As Aventuras do Senhor Lourenço (§12 golpe de sorte)

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Entramos, pois, na nova fase da vida aventureira de Lourenço. Mas não estou certo de que tenha qualidades, estilísticas, analíticas e éticas para narrar as sublimidades que vão acontecer até ao §20.

[só deve escrever quem é virtuoso, a literatura ri-se dos esforçados. Cada frase, cada palavra deve possuir força transcendente, estar, sem concessões, para lá da vulgaridade. Só há alguma desculpa para os jovens, mas, por favor, não se armem em génios, nem repitam os erros simplórios do passado. Comecem por ler, ler muito, depois escrevam durante 10 anos para a gaveta. A seguir, desenvolvam uma natureza abrangente, sintética e simples. Por fim, escolham uma editora decente, mais preocupada com a estética do que com a revolução ou o lucro (não são antinómicos). E lancem-se, sem remorsos, nos braços dos críticos, deixem-se analisar pela arbitrariedade, ou, pior, pela complacência]

Lourenço sabia, como a maioria de nós, que existe um abismo deprimente entre a vida vivida e a idealizada. Mas o episódio do terrorista (veio a saber-se que era realmente um elemento do Estado Islâmico, carregado de explosivos, que só não foram detonados devido à intervenção de Lourenço) ia lançar uma escada entre os dois lados, e o ideal tornar-se-ia real.

Portugal ficou em estado de choque ao imaginar a possibilidade de uma estação de metro rebentar à hora de ponta. Calculava-se entre 100 e 200 mortos, e centenas de feridos em agonia. No início, as notícias não referiram a intervenção decisiva de Lourenço, falava-se em “acção da polícia”. Mas alguém vendeu as imagens vídeo do metropolitano de Lisboa a uma televisão, suficientemente abastada e sem quaisquer pruridos editorais, a TVI. E claro, Lourenço começou a ser destacado, elevado a “herói”, ainda desconhecido, por “evitar a tragédia”. Televisivamente, vende-se melhor a figura singular do heroísmo do que o bem que faz termos leis da termodinâmica (sobretudo a bela e inevitável morte universal da 2.ª) ou, para os crentes, o braço bom, mas invisível, do materialismo dialéctico. A face humana, individualizada, é mais telegénica do que as grandes leis sociais ou físicas.

– Olha, é o nosso Lourenço! Não pode ser?!

– É ele mesmo, incrível, quem diria, parece incapaz de se salvar a si próprio!

– Bem, fantástico, vamos ver se aparece no intervalo para lhe perguntarmos.

Lourenço não apareceu no intervalo das aulas. Aliás, há três dias que não ia à escola, desde o episódio que tremia como varas verdes. Não podia aparecer assim na escola. Mas se a montanha não vai a Maomé, vai lá Maomé. E uma excursão escolar, com a bela Manuela à cabeça, tocou-lhe à campainha. Lourenço estava de robe, amarelecido por pelo menos três dias sem ver o sol, uma barba rala a tomar-lhe desajeitadamente conta da cara, a casa quase imunda.

– Entrem, entrem...

– Grande herói, então não dizias nada?!

– Dizer o quê, respondeu Lourenço, fiz o que devia fazer.

– Claro que não, retorquiu Manuela, é preciso coragem, e inteligência, eu não teria visto nada, e agora estava feita em pedaços. – Riu-se da patetice, talvez só para mostrar os dentes mais perfeitos de que havia notícia no Ministério da Educação.

– Fica-te mal a modéstia, continuou o João, colega de grupo, feroz inimigo da filosofia analítica, salvaste centenas de pessoas, elas querem agradecer-te e tu fechas-te em copas? Vai lá vestir uns trapos e bora lá para a rua.

– Não consigo, não consigo mesmo. – Disse a medo Lourenço.

– Não consegues porque não queres, agora era a Cristina de matemática, claro que consegues, 2 + 2 são quatro e ponto final.

– A sério, estou paralisado, se sair por essa porta desmaio.

Ao fim de muitos discursos chegaram a um compromisso salomónico: Lourenço sairia de casa no dia seguinte. Selaram o acordo com um café rançoso e desenhou-se a promessa da Manuela ficar para se oferecer como sobremesa. Estava tão excitada, ali à frente de um herói tão modesto o seu corpo tinha tomado conta de si, activando todas as zonas erógenas. Mal saiu a malta, Manuela atirou-se ao Lourenço e comeu-o, várias vezes, num ritmo e intensidade de bacante enlouquecida.

[caros leitores, não há amor, só sexualidade, des-sublimação do amor pela sexualidade. A libido é a super-estrutura do sentimento, quando julgamos amar ficamos refém do outro, e em geral não é uma alienação feliz]

Lourenço estava petrificado, evitara uma tragédia mas, em boa verdade, não tinha sido bem ele, aliás nem sequer se lembrava claramente do que acontecera (mas, raios, só se pode começar a fazer o bem quando se age, não?!). Talvez tivesse escorregado e agarrando-se instintivamente aos fios tenha desarmado o bombista suicida. Nada foi calculado, não se recordava de ter intencionalmente atacado o indivíduo, nem se via com coragem para tal. Não era um problema ético que o mantinha nesta angústia, mas o medo de ser descoberto, de ser apontado como uma fraude, pior, um oportunista. Mas os dados estavam lançados, talvez ele tivesse o talento particular de se fazer passar por aquilo que não era, talvez conseguisse manter-se como herói, e durante dois ou três anos ia ser, como dizia um amigo dele, um grande regabofe. Além disso, “Quando há experiências de verdadeira grandeza não é assim tão importante o que se faz!”, nem como se faz.

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