As Aventuras do Senhor Lourenço (§9 Lourenço Bartleby)

(cont.)

Aproxima-se o segundo acto desta tragédia (a partir do §11). Aí darei notícia de outro Lourenço, mais apetitoso, digamos. Por enquanto, obnubilado em relação à realidade, este homem médio passeia nas ruínas do tempo, sem conseguir entrar plenamente na relação dialéctica criação/destruição (e esta indiferença não lhe dá qualquer simpatia). Atacado pelo burnout que consome muitos dos humanos hipermodernos, Lourenço sente que a sua alma está esgotada, talvez tenha até nascido já esgotada (um não nascimento, aurora invertida).

[alguns perguntam pela identidade deste narrador, “quem é António Lisboa?”, ouve dizer-se um pouco por toda a Lisboa semi-culta. Mas como Foucault, “escrevo para me apagar”, para ser ninguém e fazer uma hagiografia pícara do meu amigo desaparecido. Além disso, não confio na ideia ou no impulso da arte pela arte, a literatura é para mim reflexão, ensaio. Em bom leitor de Martin Heidegger, sou um artista que desvela o seu horizonte filosófico, acreditando que o nada não é o contrário da existência, visto que está no seu centro. Assim, a criação assenta num vaivém entre o nada e alguma coisa, e cada autor trata de si. Mas posso dizer mais uma coisa: a inspiração surge de todos os lados, de todos os temas, de todas as coisas, até dos anúncios publicitários ridículos.]

Por enquanto, vejo similitudes entre Lourenço e Bartleby (magnífica e evanescente personagem de Herman Melville), também Lourenço está desprovido de mundo, nesta época onde tudo parece possível (já não vivemos na sociedade disciplinar de Foucault, somos impressionantemente livres), desde que nos empenhemos até ao tutano. Lourenço não quer fazer nada, não quer ser nada. Se lhe dissessem que ficaria invisível e intangível acharia isso uma boa solução. É verdade que nem sempre foi assim, já houve alturas em que alimentou a presença radical da amargura, quase abraçou um gang revolucionário de bairro quando aderiu a um pequeno partido “progressista”, teve até alguns rompantes que o fizeram levantar a voz, houve mesmo um dia em que esmurrou um palerma da direita teológica, vagamente deficiente físico e mental. Mas o esforço não valeu a pena, a quebra seminal do circuito vital imprimido por factores internos e externos (talvez por a mãe o proteger sistematicamente da estupidez violenta do pai) nunca lhe trouxe a saúde afirmativa que os machos normais possuem até aos 40 anos. Enredou-se, pois, numa subjectividade pseudo-trágica e experimentou escrever poemas no estilo de António Nobre. Lançado na realidade, foi-se adaptando, baixando, desviando, fugindo (quase se tornou um bom atleta do Desporto Escolar), escondendo, desaparecendo.

Arte do desvanecimento. Embora vigiado, Lourenço acredita que algo, talvez Deus, talvez o Diabo, o acompanha permanentemente, não para o guardar, mas para o acusar e pouco depois, numa celeridade anti-portuguesa, o castigar. Sem ecos não haveria vida singular, uma pessoa faz-se pelo que em si ecoa dos outros e de si neles. Em Lourenço ressoam todos os signos que desde os gregos significam, desenham a geografia do Inferno. Por seu turno, de si projecta-se a melancolia mais desoladora de que há memória.

– Então senhor Lourenço, é o costume?

– sim.

– Cá está, tem visto a Quinta?

– A Quinta?

– Sim, da TVI, não me diga que não vê televisão?

– Vejo, mas não os canais portugueses.

– Já que paga a taxa, aproveite.

– Não, obrigado, prefiro a FOX.

– Intelectuais...

– Não, só vejo séries policiais.

– Oh senhor Lourenço, não me dê música!

– Não dou, sou uma pessoa normal.

E assim por diante, no café ao pé da escola. A empregada é fresca, sem muito tento na língua, mas indicia uns belos seios (é por aqui que se amansam muitos homens). Lourenço passa lá frequentemente. Por nada em especial, nem pelo café. Necessita disso para pontuar o seu dia. E começou há pouco a matutar na possibilidade de lançar um piropo à Vanda, iniciado por: “A menina é atrevida, não quer atrever-se um pouco mais?” Talvez mais curto: “A menina quer atrever-se?” Não, demasiado subtil. Bom, era logo um: “Vanda, quer foder comigo?”

É isso mesmo, a frase vai ser dita (parece um imperativo cósmico). E Lourenço preparou-se para a negativa, e talvez o insulto vindo da indignação arrebatada de peixeira. Mas quando chegou o momento em que, embriagado por uma noite de insónias, lhe perguntou se queria foder, ela respondeu que sim, desde que recebesse uma nota de €100.

Lourenço emudeceu e tremeu, um técnica que o seu corpo usava para evitar algumas vergonhas.

– Então, sim ou não?

– Sim, €100, ok, está bem.

– Quando?

– Hoje, logo, onde mora?

– Aqui ao lado, Óscar Monteiro Torres, 27, 3.º Dto.

– A que horas?

– 9?

– Lá estarei, lá estarei. Mas não espere por qualquer redenção.

(cont.)