O escuro

André Kertész, Young Man Seated Near Window, Martinique, 1972

André Kertész, Young Man Seated Near Window, Martinique, 1972

 

ou que escrever um poema que não podes ler a ninguém
é a mesma coisa que dançar no escuro.

Ovídio, Cartas do Ponto, 4.2.33-4[1]

 

Sexta-feira à tarde. Agosto. O silêncio suado e sonolento da biblioteca é violentamente interrompido pelo barulho de alguém a ressonar. Depois de horas a ler, Roberto levantou-se disparado do seu lugar, arrumou o computador à pressa, atirou também o estojo e um caderno para dentro da mochila, deixou para trás outro caderno, a caneta e dois livros. Daniel passou umas quantas vezes pela mesa do colega. As últimas notas escritas no caderno que ficou para trás, aberto numa página com uma letra gatafunhada, quase ilegível, contêm indicações de bibliografia, mas nenhuma nota faz alusão à fase do trabalho em que Roberto se encontraria antes de desaparecer.
Quem tivesse seguido Roberto ao sair da biblioteca, tê-lo-ia visto também atravessar a rua em passo acelerado, correr por pátios e jardins e atravessar a eito por dentro do cemitério, mesmo por entre as campas. Roberto não ia a correr, antes dardejava. Em dez minutos estava a galgar a escada do instituto, a subir ao primeiro piso e a bater desesperadamente à porta da professora M., for Murder, acrescentaria um dos seus estudantes com um sorriso sardónico, aludindo assim à alcunha que a popularizou entre a maior parte dos seus alunos e que, como sói ser o caso neste negócio das alcunhas, os seus discípulos também ajudaram a popularizar. A alcunha derivava tanto do hábito da professora de se assinar com a inicial, M., quanto à memória nevoenta de um sangrento acidente ocorrido em inícios da década de oitenta, em circunstâncias por apurar, mas aparentemente envolvendo dezasseis musaranhos e uma quantidade (também por apurar) de whisky e cocaína.
Roberto bateu à porta do gabinete. O suor escorria-lhe pela nuca. A professora M. atirou um indiferente “entre, se faz favor”. O gabinete era um lugar confortável mas não confortável em excesso. Numa das paredes havia um poster de um musaranho com um capacete de mota, especulava-se que talvez uma alusão ao mítico acidente ocorrido em inícios da década de oitenta, musaranhos, whisky e cocaína, e esta, se bem me lembro, era toda a decoração pessoal que o discreto gabinete albergava. De resto, as paredes estavam forradas de estantes, havia uma secretária com um computador e, a um canto, uma mesa redonda com três cadeiras. M. pareceu espantada de ver Roberto entrar-lhe esbaforido pelo gabinete. É mais ou menos claro que ela não consegue reconhecer o rosto, mas consegue mais ou menos entender que pela idade se trata de um estudante já graduado, as probabilidades de ser um orientando seu são elevadas, e portanto o assunto terá de ser de tese, pelo que

Desculpe, esta não é a sua hora de orientação. Eu compreendo, escrever uma tese é desgastante, emocionalmente até, etc., e como dizia o Philip Roth é preciso uma certa resistência física para levar isso a bom porto (não teses, escrever, o Roth estava a falar de escrever, que não é o mesmo mas é igual) só que o senhor não se pode, lá está, tornar dependente emocionalmente, o que é sugerido pelo facto de aparecer por aqui sem hora marcada, como se isto fosse um café. O meu amigo note que não é o caso de eu ser sua mãe. Hierarquias, por favor. Envie-me um email, eu entretanto respondo. Vá. Sus. Xô.

Roberto engole em seco.

A senhora professora desculpe, mas...

