Maré Baixa

Ele está sozinho num museu. Os traços que faz no papel são finos e múltiplos. Tem sete anos e risca o papel sentado sozinho num dos bancos do museu. A parede guia os olhos em direção ao teto muito alto e cheio de claraboias. O salão é vasto e recheado de quadros. As paredes são brancas. Os traços no papel começam a se avolumar e a dar forma, esta ainda indizível.

Ele está sozinho no museu. Ele tem sete anos e usa meias compridas que lhe cobrem as canelas. As pessoas passam vagarosas pelo salão, parando, observando, sussurrando umas para as outras sobre o garoto sozinho desenhando. Alguém teme que ele use o lápis para riscar algum dos quadros. Alguém diz que a mãe do garoto deve estar preocupada. Alguém se espanta com a cor absurda dos cabelos do menino, mas só comenta com os olhos. Alguém pergunta se ninguém chamou um dos seguranças. As pessoas passam pelos quadros.

Esfrega o nariz com a palma da mão, sem levantar a cabeça, os olhos presos no papel. Esfregará até que se torne uma mania, esta que marcará o nariz por todo o tempo que há de vir. As estátuas espalhadas pelo salão representam a perfeição. Os traços são delicados e exatos, não há falhas, estão todos no lugar onde deveriam estar. Como se pairasse no ar de sua existência um instinto de dever. Ele não olha para as estátuas, é apenas um garoto, tem apenas sete anos, não quer saber de perfeição.

O banco é de madeira lisa e escura, está no meio do salão. O menino de cabelo espantoso está sentado no banco, seus pés não alcançam o chão e suas pernas balançam. É quase uma inquietação, mas é expectativa. A mão segura o lápis molemente, quase no meio, e escorrega pelo papel fazendo um ruído suave. O lápis na mão mole do menino acaricia o papel e deixa marcas. As marcas são uma multidão expectante, querendo ser completas, querendo ter um propósito. A imagem começa a se formar através dos riscos.

Ecoam os passos das pessoas no assoalho de madeira. As pessoas andam e olham os quadros, olham o menino sentado, sussurram, se espantam, andam. O movimento da multidão é quase uma rotação pelo salão. Na mente dele as pessoas brincam de ciranda e cantam suaves as palavras da cantiga. As palavras soam como uma prece, como se fossem mais antigas que o salão, como se fossem mais antigas que o ar e a poeira que paira. Rodam e olham para ele, e o rejeitam da brincadeira. O lápis toca o papel e ele não sente a rejeição. A mão esfrega o nariz e a brincadeira continua, e a imagem se forma.

Ele não levanta os olhos quando o desenho está completo. Mas o cirandar se rompe, algo quebra a ordem do universo, o salão silencia de súbito. A figura é circular e confere outro círculo em si. Um círculo é vazio, há o branco do papel e da parede em seu interno. Um círculo é completamente negro e não há nada dentro dele. Há traços externos aos círculos. O silêncio é rompido, o encantamento se quebra. Ruído de passos na direção dele. Um suspiro pesado. Mãos outras tiram o papel de sua mão, seguram o papel e uma das mãos e o puxam sem palavra alguma. Ele está sozinho num museu.

 

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