Victor Heringer (1988-2018)

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A notícia mais triste de escrever: Victor Heringer, autor da Enfermaria 6, faleceu ontem no Rio de Janeiro. Entre os principais livros, contam-se Automatógrafo (2011, poesia), vencedor do prémio Jabuti pelo seu primeiro romance, Glória (2012), e um brilhante segundo romance, O Amor dos Homens Avulsos (2016). Victor Heringer era um dos jovens escritores mais talentosos da língua portuguesa. Era também, desde uma idade precoce, um verdadeiro homem de letras. Não temos palavras para a tristeza de assinar esta nota. Foi uma alegria e um privilégio conhecê-lo e editá-lo. Em jeito de homenagem, publicamos aqui, de novo, o seu texto para o nosso Caderno 4. Modos de Escrever, em que Victor Heringer fala da sua oficina e do que significa para ele escrever. Os outros textos que ele publicou na Enfermaria estão disponíveis clickando na etiqueta. Até sempre, Victor!


Sobre escrever, segundo métodos diversos

Victor Heringer*

 

Método rotineiro

Quando perguntado sobre minha rotina de escritor – uma pergunta bastante comum –, respondo com uma ladainha quase sempre restrita aos seguintes tópicos:

(a) não consigo estabelecer horários ou metas empresariais para escrever (5 páginas de 9h às 13h diariamente, por exemplo);
(b) reescrevo muito (quatro, cinco vezes o mesmo livro);
(c) cada livro ou texto demanda um processo diferente (a repetição mata a alegria formal).

Método prescritivo

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Método ecfrástico

Há uma fotografia tirada por Larry Towell em Manágua, capital da Nicarágua, no ano de 1984. Uma mulher, diante de um tanque de lavar roupa, cospe em um papagaio. A foto, em branco e preto, sempre me pareceu uma bela imagem-amuleto para pensar o trabalho do escritor. A boca humana, capaz de certa originalidade quando se empenha, versus o papagaio, um animal ele-mesmo o mecanismo orgânico do clichê. O cuspe, um ato agressivo e repulsivo. Minha hipótese inicial: o artista é o inimigo do clichê, da frase-feita, do previsível. Como escritor-leitor, abomino o previsível, inclusive o imprevisível previsível, isto é, o cálculo canhestro do inesperável.

Mas a legenda da foto de Towell, que só vim a ler anos depois de me deparar com a imagem, explica que era verão escorchante em Manágua. A mulher cospe no papagaio para aliviar o calor do bichano. Trata-se, portanto, de um ato de carinho. Minha hipótese matizada: o artista é inimigo, mas também amante do clichê. Sob perigo de se tornar incompreensível – oposto absoluto do chavão –, deve-se achegar ao lugar-comum (não só no sentido de trivialidade, mas também no de comunidade) e refrescá-lo.

Nessa dança, no jogo de distâncias, cada autor tem seu estilo.

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Método fisiológico

Nasceu-me um calombo no dorso do punho, por muito digitar e usar o mouse. Isso a literatura me deu. Horas de trabalho solitário prejudicaram o refinamento social. O ciclo de sono é uma bagunça. O regime alimentar depende do dinheiro, que não vem constante. Ganhei duas hérnias de disco, causadas pela alternância entre sedentarismo prolongado e ímpetos de atividade física intensa (subir montanhas, correr maratonas, mudar de cidades). As viagens, contraparte geográfica da busca formal, me gastaram as pernas e as raízes. E como diz Pablo Neruda naquele filme, enquanto abocanha uma cebola, os escritores são barrigudos, muito melhor é ser carteiro. 

Método Harold Bloom

Machado de Assis e Manuel Bandeira são meus dois pais. As obras me influenciam como autor, mas sobretudo ajudaram a forjar minha identidade, que aos poucos (esta é a esperança do ficcionista) vai se diluindo nos meus próprios livros, até que eu possa ser ninguém em paz.

Machado me deu os olhos, Bandeira me deu o coração.

A linhagem machadiana não é difícil de acompanhar: Laurence Sterne, Luciano de Samósata, Cervantes, Schlegel, Unamuno, os irônicos. Já a virtude de Bandeira é a ternura, e essa aprendizagem é feita corpo a corpo.

