Um excerto de «Impunidade»

impunidade.jpg

« Avançámos até ao fim da avenida e continuámos pela cidade velha. Demorei a encontrar a saída. À medida que avançava, o carro mergulhava num dédalo de ruas estreitas e sentidos únicos, onde cada opção parecia conduzir a um interior mais profundo, a uma rua ainda mais apertada, a um lugar mais distante de qualquer princípio de organização. O rapaz olhava alternadamente para mim e para as ruas que diante de nós se iam contraindo, com os muros cada vez mais colados às rodas do carro. Via-me prosseguir pelos empedrados, hesitar nos cruzamentos, continuar nos sentidos obrigatórios. Fixava o fim da rua, parecendo duvidar que o carro aí coubesse, voltava-se para mim. De um lado e do outro, paredes brancas, janelas com grades, portas fechadas. Levantava-se no banco e espreitava para trás, como se suspeitasse que a única saída viável fosse meter a marcha atrás e refazer, invertido, o percurso que ali nos conduzira. Metro a metro, centímetro a centímetro. Refazer o caminho, refazendo as dúvidas e as hesitações, e assumindo o erro de ter pretendido optar onde não havia opção. Tarde ou cedo acabaríamos numa rua barrada por um muro caiado. Continuámos ainda durante mais vinte minutos. Um percurso circular. Reconhecia as ruas, os edifícios, os empedrados. Por fim, ele sugeriu que deveríamos parar e perguntar a alguém. Respondi-lhe que não perguntava.
«Nunca.»
Acenou com a cabeça. Talvez compreendesse. Acelerei. Minutos depois acabámos por desembocar junto do rio, não muito longe da ponte romana. Nenhum de nós disse nada. Contornámos os bairros antigos e apanhámos as avenidas novas. Duas faixas em cada sentido.»


Impunidade  (Relógio d' Água, Lisboa, Junho de 2013), de onde foi extraído o excerto que aqui se apresenta, é o mais recente livro de H. G. Cancela