura tacteando, dando passos curtos, mal levantando os pés do chão. Com o braço direito esticado alcançou o velho e enorme móvel. Caminhou até à outra extremidade deste, sempre com a mão direita como que acariciando a madeira, até alcançar a porta do mini-bar. Rodou a chave, que estava sempre na fechadura, e ouviu o estalido a indicar que estava aberta. Da cozinha a mãe gritou.
“Carlos! O que é que estás a fazer? Não sabes que os chocolates são só para amanhã, quando chegarem as visitas?”
“Estava só a ver uma coisa,” gritou de volta, rodando a chave até o estalido se repetir. Era a pior desculpa do mundo, mas a mãe perdoaria. Afinal, ele espreitava muitas vezes os chocolates, como espreitava muitas vezes as prendas, mas nunca abria as caixas nem rasgava os embrulhos antes da autorização.
Saiu da sala para o corredor. A casa estava às escuras. Não havia luz no seu quarto, nem no quarto dos seus pais, nem na cozinha. Carlos estacou. Reentrou na sala, sem acender a luz, e caminhou, agora mais seguro, até ao mini-bar. Rodou a chave, ouviu o estalido e ficou à espera. Nada aconteceu. Voltou a rodar, no sentido inverso, e a abrir novamente. E nada aconteceu.
Deixou cair suavemente a porta do mini-bar, que abria de cima para baixo, formando uma prateleira à altura do peito quando aberta. Do lado esquerdo havia garrafas do pai, whisky, moscatel, Porto, bagaceira, algumas a meio, a de moscatel quase no fim e várias ainda por abrir. Do lado direito estavam as caixas de chocolates, de vários tamanhos, várias marcas, várias cores, todas ainda fechadas em plástico.
Carlos tocou nas caixas de chocolates. Sentiu um arrepio quando as pontas dos dedos deslizaram sobre o plástico. Tirou a caixa do topo. Abriu-a e espalhou os chocolates sobre o tampo de vidro da mesa de centro. Fez o mesmo com as outras sete ou oito caixas de chocolates, espalhando-os sobre a mesa e largando os plásticos e as caixas vazias para o chão. Depois tirou uma garrafa de whisky, que estava a meio, e um copo e pousou-os também na mesa, empurrando alguns chocolates para o chão. Fechou o mini-bar, ouviu o estalido, fez um compasso de espera, mas nada aconteceu.
Quando voltou as costas ao móvel, encarou a mesa de centro, coberta de chocolates de todas as marcas. Não os conseguia distinguir bem na penumbra. Depois viu o vulto da pequena árvore de Natal de plástico a um canto, sobre uma mesinha alta. No chão havia muitos presentes de vários tamanhos, embrulhados em papel colorido. Carlos pegou num, tentando ver através do papel apesar de estar às escuras. Depois pegou noutro e abanou-o no ar. Ouviu qualquer coisa mexer-se dentro da caixa. Quando ia colar o nariz ao papel, com o coração pulando de excitação, para tentar vislumbrar uma palavra, uma imagem, uma marca que denunciasse o presente, ouviu um grito vindo da cozinha.
“Carlos! Vai já para o teu quarto! Já te disse mil vezes que as prendas só se abrem à meia-noite!”
Largou o embrulho e saiu a correr da sala, batendo com a canela no aparador do corredor. “Foda-se!” gritou. Tentou perceber como é que batera no aparador e deu-se conta de que estava às escuras. Não havia luz na sala, nem no corredor, nem em nenhuma outra divisão da casa.
Em passo hesitante, regressou à sala. Tinha qualquer coisa na sola de um sapato que se colava ao chão, qualquer coisa pegajosa, que o enojava mais a cada passo. Tacteou até à árvore de Natal, quase tropeçando no sofá. Procurou o fio que pendia da árvore e quando o agarrou ligou a ficha à tomada. Luzes vermelhas acenderam-se num crescendo de intensidade. Atingindo a potência máxima apagavam-se, para logo de seguida começarem a piscar velozmente, para depois exibirem outro efeito luminoso, e outro, e assim em repetição rumo ao infinito. No chão, por baixo da árvore, não havia presentes.