Dorival Caymmi me deu a utopia praieira.

Georges Perec e Donald Barthelme me deram o senso de alegria formal. Valêncio Xavier, Wlademir Dias-Pino, os concretistas brasileiros, Letícia Parente, W.G. Sebald e Arthur Bispo do Rosário me ensinaram a ser um escritor promíscuo. Toda linguagem me interessa. A fotografia, o cinema, o desenho, a música, a performance, todas as práticas e códigos contaminam o trabalho.

Lydia Davis, Cesar Aira, Beatriz Sarlo, Kawabata, Octavio Paz, Cioran, Gombrowicz, Tabucchi, Marília Garcia, Eduardo Coutinho, Calvino, Paul Salopek, Gaudí, Violeta Parra, Murilo Mendes, Hilda Hilst, Nelson Cavaquinho, Travadinha, Leonardo Fróes, Francesca Woodman, Lucian Freud, Vivian Maier, Malevich, Benjamin, Nanni Moretti, Guignard, Chris Marker, Cartola, Orson Welles, Kobayashi Kiyochika, Pedro Cornas, o Quinteto Armorial µ

Método aforístico-ontológico

(1) A escrita é um processo de incorporação, como um transe mediúnico[1] ralentado no longo dos anos.

(2) Mais do que se tornar ninguém, escrever é se tornar qualquer um. Para o escritor, não há a confortável ilusão da identidade, só as ansiedades das mil personalidades.

(3) A ficção – o conceito, seus tentáculos – domina tudo, a ponto de despertar a patética vontade de me transformar em obra de arte.

Método apocalíptico

O fim está próximo. Sempre esteve.

Foi sempre contra a morte que cantamos.

Só o fim nos une.  

Um minimanifesto — Salvar tudo, lembrar tudo o que fizemos. A arte no Antropoceno é o domínio público. Amar as digitais engorduradas que deixamos nos objetos, todos os fonemas, todos os ritmos, todos os amarelos no papel-jornal, todos os álbuns de família miúda. Tudo o que foi nosso nos interessa. Amar: renovar significado. É uma tarefa impossível, falta tempo para tanto: aí reside a nossa tragédia.

Contra o varejão das almas, do coração e da cabeça!

Método alegre

A uma ex-namorada com quem planejava passar o restante da vida, disse: quando eu morrer, se alguém perguntar, diga que eu era alegre escrevendo. Sou feliz escrevendo, assim como só sou feliz em viagem, em trânsito. Deslocável. A alegria de encontrar um novo modo de dizer, um novo processo textual ou um novo personagem é a mesma de descobrir uma mesquita num beco impronunciável, um amigo de albergue ou uma trilha de montanha onde torcer o tornozelo.

Eu tinha certeza de que morreria antes dela.

Estamos vivos.


* Victor Heringer nasceu no Rio de Janeiro em 1988. Prosador, poeta e ensaísta, publicou os romances O amor dos homens avulsos e Glória (prêmio Jabuti 2013), além do volume de poemas automatógrafo. Escreve crônicas regularmente para a revista Pessoa.

[1] Para uma reflexão mais detida sobre a relação escrita/incorporação/corpo/transe, no contexto dos ritos mediúnicos, v. entrevista dada ao Caderno de Ideias do Instituto Cultural Freud, do Rio de Janeiro:

CADERNO | Você considera que uma relação com o seu corpo real também se cria a partir daí, no sentido de uma transformação perceptiva? 

Victor Heringer | Sim, vou dar um exemplo ligado ao transe mediúnico, que se relaciona, para mim, com a incorporação de que falei acima. O gestual característico dos pretos velhos é bem conhecido: as costas encurvadas, os movimentos lentos, os passos arrastados e a voz quebradiça não são exatamente "atuados", no sentido cabotino de fingimento. O cavalo, que baixa a entidade, sente o peso nas costas, a dificuldade no andar e as cordas vocais deterioradas – embora, num fiapinho de consciência, saiba que não é assim. Isso ocorre com certos atores, eu imagino. E também se dá com alguns escritores, na fala, nos atalhos mentais e às vezes até mesmo na dimensão mais imediata do corpo.

(A entrevista completa está disponível on-line: http://bit.ly/2gJioLu)