Questão de estilo I (Charles Bukowski)

“Style is the answer to everything.
A fresh way to approach a dull or dangerous thing
To do a dull thing with style is preferable to doing a dangerous thing without it
To do a dangerous thing with style is what I call art

Bullfighting can be an art
Boxing can be an art
Loving can be an art
Opening a can of sardines can be an art

Not many have style
Not many can keep style
I have seen dogs with more style than men,
although not many dogs have style.
Cats have it with abundance.

When Hemingway put his brains to the wall with a shotgun,
that was style.
Or sometimes people give you style
Joan of Arc had style
John the Baptist
Jesus
Socrates
Caesar
García Lorca.


I have met men in jail with style.
I have met more men in jail with style than men out of jail.
Style is the difference, a way of doing, a way of being done.
Six herons standing quietly in a pool of water,
or you, naked, walking out of the bathroom without seeing me.”

Charles Bukowski

Como enxertar especulativamente este poema? Não terá ele quase esgotado o nosso entendimento sobre o estilo? Claro que se pode escrever ainda uma biblioteca inteira, ela está com certeza, aliás, a ser escrita, prossegue-se o incansável preenchimento de estantes sobre o estilo (também porque temos horror ao vazio). Mas ao mesmo tempo parece que nada consegue confrontar-se, em agonismo ou reverência, a este vitalismo poético. Bukowski (soube ontem que infelizmente está na moda) é aqui um repórter selvagem abrindo a lata de sentidos que o assombram, a ele e a um entourage pós-Beatnik. Não como profilaxia, antes para radicalizar mergulhos de apneia em buracos negros, talvez à procura da pureza da luz. Outra forma de vertigem Iluminista.

Volto à pergunta: “como continuar especulativamente este poema?”. Justamente, especulando, suplementando-o com a arte burguesa da explicação, do comentário, da alternativa racional, impondo Apolo a Dioniso. É preciso acalmar a tempestade, só quase Leibniz preferia o mar aberto ao porto seguro.

Este esclarecimento afigura-se como uma torção desajeitada à linha lógica, ou estética, que obrigaria ou a pôr Bukowski fora de jogo ou a deixá-lo brilhar a solo (estrela dançante dominando fatalmente a constelação). Mas este poema, no interior e exterior, é a melhor das epígrafes para se falar do estilo porque: 1) fará um vigoroso contraponto, invencível, quem sabe, ao que disser teoricamente a partir de agora; e 2) é ele próprio uma amostra perfeita de um acto de “estilo singular”.

Por outro lado, guardo Friedrich Nietzsche, a sua ideia de “grande estilo”, para outra oportunidade. Hoje mantenho-me numa via de pensamento bastante dufrenniana.

I

Quando se sofre de necessidade classificativa dizem-se duas coisas sobre o estilo: 1) será um sistema de códigos, prescritos ou inventados, usados para a produção, certa produção, de uma obra; 2) ou uma propriedade qualitativa, virtudes estéticas do estilo. Em ambos os casos, ele designa um trabalho produtivo, agenciador de objectos através da sobre-codificação (cf. infra).

II

Numa divisão simples, o estilo pode ser colectivo ou singular. No primeiro caso, trata-se sobretudo de generalizar e classificar, apontando para uma obra, corrente ou época; no segundo, acentua-se a transgressão do sistema, realçando a criatividade individual, que beneficia, em ricochete, das forças singularizadoras que originou. As obras menores são padronizadas (sem grandes marcas do autor na obra, pelo menos não são escritas a sangue, como queria Nietzsche), e parece haver mesmo actividades menores que não suportam a intrusão do estilo, isto é, a transgressão das regras que constituem o seu género (telenovelas, música pimba, literatura de cordel, cinema mainstream...). Para Roland Barthes, Le Degré zéro de l’écriture, o estilo constitui uma linguagem autártica, onde apenas se revela a solidão do escritor; funciona como uma obrigação vital, o estilo dos escritores é a única maneira de existirem na escrita. Neste sentido, o estilo é uma força individualizadora, e talvez isso seja o essencial. Quando nos servimos de códigos já estabelecidos, instituídos e ensinados, desenvolve-se um “estilo impessoal”, espécie de contradição nos termos.

