As musas não se apresentam
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Porto, 30 de Agosto de 2020
meu querido amigo,
Como nós os dois gostamos de coisas vagamente deslocadas, não teria outra forma de estar na apresentação do teu livro senão assim, com um texto que fique só aqui entre nós. Nem se esperaria outra coisa de um evento como este, cheio de gente que tem demasiada paciência para ouvir. Há que abusar dela. Pouco ainda se ouvem os poetas, especialmente os que estão vivos, o que parece ser cada vez mais um inconveniente. Ficam aqui entre nós, portanto, estas linhas, e por amizade. Começo, pois, por pensar sobre o título Merda para as musas, que não está na capa, mas no início do terceiro poema da terceira parte do teu livro (e se foi por acaso este movimento do número três, ainda melhor – o três é um número importante para quem gosta de solenidades). Chamaste-o, a esse poema, Merda para as musas.
Merda para as musas
enchem-nos a cabeça de nuvens
e o estômago de sol
e quando nos abandonam
deixam no seu lugar
um cão raivoso acorrentado
um gato no cio
que não cessa de miar
a auto-mutilação é inútil pois
elas voltam com diferentes caras e
diferentes vozes e diferentes canções e
tudo germina e cresce
outra vez
outra primavera
merda para as musas
Disseste que as Musas “enchem-nos a cabeça de nuvens / e o estômago de sol”, e talvez noutro século as celebrássemos como justas deusas; hoje sobra-nos, a nós que as conhecemos desses calhamaços que fingimos que já lemos ou naqueles que lemos e nos pesaram demasiado, a sua experiência fingida, a bazófia da sua inspiração. Como disseste em “um buda feroz” (embora fucked up Christian também pudesse servir como título), “carrego sempre um pequeno monte / de livros quando vou para a cama (...) agradeço-lhes o frete”. Partilho também eu esse teu heróico terror perante a angústia do que deveríamos ler e nunca pudemos, especialmente se a causa é uma preguiça cristalina. Talvez por isso suspiremos e insultemos agora as musas, múltiplas e todas, e fiquemos como “gatos com cio”, tal como escreveste, perante a volúpia de uma grande e inacessível biblioteca. Reparei que a frase merda para as musas figura três vezes: no título do poema, no primeiro verso e no último, uma espécie de cápsula sagrada – como em algumas religiões se faz – para tornar sagrado o que queres revelar. És talvez um poeta mais lírico do que queres fazer acreditar, talvez porque ainda insultas as musas. Sabes, também eu acredito nelas, e sou estúpido o suficiente para saber que sou apenas mais um aglomerado de sangue e nervos: conheço os nossos erros porque partilho grande parte do universo que colocas em verso. Nunca poderia escrever como tu, mas leio muita coisa como tu. Não nos camalhaços do nosso “buda feroz”, mas apesar deles, como tu bem sabes.
Volto à primeira parte do teu livro. Chama-se “perguntem ao whiskey”. E logo no primeiro poema, “o buraco da cozinha”, assumes uma voz masculina, vagamente boémia, e reclamas “não escolhas uma mulher que tenha tido muitos homens / não escolhas uma mulher que tenha tido poucos homens”. Há neste poema uma certeza do feminino – que ao contrário do que se pensa, pode ser muito saudável – ou pelo menos do amor entre um homem e uma mulher – a consciência de que este não é salvação nenhuma, apenas um encontro de paranóias. E de facto, no teu pequeno livro, não se sobrevive a nenhuma. Não sei se é verdade o que João Bosco afirma no posfácio do teu livro, onde atesta que és o Bukowski português. Como teu amigo, não te desejo nada disso, seria aliás cruel da minha parte. O risco biográfico de Bukoswki é demasiado, e embora me ria muito com as suas mulheres, tenho por ele uma espécie de piedade deslocada, que não quero sentir por ti. Quanto à segunda parte, Bukowski português, então não te desejo de todo seres português, é demasiado pouco. Podes até ter duas personagens nos teus poemas profundamente portugueses, o puto da Bica, um bêbado com a proverbial bazófia de quem não é incapaz nem capaz, mas capaz de tudo, e um bulldog inglês, que “arrumava carros e motas / e insultava quem não lhe dava moeda / por apontar com o dedo certeiro / o lugar vago para estacionamento”. Mas a sua portugalidade esboroa-se na tua frieza capital, de quem conhece outras europas e outros mundos, e vê uma cidade que nunca será sua – nem Lisboa, nem Porto, nem Veneza, nem nada – contaminada por essas surdas hordas de turistas que agora desapareceram, mas não tardarão a voltar com as suas máscaras cada vez mais elaboradas. É isso que se conclui no final do teu “puto da Bica” – a ironia dos poetas da nossa geração, que cada vez mais abominam a ausência dos versos nas suas ruas, e que têm de os encontrar no sítios mais ausentes:
“isto é que é uma maravilha” disse o puto da Bica
olhando embasbacado para as estrangeiras que desciam do ascensor
com o copo inclinado em ameaça de
verter o vinho a qualquer instante
é um talento raro equilibrar ao mesmo tempo
a embriaguez e a volúpia
sem fraquejar
e nós cedemos sempre
Estas são, de facto, umas musas de merda. Não deixam, porém, de nos convocar para a tragédia da sua épica deslocada. Como nesses filmes de Hollywood de que te queixas no segundo poema do teu livro, em que o sujeito lírico “bate uma” (não sabes como estive à espera toda uma vida académica para poder dizer algo como isto – o sujeito lírico “bate uma”, e repara no pormenor das aspas) à espera de melhores filmes, enquanto no seu íntimo assoma já o segundo andamento da sétima sinfonia de Beethoven – aquele mesmo andamento que já iluminou tantas películas, como o absurdo início do The Tree of Life do Malick. Esta sinfonia é precisamente a banda sonora do teu terceiro poema, abafada pelo olhar incómodo de uma mulher e pelo ruído branco de uma máquina de lavar – 1400 rotações por minuto, 1400 ruídos que atrapalham as nossas musas de merda, a angústia de sentirmos o que quer que seja, uma angústia que não é só de Bukowski, mas do nosso mundo moderno. “Que queres tu?” perguntas duas vezes nesse poema e concluis, sarcástico como sempre, que “basta de falar de amor por hoje”.
