Fulgurações – pontualidade

Num misto de rebeldia cultural e autoconstrangimento, sempre admirei a pontualidade, ou melhor, quem e o que era pontual. À falta de exemplos concretos – num país que se não glorifica o atraso, pelo menos o tolera muitíssimo, como se fosse um sinal de fatalidade insuperável (veja-se os patéticos “quinze minutos de tolerância académica”) –, cheguei a imaginar uma utopia completa (criação de mundos a la Antigo Testamento) onde a pontualidade fosse a lei que cada um se dava a si próprio. Depois, numa viagem que retrospectivamente considero como um rito de passagem por excelência, vi, misturando júbilo e incredulidade, que os comboios na Bélgica chegavam ao segundo. Julguei ter desembarcado no non plus ultra da civilização.

Entretanto, foram-me nascendo outros olhos e comecei a ver falhas no meu postulado. Mas, como qualquer crente, desvalorizei-os enquanto excepções que confirmam regras. Sabe-se, esta lógica salva muita gente da vertigem céptica.

A história não acabou aí, talvez por gostar de excepções, do que aparece e desbarata a unanimidade e o autocontentamento (muitas vezes, uma coisa leva à outra), do desafio ao dogma, da linha solitária que trama a composição perfeita.

A continuação deu-se em surdina, os fora desta lei nem sempre eram admiráveis, e quando eram mantinha o benefício da dúvida: “sim, interessante, mas podiam ter chegado a horas, não se perdia nada”. Porém, o acumular de desvios interessantes (sempre minoritários em relação à lei, contudo) preparou-me, num treino de anos, para me render à força demiúrgica da frase que uma amiga, editora de uma dieta social à base do risível, divulgou há uns dias:

Há pessoas que apesar de serem pontuais, nota-se-lhes um certo atraso político