Não lhe desculpo rigorosamente nada. Envie-me um email. Marque uma hora. Tornamos a falar daqui a um mês, depois de eu voltar do meu congresso na Grã-Canária. Pisgue-se daqui. Não lhe garanto que tenha os capítulos da tese lidos entretanto. Provavelmente não terei. Estou muito ocupada. Muito trabalho. E não conte que lhe responda ao email em menos desse tempo. O senhor aparecer-me aqui desavisado é falta de respeito. Falamos agora sem termos marcado uma reunião e depois como é? Ainda um dia destes dou consigo a enviar-me emails a pedir bibliografia, com dúvidas de índices ou parágrafos. Era o que faltava. Ainda passava a ter de acompanhar regularmente o seu trabalho. Não tenha ideias, que eu digo-lhe já que não vai acontecer.

Roberto reprime uma lágrima ao canto do olho, um talento difícil de aprender. Roberto pensa na geração dos seus antepassados, os que foram mandados para a guerra, voltaram com hábitos de caserna, meio estropiados, para ele acabar a entreter este tipo de conversa, para mais com uma mulher com um gosto duvidoso em termos de camisas e sapatos (os padrões de bichos).

A senhora professora desculpe, mas a minha investigação chegou ao fim.

O que é que o meu amigo quer dizer ao certo com a sua investigação chegou ao fim? Bolsa, prazo, como é? O meu amigo está com pressa de ficar sem trabalho, ou quer passar o resto do tempo que falta a preguiçar? Toda a gente sabe que escrever doutoramento não é trabalho. Vá mas é para a biblioteca ler mais um bocado.

Bom, senhora professora, o meu trabalho chegou ao fim. Acabo de encontrar os últimos dados que provam o meu argumento principal. Neste preciso momento, estou em condições de demonstrar que um touro não é um leão. Na verdade, acabo de redigir as minhas últimas notas para o capítulo final.

Como um touro não é um leão? O senhor está doido? Anos de pesquisa feita por mim provaram para lá de qualquer dúvida que um touro é um leão. Está a brincar comigo.

Silêncio. Roberto gagueja, titubeante.

Caríssima senhora professora, garanto-lhe que analisei um elevado número de contextos em que ambos os termos surgem, eles nunca aparecem como sinónimos e há pelo menos um contexto em que aparecem em clara oposição.

M. torna-se vermelha, cada vez mais nervosa:

São precisos pelos menos três exemplos para você poder argumentar que é um padrão.

Senhora professora, eu posso não ter encontrado ainda mais dois exemplos de clara antinomia, mas garanto-lhe que os contextos nunca são sinónimos. A oposição é clara, um touro não é um leão, eles nunca são utilizados como sinónimos.

A professora M. levanta-se da cadeira, as mãos tremem-lhe, as pupilas estão dilatadas.

Não é possível. Nas civilizações do período Micénico era a suprema prova de coragem, o homem atirar-se para a frente de um touro. O conflito entre o homem e a besta. Entre as forças racionais e irracionais. O gesto heroico do homem que se desenha e assim se reapropria da sua própria humanidade. Se o touro não é um animal equivalente ao leão em ferocidade, todo o significado do gesto simbólico é esvaziado. O senhor está a negar as evidências dos frescos de Cnossos? Não, o senhor está enganado. Certamente está enganado. São precisos mais dados. Muitos mais dados. Volte para a biblioteca.

Senhora professora, eu não preciso de esgotar todas as fontes. Os dados que reuni até este momento são suficientes para demonstrar o meu argumento.

A professora engole em seco, levanta-se da secretária, avança ameaçadora na direcção de Roberto, atira-o contra a estante e beija-o apaixonadamente. Os óculos entortam-se na cara de Roberto. Mão sobe pelo contorno da saia. M. ergue ligeiramente a perna, atira um sapato para um lado, fica desequilibrada no outro. Roberto rasga-lhe a meia, rasga-lhe a saia, morde-lhe o colarinho da camisa, puxa-a contra a estante. Beija-a nos lábios. O retratinho do musaranho cai pudicamente da parede (a gravura tapa os olhos com as patinhas).