***
Sentado no sofá, Carlos bebia whisky e comia chocolates. Junto aos seus pés havia uma mancha de um bombom esborrachado, o mesmo que deixara restos na sola do sapato que se colava ao chão. Metia os chocolates inteiros na boca, mastigava-os com violência, três ou quatro vezes, e engolia. Ignorava ou esquecera os ensinamentos do pai. “Não trinques o chocolate. Deixa-o derreter-se na boca, que assim o sabor dura mais.” E acompanhava cada novo bombom de um gole generoso no copo de whisky.
Não demorou muito até que terminasse aquela garrafa. Levantou-se para ir ao mini-bar pisando os restos de chocolate esborrachado, mas não deu por isso ou não se importou. Quando rodou a chave e ouviu o clique não ficou à espera de reacção nenhuma. Pegou numa garrafa de moscatel e sentou-se, sem se dar ao trabalho de voltar a fechar a porta do mini-bar.
A profecia maia, em que a mãe de Carlos acreditava com reservas, sem no entanto conseguir deixar de temer, previa o fim do mundo para o dia vinte e um de Dezembro de dois mil e doze. Carlos bebia moscatel e comia chocolates. Era véspera de Natal do ano da profecia. Lá fora, o mundo parecia continuar, igual ao dia anterior, igual ao próximo, mas ali, na sala escura iluminada apenas pelo piscar vermelho das luzes da árvore, o mundo acabara antes da profecia. Os maias erraram por dois dias. O fim do mundo antecipou-se.
Por cima da cabeça de Carlos havia uma fotografia antiga, com meio metro de altura e uma moldura de madeira trabalhada, com um casal nos seus trintas e poucos anos. Carlos ainda não se atrevera a olhar para lá. Eram os seus pais, juntos, lado a lado, como no acidente que lhes tirou a vida. Iam a caminho do cemitério, a fina ironia da coisa, a filha da puta da ironia de merda, pensara Carlos, quando pelo primeira vez conseguiu pensar depois do choque.
Fechou-se em casa depois do funeral. Desligou o telefone fixo, o telemóvel, a campainha, fechou todas as janelas e persianas, trancou a porta de casa. Só saiu na véspera de Natal. Qualquer coisa dentro dele pediu-lhe um café. E ele acedeu, porque era véspera de Natal, porque haveria pouca gente na rua ao fim da tarde, porque estariam quase todos em casa a preparar o jantar festivo.
O café, entretanto, ou fora absorvido ou diluíra-se no meio do álcool e dos chocolates. E ele continuava a comer e a beber, embora o moscatel lhe soubesse pior, porque era demasiado doce para acompanhar chocolates. Acendeu um cigarro para desenjoar e tremeu de pânico quando ouviu um grito vindo da cozinha.
“Cheira-me a tabaco! Carlos? Anda cá imediatamente!”
Sabia que não podia fumar em casa, nem à janela. Não podia, aliás, sequer fumar ao pé da mãe. Ela sabia, mas não tolerava. Odiava. E falava, falava, falava. Que a roupa cheirava a tabaco, que o quarto cheirava a tabaco, que alguém abrira a janela da sala durante a noite e que só podia ter sido ele para fumar. E agora, idiota, acendia um cigarro em plena sala, dentro de casa, com a janela fechada. Não se ia safar desta.
Largou o cigarro no chão, quase intacto pois dera apenas uma passa, e pisou-o, deixando o pé sobre o cigarro para o ocultar. Esperou, mas ninguém apareceu. Nenhum outro grito chegou da cozinha. A casa permanecia às escuras. Só na sala uma luz vermelha piscava, iluminando parcamente uma mesa de centro coberta de bombons de chocolate que transbordavam para o chão, uma garrafa de moscatel, um copo, um chão imundo de chocolate pisado e uma beata e plásticos e caixas de chocolates e restos de whisky ou moscatel ou ambos.
Carlos foi ao mini-bar buscar uma garrafa de whisky ainda fechada, abriu-a e começou a derramar o líquido sobre o cortinado, o sofá individual, o chão. Depois sentou-se no sofá maior, bebeu pelo gargalo o resto que deixara na garrafa, e acendeu um cigarro. Fumou lentamente, observando no whisky derramado o reflexo das luzes vermelhas que piscavam na árvore de Natal.