III

Proust, na La Prisonnière, escreve que o estilo é “Essa qualidade única desconhecida do mundo, e que nenhum outro músico a tinha oferecido. […] Daí, dizia eu a Albertina, ser a prova mais autêntica do génio, bem mais do que o conteúdo da obra.” Ter estilo é, pois, afirmar-se como ser excepcional, e para isso é preciso dominar a técnica de produção e ser capaz de desenvolver uma linha rara de sentido. Esta raridade impede muitas vezes o entendimento imediato, mas mantém-se viva à espera de horizontes de expectativas adequados. Com o reconhecimento arrisca-se, todavia, a ser perseguida pelo beijo da morte da moda, um inimigo pelos menos tão perigoso como o silêncio receptivo.

IV

Pertencerá o estilo mais à obra ou ao autor (função-autor)? Se for autêntico (perceba-se isto intuitivamente), o estilo não é uma forma de expressão narcísica do autor, um exibicionismo patético, a consumação de uma paixão por si mesmo, ou um dar-se a conhecer mediático. Mais do que o autor, é a obra que o exibe, nela, e provavelmente só nela, estão inscritos os traços do trabalho singular que a produziu, o criador, como diz Mikel Dufrenne, não é mais do que o filho das suas obras.

V

Vimos já que o estilo recusa o estereótipo. É verdade que se fala em estilos, linhas de produção, sobretudo estéticas, pré-estabelecidas, receitas oferecidas aos autores para se enquadrarem numa determinação estilística geral. São códigos a priori que orientam a produção, como o daquele bestseller que não vendeu. Se esses códigos forem, pelo contrário, forjados a posteriori, remodelados ou inventados pelo artista, então aquele estilo colectivo torna-se pessoal, pelo menos até ele ser disseminado pelo mundo da arte ou apropriado e dissecado pelo academismo. Por outro lado, em cada arte há sempre alguma codificação a priori, definindo o seu campo de existência, que nem o pós-modernismo promotor do trans-artístico, como no caso das Instalações, conseguiu anular. Mas estas só são constringentes dentro do jogo normal da produção artística, não anulam a possibilidade da transgressão e invenção. Aliás, a codificação a posteriori tem de começar por transgredir algo, a novidade só aparece na condição de se apropriar e desobedecer ao estabelecido e dominante. Mais, talvez a modernidade artística seja mais desconstrutora do que construtura (falta-nos irremediavelmente o optimismo das épocas ingénuas).

VI

Hoje, a noção de estilo aplica-se a um campo mais vasto do que o do conjunto das artes tradicionais. Em todas as áreas produtivas, e até na própria produção de si mesmo (ou de outros animais, como escreve Bukowski), onde objectos ou pessoas escapam às codificações rígidas do a priori, onde há a possibilidade de uma desconstrução e reconstrução a partir de códigos singulares, trazendo um suplemento de sentido, aí há estilo. Os únicos objectos sem estilo são os resultados estereotipados da produção em massa, reféns de condições de existência rígidas, prévias à sua emergência; as pessoas sem estilo, a maioria, tem de ser, são aquelas que seguindo a moda por excesso de zelo estético ou vestindo por pura preocupação pragmática, comportando-se de acordo com modelos mediáticos ou não tendo qualquer zelo estético, se auto-impõem uma receita que não lhes pertencem ou não têm qualquer código que espiritualize o seu modo de existência (a que, por tudo e por nada, se chama “estilo de vida”).

VII

Neste sentido, ao singularizar a sua escrita e o seu modus vivendi, Charles Bukowski foi um sobre-estilista. Mas vive em tempos sombrios, a força incontrolável da divulgação, o apetite por uma arte bruta, híper-realista, decadente... faz correr milhares de neófitos atrás do seu estilo, ele que escolheu como epitáfio: “Don’t Try”.

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