Muitos anos depois estamos em Itália, eu e Daniel, a entrar num carro em Ferrara para seguir para Palermo. Maio, muito calor. Nenhum de nós está já habituado a este tempo. Atirada para a melancolia de um blazer azul escuro, para a perspectiva de treze horas de viagem feitas durante a noite, com o mau gosto musical de Daniel, ainda a ter de fazer a última leitura da minha comunicação (“The meaning of being a party animal in Dostoevky’s last novels”, em co-autoria - Hans, o co-autor, ainda não conhece o conteúdo do ensaio) vejo a tarde a vir sobre a rua. Conheço bem esta rua, se bem que não há muito para conhecer, segue a direito e como todas as ruas em todos os outros lugares do mundo, atravessa de um lugar a outro unindo vários pontos que só são do interesse de quem quer ir de um a outro ponto que nela haja.

Há uns dois ou três anos nesta rua, Giorgio voltou-se. Estava em bicos dos pés, a cabeça girou em todas as direcções. Penso que prefiro que não me veja. Sinto alívio. Nem sequer secretamente. Como uma grande maré, um tsunami. Um alívio limpo e triste. Um homem pode dizer uma palavra qualquer e o peso de um tom cair sobre ele como um longo inverno, uma faca afiada, uma noite instantânea de duração indeterminada. Estar vivo mantém-se perigoso mesmo para os que alcançam a paz, se o interesse chega ao pormenor do vento a assobiar entre um caule e a pedra. Basta uma ideia estar lá. Nem que esteja a dormir. Uma imagem boa é a da centelha adormecida entre as brasas. A boca de um homem pode rebentar como uma flor ou com uma ferida mas nada se repete nunca mais. Os poetas romanos eram diligentes a apontar pormenores delicados, escrever versos perfeitos, dizer que limavam os pormenorzinhos com o cuidado e paciência de quem lima uma coisa a pedra-pomes. Alguns dos melhores poemas incluindo a palavra “caralho” foram escritos por poetas romanos no séc. I. Há gente perigosa para tudo, querido Giorgio. Mulheres que dizem algumas palavras e que se tornam aquela rapariga estranha que despreza o casamento e os labores domésticos, Ártemis que carrega muitas setas e tem cães de caça (para despedaçar os rapazinhos bem parecidos). Mas não era este o caso de Giorgio, que pelo que era perigoso sentia a atracção dos bons, isto é, a maluquice do bicho pela luz. O que é a luz? Esta coisa sem peso e acesa no meio do sangue, prestes a explodir de calor nas têmporas. As coisas que habitam os nossos sonhos são feitas de luz. Giorgio não ia morrer ainda, nada de mal podia acontecer e havia muita gente a sair do trabalho, pequenos grupos de homens e mulheres erravam ao longo dos muros pintados de cor-de-rosa. Grupos de miúdos vadiavam, dois deles brigam por causa de uma pipa. Empurrões. Pontapés nas canelas. Um rapaz com quinze ou dezasseis com um casaco de ganga e ténis vermelhos passou com um cigarro na boca. O mundo vai estar sempre cheio de gente disposta a dançar no escuro e vai sempre haver amendoeiras em flor ao longo dos passeios. É possível perceber o amor das pessoas a acender-se no escuro e sentirmo-nos em casa. Os seu sacrifícios cheios de cuidado, polidos a pedra-pomes. Em quase todas as cidades de noite é possível estar em casa, tirando talvez em Londres. Viro-me para Daniel e pergunto-lhe

Olha, o que é feito do Roberto?

Uma gargalhada enche a rua.

Formas de beleza condensam-se como ossos na inteligência e a solidão do homem que escrever sozinho, como um corredor de maratonas, como um remador, será para ele um consolo. Não é uma mentira isto. Felizes os que aprendem a dançar no escuro. E aqueles que foram rápidos a perceber que a única inteligência que importa é a amadora.

 

 

 

[1]{C} sive quod in tenebris numerosos ponere gestus/ quodque legas nulli scribere carmen, idem est.