A Voz

Portugal é um país luminoso, todos o dizem com orgulho. E mesmo que uma modéstia santa nos proibisse qualquer sobranceria, as estatísticas meteorológicas confirmariam esta ideia.

Todavia, por vezes deslizamos para o lodo metafórico, sem nunca termos tido um movimento surrealista empenhado em misturar linguística e húmus. Aliás, para João Gaspar Simões, por exemplo, na poesia de Mário de Cesariny ou de Alexandre O’Neill “há até mais lirismo do que surrealismo”. 

Talvez seja isso mesmo, somos mais líricos do que surreais, que tomado à letra significa “sobre-reais”, isto é, ainda mais realistas do que os pragmatistas que fazem contas à vida. O “Zumbe uma mosca, incerta e mínima...” de Vicente Guedes/Bernardo Soares é mais do nosso gosto do que “Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos / frente ao precipício / e cair verticalmente no vício” de Cesariny. Mesmo se o segundo tem ainda um fio de moral, distante, pois, do espírito dadaísta, percebe-se que “cair verticalmente no vício” traduz uma realidade mais real, surreal, do que o zumbido de uma simples mosca.

Explicações, vãs, como quase sempre.

De uma ou de outra forma, Portugal acabou, cheio de luz, na Quinta. Ela é mais do que um epifenómeno, já que representa o veio profundo que nos liga a qualquer coisa de misterioso. Mistério lírico mais do que surreal, cheio como está de senso comum e de dispositivos, linguísticos e não linguísticos, relacionados com as Cantigas de Escárnio e Maldizer, esbatidas pela força das marteladas teológicas e um vago revivalismo de um New Age distópico recuperado do 1984 de George Orwell.

Confirmem-se as expressões: uma “Voz” que dita novas tábuas da lei, um “pastor” que “escolhe” e “decide”, tentativas de agressão, consequentes com o aquecimento dos ânimos (imaginem que ao seu aquecimento sobrevinha a ponderação e a urbanidade...), para depois a magnânima Teresa, empreendedora sagaz devido à simplicidade unidimensional com que entende e vive no mundo, e novamente a “Voz” (vou revelar um segredo: a “Voz” sou eu) fazerem, em directo, uma “dupla chamada à razão”, espécie de Call to Reason sem mediações, aos impulsivos assassinos que habitam a Vila Balzac, sem livros nem Ega. Depois de tudo, como sempre em teologia barata, lá conseguiram levar o monstro desregulado para o “confessionário”.

No final, parece que alguém foi "nomeado", pelo que se vai sussurrando, espera-o algo de terrível, mas o pior está reservado para nós.