A cabeça

Christopher Pratt, Woman at a Dresser, 1964

Christopher Pratt, Woman at a Dresser, 1964

Hans sentou-se à secretária. A secretária ficava em frente à janela, que dava para a rua. Em frente ficava uma igreja e uma fila bem construída de casas térreas. Estava a chover e um exército de mães passava com os filhos pela mão, as crianças de uniforme, debaixo dos chapéus de chuva negros. Naquela semana, tinham-lhe encomendado um artigo sobre poesia para sair no jornal Kuntsprache. Hans passara a semana a ver vídeos de jovens poetas que comentavam os seus poemas, e falavam de como entendiam a poesia na sua geração. Uma jovem de cabelos louros fitava a câmara com um olhar melancólico e baço e declarava, a poesia para mim é o lugar zero, o sítio negativo. Outro dizia, não consigo ler tudo, que há coisas muito más e eu próprio (engolir em seco, esbugalhar os olhos) sou uma merda. Vai acabar, dizia um rapaz borbulhento com uma fedora posta. Hans suspirava e o olhar começava a subir para a janela, como um homem atirado para um poço que de repente olha para cima. Havia o vídeo de Joachim. Joachim Haussman tinha sido educado na Escola Judaica e depois na Universidade Livre de Berlim. Joachim discursava encolerizado contra o que Luuk Linz, poeta e professor de escrita criativa em Munique, dissera sobre os jovens poetas alemães. Joachim não concordava com ele, mas também não facilitava o trabalho de Hans, que não fazia a mínima ideia do que dissera o Professor Linz e não conseguia entender a cólera de Joachim. No vídeo, Joachim exibia uma barba comprida e, uma vez fechando a boca, um sorriso confiante, agradável. Pensativamente, Hans afiou o lápis no apara-lápis. Enquanto dava distraidamente à manivela, o gato veio enrolar-se-lhe nas pernas. Havia uma nuvem no ar, cinzenta, amarela, azul. Hans de nariz no ar pardo. Tentava encontrar um padrão e percebeu que ele só podia assentar na sua perspectiva, que ia ser sempre subjectiva e portanto passível de ser atacada. Hans na verdade queria que o deixassem em paz para poder trabalhar no seu novo ensaio, The Meaning of Being a Party Animal in Dostoevsky’s Last Novels.
Agora havia uma criança que chorava na rua e duas vozes de adultos tentavam acalmá-la. Hans pensava que havia qualquer coisa nas nossas emoções mais básicas, mais presentes, que era disciplinado pela arte, conduzido, como electricidade por um fio de cobre, como os pais levam os filhos pelas mãos à escola. Tinha-se dedicado a pensar sobre isso. Cada vez mais percebia que era o contrário. Os poetas de que mais gostava não o acalmavam, não o levavam pela mão, não era consolo o que lhe ofereciam nem lhe davam vontade de desatar a arrumar a casa ao domingo. Davam-lhe desassossego. Como sair à noite numa cidade que não se conhece e não saber o que vai acontecer nem saber o quê ou quem esperar nem sequer saber voltar ao lugar onde se está a dormir. Nem saber porquê esta angústia, o que se está à espera, como aquela personagem do Kundera que tendo escapado de Praga resolve voltar.
O que é um homem? Não é o que está à superfície. Esta coisa vaidosa que atira umas frases para a frente de uma câmara. Não é mesmo a superfície visível dos seus pensamentos. Eu sou muito melhor pessoa do que aquilo que pareço. Calado sou mesmo um amor. Se abro a boca e começo a falar, deviam fuzilar-me. Assim, se lhe perguntassem, a resposta não é o que seria a sua resposta mas o que Hans poderia responder. Hans diria, um homem é a sua arte. Mas Hans vive sozinho num apartamento e escreve artigos para jornais. Para Hans o que é um homem é um pensamento agradável, um desafio académico, uma oportunidade para dizer umas frases inspiradoras e agradáveis. Para mostrar que lhe dá para ser inteligente.
No dia em que perdeu o emprego, Teresa chegou a casa, atirou-se para cima da cama e adormeceu completamente. Acordou a meio da noite e tentou acender a luz.  Tacteou à procura do candeeiro e os dedos tremiam-lhe. Pensou, estou com medo. Virou-se no escuro. Pensou, estou com medo porque imagino que tenho um futuro e porque imagino que ele me importa, que tenho um papel a cumprir, é por isso que tenho medo. Nada é tão íntimo, tão próximo, nada me conhece tão bem como o medo que estou a sentir agora. O meu medo liga-me ao meu futuro e de alguma maneira afina a minha dignidade. Mas é perverso isto, que a minha dignidade dependa de uma mistura de medo e de uma ideia de futuro que acontecem as duas exactamente aqui e agora. Do outro lado do meu medo, neste exacto instante, está a minha paixão, que agora é como um sofrimento.
Ninguém gosta de ter este tipo de pensamentos. De imaginar este tipo de frases. A língua mexe-se, um som articula-se e é como se a última fala, a última memória, se perdesse para sempre. Desfazendo o que se fez, matando um lugar, pode ser um trabalho ou uma frase ou um homem, nunca mais se volta. Tu não sabes como és mas estás e é por isso que sabes que tens existido. Acendeu a luz e abriu o livro, puxou o lápis da mesa de cabeceira.
Como uma papoila pesada com as suas sementes e com os seus frutos que é martelada pela chuva e com o peso cede. Foi assim que Gorgythion morreu, a sua cabeça precipitou-se de lado, inteira, sob o peso do capacete. Ele caiu como um ciclista. Quem raio era Gorgythion? O que é que isso importa? Não se sabe quase nada acerca dele, tirando que é morto por uma seta de Teucro no livro oitavo da Ilíada e que a sua cabeça se dobra como uma papoila debaixo da chuva primaveril. Se perguntarmos quem é Gorgythion, a Ilíada aponta para trás, diz-te: Gorgythion é um dos filhos de Príamo. Como é que eu sei o que é Gorgythion sabendo que é um dos filhos de Príamo? O livro oitavo da Ilíada é um não lugar. A Ilíada é um texto completamente sozinho que não nos pode contar a sua história. Atira-se-lhe uma pergunta, quer-se saber como ou porquê e o passado de repente é tão impossível como o futuro. Luzes a apagarem-se sucessivamente e nada se entende e não se consegue perceber como sair. Abrimos o livro no livro primeiro mas nunca vamos sair do labirinto. Não estamos entretidos porque vamos ficar sozinhos com todas as nossas perguntas. A única coisa que se pode fazer é amar a arte. Não há qualquer escolha, não existe nada fora disso. Ela vira a cabeça, olha mecanicamente para a parede, vê a sombra do rosto recortada na parede e pensa “podia ser a minha cabeça”.