Um novíssimo veterano
/Falar de poesia leva-nos quase sempre a falar de nós. A frase soa a lugar comum, a qualquer aforismo barato de redes sociais, mas se o enquadrarmos em determinados contextos é tão evidente quanto inevitável. É isso que sinto quando falo da poesia de Hugo Milhanas Machado, poesia que me está vizinha (roubando um certo sintaxe italiano aqui), mas sobretudo uma poesia que pude ver crescer ao longo dos anos. Sim, conheço o Hugo há mais de uma década; sim, tenho com ele uma forte amizade praticamente desde o primeiro dia; sim, no nosso percurso há muitos mais encontros que desencontros, como a Cooperativa Literária e callema, que valente e orgulhosamente erguemos com a malta, as bancas de poesia na FCSH e, caramba, porque não?, o Nauseabundo, onde nos divertíamos e conseguíamos chatear. Mas é esse percurso comum que nos faz tantas vezes ser mais críticos do que os críticos em si. Crescer, neste meio, é resistir a modas, a simpatias e sobretudo a clones. É saber encontrar a sua voz e não escrever com as mesmas palavras que já foram repetidas. É usar o léxico da forma mais simples possível mas também mais semanticamente cheia. Para mim isto é poesia e é o que o Hugo faz.
Dentro destas últimas palavras, Hugo Milhanas Machado – o poeta – é dos que mais me chama a atenção dentro na nova geração. O porquê pode levantar várias questões, mas será de consenso geral que a linguagem poética por ele apresentada é sem dúvida diferente e, mais importante, nova. É também um autor arrojado no sentido experimental, recorrendo a um léxico que não se encontra em mais nenhum poeta actualmente em Portugal, além de explorar muitas vezes campos semânticos que saem totalmente daquele que é considerado o cânone. Partindo de uma experimentação para uma concretização linguística totalmente nova, HMM pratica a ruptura não através da temática e da insatisfação objectiva, mas sim da linguagem. Rompe não só com as gerações anteriores mas também com aquela que será a sua própria geração. Tomemos como exemplo este seu novo poemário, Onde fingimos dormir como nos campismos.
Passados quase dez anos da publicação de Poema em forma de nuvem, a evolução na poesia de HMM é não apenas notória mas sobretudo admirável. Neste novo poemário encontramos um poeta muito maduro, muito seguro no seu ritmo e na arte poética. Tal como um baixista ou um ciclista, alguém que se mostra já calejado nestas andanças. HMM escreve aquilo que vê, como vê, mas também como o sente. E como sente constrói a sua linguagem não através de frases memoráveis ou versos que lembremos isoladamente: a sua poesia é una, são vários poemas divididos por capítulos mas que se podem ler como um único poema, um poema em continuação. Quando no poema “o encosto” se diz: “Mas a técnica melhora/ e sei acumular a maneira do gosto”, provavelmente a intenção não seria a de se definir a ele próprio, ou talvez sim. A questão que fica latente é a de uma poesia cerebral, ainda que humilde do ponto de vista da pretensão. Não quer ser, é. O querer ser não o faz ser. Ou como diz “outra pedra parecida”, “nenhuma voz se parte a falar”. Mas seria injusto para o leitor estar a desvendar interpretações que se querem tão pessoais, estar a retirar toda a possibilidade que uma língua pode concentrar nos seu aspecto físico.
Essa linguagem como possibilidade – pedindo o nome emprestado a um seu ensaio – colocam-no num patamar diferente e sobretudo faz dele o que de novíssimo nos oferece a poesia contemporânea em Portugal, ou aquilo que Joaquim Manuel Magalhães se referia no seu Projecto:
“O que pode ou não surgir como novo, como muitos muito bem sabem, não depende estritamente da vontade de produzir o novo e ainda menos da aprendizagem de como produzir o cânone do novo de uma determinada época. A novidade é um condicionamento que rompe dos contextos tornado dominantes de toda uma realidade epocal.”[1]
Este ensaio escrito em 1989 já apontava para alguns problemas que iriam subsistir, e talvez ainda subsistam, como por exemplo o do excesso prosaico na poesia de então e que se tornou um modelo para os anos que se seguiram. Esse verso livre, verso em prosa, teria de ser substituído pelo fulgor e pujança da silaba métrica, ou como lhe chama Magalhães, do “equilíbrio polifónico” que marcasse a diferença. Recorrer à tradição para romper com a modernidade. Passados quase 25 anos não encontro melhor justificação do que esta para dizer o porquê de Hugo Milhanas Machado ser algo de diferente. Algo novíssimo.
[1] Joaquim Manuel Magalhães, Um pouco da morte, pág. 175, Editorial Presença, Lisboa, 1989.