Talvez não saibas, porque me conheceste numa aula de literatura, onde eu a contragosto me irritava com a minha voz professoral de vão de escada, prometendo saber coisas que não sabia (como gosto tanto mais de ensinar línguas mortas!), mas também eu tenho um terror religioso por musas, especialmente as de sarjeta. Almornos foi a minha pátria; uma improvável aldeia de Sintra que nos anos oitenta tinha os jovens da minha idade amarrados à heroína – não uma Fedra ou uma Cleópatra – mas à droga, pura e dura. Não conheci os vizinhos por um medo instintivo de pais refugiados. E depois veio a vida de subúrbio, sempre contaminada pela distância, Caneças, Odivelas, estertores de cidade, e eu sempre fugido para Lisboa nos autocarros da Rodoviária Nacional. Ao menos tu encontraste as musas certas em Foros de Amora, invejo-te por isso. Soubeste no teu poema sinfonia em ré menor – o som dos rateres das motas de fim-de-semana – ter como musa uma vizinha de cima, que queria fugir de casa e acabou coxa, engolida pela violência e pela polícia. E embora a tua visão seja ainda de fora, como qualquer céptico que se preze, sente-se aquele lirismo de que nunca te conseguirás libertar, espero eu, e que faz de ti um poeta que nunca terá os 27 anos que afirmas ter no teu livro – uma tensão a que nunca resistes, embora tanto tentes, e a que sucumbes de vez em quando, como no teu poema “vamos provar o sol” ou na tua “lareira”:
o cheiro de um novo amor
é como o cheiro
de lenha a queimar na lareira
entranha-se na roupa
na pele
nos lençóis
e permanece
e perdura
até que precisemos de novo
à noite
de acender outro fogo
É assim a segunda parte do teu livro, “afogado em chamas”; se bem li, estas chamas vieram da “alvura das chamas do tecto” do teu “buda feroz” – o poema que poderia servir como pivot do teu livro. Gostas de repetir versos que dão ritmo, e um em especial se destaca neste poema: “alguém que nos proteja dos nossos demónios” – um demónio bem pariensiense que se espalha por cinco poemas em chamas. “Estou fodido” é talvez o título que melhor suplica a empatia com um leitor solidário, que estuda nos teus versos a verdade ou a ficção da escrita, um leitor homem, preso ao corpo da mulher, que se tenta libertar também ele de uma femme fatale cujo ridículo conhece melhor do que ninguém:
toda a graça e mágoa
de uma diva de cinema se reuniam naquela mulher
era uma mulher de alfazema na mão
ou de bâton-rouge em riste
Nesta segunda parte ouve-se muita música, Haendel, Ray Charles, até entrar por lá uma musiquinha absurda de Vivaldi; só quem escreve em música sabe o quanto o som errado pode estragar uma musa, nem que seja uma musa fingida, como é o caso.
Ainda bem que há livros de juventude – e este teu livro é, sem dúvida, um livro de juventude, e talvez o venhas a escrever mais vezes, se a merda das musas o permitirem. Mas devo-te confessar uma coisa, que talvez diga mais sobre mim do que sobre ti, caindo aqui no ridículo daqueles que apresentam os livros dos outros sempre com um enorme espelho na audiência. A tua juventude faz-me lembrar aqueles filmes jovens dos anos 60, a preto e branco. Fazem-me lembrar o Roberto de Il Sorpasso – talvez o mesmo Roberto por quem os sinos já tinham dobrado em Hemingway. Dino Risi faz da juventude uma coisa antiga, repetida, violenta, que se vai rindo até morrer num desastre de automóvel, excitada pela velocidade, como Alexis na Phaedra de Jules Dassin. Os jovens ficaram sempre presos nos livros e nos filmes, tal como Anthony Perkins e Jean-Louis Trintignant ficaram. Uma coisa difere, porém, e que me faz respeitar-te talvez mais, ou pelo menos rir-me mais contigo; enquanto estes dois morrem em carros de alta cilindrada, excitados pela vertigem da velocidade e das rotações de um motor que excedia largamente as tuas 1400 rpm, o jovem do teu livro continuará sempre sentado na sua Vespa em vertigem de amizade, bêbeda, cantando Carosone, um Sarraccino tão napolitano como a merda das musas:
vertigem
é estar montado numa Vespa
enquanto o teu amigo guia
(os dois bêbedos)
cantam o “Sarraccino” de Carosone
e a “Malafemmena” de Murolo
e tu te apoias no assento
com a mão esquerda
e falas com o teu amor ao telefone
com a mão direita
sem capacete
porque a verdadeira vertigem
é essa voz que
te sussurra ao ouvido
Pedro Braga Falcão