Niilismo 2/c.10 Refugiados e experimentação existencial

A actual massificação de migrações (na maioria, humanos à procura de refúgio), tenha as causas que tiver, alimenta-se de um enorme sofrimento (marcado em cada singularidade, em cada “rosto”, diria Levinas), que a maioria dos ocidentais desconhece. Isto bastaria para nos sentirmos imediatamente obrigados a receber quem nos procura. Referem-se, todavia, ameaças ao nosso estilo de vida. Claro que sim! Como dizia Jacques Derrida, a verdadeira hospitalidade é aquela que se abre também ao perigo, àquilo que é hostil; devemos, pois, combater o nosso conservadorismo, cultural e biológico (o cérebro não está preparado para todas as propostas morais racionalizadas). Temos de nos forçar a correr riscos se queremos ser moralmente consequentes com o humanismo, cristão ou secular, que convocamos frequentemente como marca da nossa identidade, e da nossa superioridade moral. Pelo contrário, não perco tempo com o argumento utilitarista do declínio demográfico europeu: a biomassa humana tem de diminuir para haver uma certa sustentabilidade ambiental, não é, portanto, por uma questão de reposição de rácios demográficos “economicamente sustentáveis” que defendo o acolhimento dos migrantes.

Compreendo a angústia dos que vêem erodir-se o Estado Social pela inversão da pirâmide demográfica, mas, para mim, o niilismo social está antes na sócio-unicidade, uma formatação tendencialmente homogénea que sucedeu à falência das velhas polarizações ligadas ao racismo social (extremado na luta de classes, sobretudo por motivos económicos, e na separação higiénica entre alta e baixa cultura). Isto não significa que a pobreza tenha desaparecido, muitos estudos mostram que ela persiste em cerca de 20% da população portuguesa (uma enormidade; é, aliás, decisivo pensar alternativas governativas onde a pobreza de alguns não seja a contrapartida sistemática da abundância de outros). Também é visível a não miscigenação das culturas, basta ir aos Dias da Música no CCB ou a uma ópera no São Carlos (e, inversamente, às festas populares de aldeias e bairros, embora frequentadas por alguns etnólogos amadores à procura de comportamentos primitivos – receio que saiam desiludidos). Apesar dos muros, sociais, culturais, económicos, psicológicos, emocionais, linguísticos... há um simulacro de unidade que produz a amálgama culturalista que parece formar o horizonte da portugalidade.

Mas em vez de insistir na melodia contestatária contra as forças que mantêm a sociedade refém de princípios baseados na desigualdade (já o referi, eles são inegáveis e devem mobilizar a construção de discursos de razão, uma nova Crítica, mas é também preciso dizer: foi algo que, de uma forma ou de outra, todos escolhemos) quero denunciar as alienações, muitas quase-voluntárias, que trazem a nossa existência sempre condicionada pelo exterior (do Primeiro-Ministro a Angela Merkel, passando pela falta de electricistas ou de pintores contemporâneos confiáveis), parece impossível viver a nossa vida como uma experimentação vital que decidimos ter. Um dos grandes niilismos sociais actuais, talvez não o maior, mas com certeza o mais esquecido, e por isso o menos discutido, é termos deixado de experimentar a nossa vida como procura de liberdade. E para isso seria necessário reforçarmos a ideia de experimentação, não como uma simples heurística, mas ancorando-a no núcleo da subjectivação, isto é, do processo de formação do sujeito, que é sempre feito intersubjectivamente e num contexto social e ambiental. Não se trata de uma simples maiêutica, mas de um tornar-se-indivíduo, processo ao mesmo tempo singular e impossível de realizar sem cúmplices: amigos, família e círculos sociais mais alargados de desconhecidos que apoiem algumas aventuras sociais. Ela é ao mesmo tempo singular e colectiva, a livre experimentação existencial requer uma colectividade de experimentação (num comunitarismo aberto).

Ora, o horizonte de sentido actual é o de um capitalismo produtivista e consumista assente na máxima valorização dos capitais financeiros e na utilização massiva de recursos naturais não renováveis. Alimentado por um endividamento (financeiro e ambiental) que coloca imperativos de crescimento que reduzem as possibilidades de experimentação existencial (não há folgas para desvios, é preciso “ganhar a vida”). Isto alimenta o que alguns chamam “indigência reflexiva”, uma carência partilhada pelos materialmente pobres e materialmente ricos. Por isso, lutar contra a pobreza material sem resolver o problema da indigência reflexiva reforça os constrangimentos do capitalismo rudimentar. Mantemo-nos, pois, numa monocultura constringente, incapazes de pensar, sem ridículo, além do produtivismo e do consumismo.

No entanto, sabemos que, em analogia com a biodiversidade, a sociodiversidade foi sempre decisiva para a saúde dos sistemas sociais, económicos e políticos. Todas as culturas endogénicas declinaram ou morreram. Ora, há inúmeras evidências sobre o momento crítico que atravessamos, o colapso político do Médio Oriente e parte do Norte de África, a sobre-população, o pico da produção de petróleo, o aquecimento global, os elevados índices de poluição, a perda de biodiversidade, o redução do capital de esperança... em resumo, o declínio da civilização industrial, alicerçada no capitalismo produtivista e consumista, parece irremediável. Aumentam, por isso, as vozes que rejeitam a possibilidade de um crescimento ininterrupto do PIB; não é, aliás, possível crescer indefinidamente a partir de recursos naturais finitos. Vivemos numa era de escassez que nos obriga a reflectir sobre os nossos habituais estilos de vida. Num pano de fundo de decrescimento involuntário, a nossa e, sobretudo, as próximas gerações deverão criar modos de vida mais sóbrios. Há uma necessidade de frugalidade, de desenvolver estilos de vida que exprimam o esplendor fora das normas da opulência capitalista. E com isto inverter o niilismo actual numa afirmação de novos sentidos para existências mais felizes, desconectando o consumo e a luta pelo reconhecimento social das emoções afirmativas.

Receber generosamente os migrantes que agora assolam à porta do continente mais hospitaleiro do mundo é um imperativo ético que não pode ser sufocado. Devemos isso aos nossos próprios ideais humanistas. Mas ao mesmo tempo, temos de desenvolver uma “arte da existência” (como lhe chamava Michel Foucault) que enquadre esses novos europeus e a nós próprios numa sobriedade consumista e numa renovada e voluntária igualdade social, devemos consumir menos para produzir menos e ser mais fraternos. Só assim haverá “desenvolvimento sustentável” (mais ético, social e ambiental do que económico).

Duplo desafio ligado pela oportunidade que a vinda de novas culturas pode dar à renovação da experimentação existencial, não para criar sistemas multiculturais que funcionam exclusivamente como soma de monoculturas (em geral é uma “soma de valor zero”), mas reais vias alternativas à ideologia capitalista que vive despreocupadamente a delapidação acelerada dos recursos naturais e nos aliena numa única possibilidade de felicidade ligada à posse e ao domínio.

Creio que assim “Onde está o perigo [dos migrantes] está também aquilo que salva”, o niilismo a auto-superar-se.