Notas sobre a dilaceração do eu (entre Nietzsche e Pessoa)

Alguns sonhos, pelo conteúdo e pela forma, obrigam-nos a pensar uma e outra vez sobre a identidade, a frágil evidência de que somos uma individualidade plenamente constituída capaz de olhar para os outros e para o mundo a partir de um centro de inteligibilidade intrínseco: a nossa soberania racional. Só que o cogito cartesiano ou o Ich hegeliano e kantiano, subjectividade totalizante e reflexiva, primeiro garante das certezas que temos ao habitar na vida (justapondo-se-lhe Deus, em Descartes e Kant, e o historicismo em Hegel), este “eu” que usamos sem duvidarmos da sua consistência, é, afinal, um dispositivo narrativo (e mais do que isso) que funciona porque nos comprometemos, em geral inconscientemente, a não questionar a sua validade. Ontem, por exemplo, passei o dia todo sem dúvidas de que eu era eu, até que durante a noite um sonho me pôs numa situação tão rocambolesca que a minha noção de realidade foi torcida até ao absurdo. Dir-se-á que recuperei a crença básica na identidade mal acordei, mas não foi bem assim, se é verdade que não contaminei a vigília com o onírico, o que se passou no meu cérebro durante o sono introduziu uma dúvida irresolúvel sobre quem sou eu.

A questão elementar da identidade nasceu provavelmente nos primórdios da humanidade, é impossível raciocinar sem questionar quem raciocina. Mas talvez só muitos anos depois, a filosofia grega – com Heraclito, Parménides e, entre outros, Sócrates –, desenrolando um pouco mais o novelo dos mitos dramatizados (Édipo julgava-se outro, Agave perdeu tragicamente a noção de si...), tenha desenvolvido uma autêntica inquirição ao eu. Posteriormente, simplificando bastante, o Cristianismo com a sua história total, do início ao fim do mundo, sugou-nos muita da vontade de continuarmos a escavar um tema secundarizado pelas controvérsias teológicas, Deus abafou quase tudo. Talvez Shakespeare e Cervantes tenham escapado à monocultura teológica, talvez também Velasquez e Goya, mas foi preciso esperar pelo século xix para que o problema renascesse, aí Kierkegaard e Nietzsche inventaram, cada um à sua maneira, um “sujeito como pluralidade”. Kierkegaard com uma mascarada, escondendo para melhor revelar o que estava claramente para lá da identidade simplista, o que até podia permitir alcançar um sujeito ainda mais pleno, mas onde o velho eu perdia as honras de evidência e clareza (para justificar esta aparente contradição, citemo-lo: “o pensador sem paradoxo é como o amante sem paixão.”[1]). Nietzsche, que também se mascarou, de Zaratustra a Jesus, iniciou a mais séria e consequente viagem filosófica pela pluralidade subjectiva, em 1885: “A hipótese de um sujeito único não é talvez necessária […] As minhas hipóteses: o sujeito como pluralidade [das Subjekt als Vielheit]”. Por isso, o seu “Tornar-se aquilo que se é” exigia uma incessante formação de si mesmo, construindo e desconstruindo (Penélope à espera de si).

Na sequência disto, Walt Whitman formulou o seu “Do I contradict myself? / Very well then I contradict myself; / (I am large, I contain multitudes)”. Aproveitado por Joyce (em Ulisses cita Whitman; recorde-se também que aí refere Assim Falava Zaratustra e O Anticristo de Nietzsche) e, claro, Fernando Pessoa. Logo a iniciar a Tabacaria de Campos: “Não sou nada / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. […]. Mais claro ainda: “Be plural like the universe”. Ou, da Ode Triunfal, “Giro, rodeio, engenho-me”. Por isso, Ode Marítima, “A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.”

Como escreve Bartholomew Ryan no soberbo “Orpheu e os filhos de Nietzsche: caos e cosmopolitismo”[2], justapondo de maneira inteligente Zaratustra e Campos: “Pessoa e Nietzsche transformam a subjectividade numa pluralidade. Para Nietzsche, a condição final da transmutação dos valores é ‘uma enorme multiplicidade, que é, contudo, a contrapartida do caos’ (Ecce Homo, ‘Porque Sou Tão Perspicaz’, 9). Este é um dos requisitos para o seu pensamento.” (p. 78) O mesmo se passa com Pessoa, multiplicar-se sem se perder, um caos controlado, mas um caos. Identidade fragmentada numa pujante heteronomia, muitas vezes indomável. Tudo porque, como escreve Bernardo Soares no Livro do Desassossego: “Nós nunca nos realizamos. / Somos um abismo indo para um abismo – um poço fitando o Céu.”

O século xx apanhou a seta e atirou-a para muito mais longe (chegou ao além da pós-modernidade), da psicanálise à “morte do homem” de Foucault, do desaparecimento do sujeito de Blanchot ao homem colectivo do materialismo dialéctico, do cubismo picassiano às personagens grotescas e decompostas de Francis Bacon ou Egon Schiele, dos romances polifónicos aos filmes de Kubric ou David Linch, dos nicknames das redes sociais ao camalionismo de David Bowie, da crise geral de identidade que se vive na Europa ao frenesim, quase patológico, dos viajantes incansáveis (de resort em resort)... com a aceleração vertiginosa de quase tudo e os prolíficos simulacros de ubiquidade, com tudo isto e mais tanta coisa, sempre pletoricamente quantitativo, o eu, esse insignificante e tantas vezes improdutivo eu, parece ter os dias contados. Sobre isto, embora com imagens impróprias, foi o meu sonho premonitório.

 

 

[1] Migalhas Filosóficas, p. 84.

[2] Nietzsche e Pessoa, pp. 51-83.