Uma viagem pela Europa, cidades (parte III)
/De onde és? Uma pergunta simples e frequente com uma resposta difícil, se quisermos ser verdadeiros. O local de nascimento será assim tão determinante? A socialização primária define o que seremos para o resto da vida? Ficámos com alguma dívida natural relativamente a um qualquer local? Somos de um só sítio ou de vários? Podemos dizer, como Kavafis, que devemos partir de Ítaca e prolongar o mais que pudermos o regresso? Nunca regressar? Renegar, até? Pensar com atenção o elogio que Édouard Louis faz à sua família meio iletrada, homofóbica e racista por o ter obrigado a partir (um pouco à semelhança de Didier Éribon). Sei hoje que se Bragança fosse um sítio mais habitável não tinha partido com tanta facilidade, e isso talvez fosse mau para mim, teria quase de certeza parado de me superar antes dos trinta anos, como aconteceu com os que ficaram ou retornaram a essa cidade que definiu o autocontentamento como estratégia para resistir à auto-dissolução (uma forma de ficar parado e acreditar que se avança).
A minha pátria é a Europa, a de agora e a dos últimos 30 séculos. Exagero? Sim e não. A forma como penso e sinto encontra sempre neste continente, no de agora e no de antigamente (múltiplo e heterodoxo), similitudes, na Europa nunca sinto uma solidão estéril ou uma fúria destrutiva. E será bem isto que procuramos na pátria, algo que nos acolha e nos proteja das trevas (numa noite fria sem luar, num monte isolado experimentamos as trevas), exteriores e interiores.
Claro que há várias Europas, mas ainda é fácil encontrar muitos sítios e pessoas que preferem uma poesia a uma chave inglesa, uma estante de livros a uma televisão dita inteligente, uma sinfonia a um martelo. Um critério mais modesto, mas com um grande poder discriminatório, seria o de escolher viver num sítio no qual as pessoas, num plural alargado, quando fossem à praia se preocupassem seriamente em deixá-la mais limpa do que a encontraram. Ou onde houvesse associações de moradores que cuidassem sistematicamente de colónias de gatos assilvestrados e dos jardins públicos, com as próprias mãos e reportando ao poder público as situações de mau funcionamento. Claro que, podendo pedir mais, gostaria de viver numa cidade temperada com uma ágora cheia de gente a falar do bem, do belo e da verdade (como nos diálogos platónicos, com extrema atenção ao que o outro diz, à procura de esclarecer uma dúvida, um enigma... e que bom seria encontrar novamente Sócrates, esse parteiro de inteligências). Haveria também tabuleiros de xadrez, e cada jogador saberia dispor as peças de forma tão rigorosa que só com ousadia, coragem e inventividade se conseguiria ganhar vantagem.
Na Europa real que visitámos, estivemos perto e longe do meu ideal (um ideal puramente sonhado, não creio que mereça a realidade que imagino). Longe em França (Lyon e Brive) perto em Pádua, Itália, e Freiburg im Breisgau, Alemanha. A uma distância ambígua em Turim, Itália, e Madrid, Espanha.
A ambiguidade, primeiro. Em Turim fomos influenciados pela desagradável Brive (é assim que se inflacionam as avaliações, experimentem ler o poeta razoável depois de um mau poeta, desses que ganham concursos reservados a naturais do concelho e nascidos depois de 1990 — isto existe, sabei-lo bem, e o ou a premiada jubilam com o prémio e as oportunidades editoriais que parecem emergir desenfreadas nesse mesmo dia). Mas tivemos também a percepção de uma cidade suficientemente grande para causar um frenesim vibrante, com praças amplas, um rio que no Inverno deve ser exuberante, ruas e mais ruas cujos edifícios se elevam por cima de arcadas (ruas de comércio intenso antes da invenção dos centros comerciais que no final do séc. XX enxamearam o velho continente, copiando o sucesso da sociedade de hiperconsumo americana), com ainda algumas lojas interessantes, mas sobretudo servindo de resguardo contra a chuva e o sol (inclemente, nalguns dias de Verão). Percebemos por que razão Friedrich Nietzsche adorava Turim, onde teve um dos anos intelectualmente mais prolíficos (1888, escreveu o Anticristo, Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche Contra Wagner, O Caso Wagner e Ecce Homo), até colapsar nessa mesma cidade em Janeiro de 1889. Antes do aquecimento global, Turim era uma cidade temperada, suficientemente cosmopolita para acolher um apátrida, com uma boa agenda cultural. Nietzsche gostava das ruas e das pessoas, mais discretas do que as de Génova ou Nápoles. Agradava-lhe também o baixo custo de vida, alugava-se um quarto e comia-se bem por pouco dinheiro (e ele tinha pouco dinheiro). Hoje, continua a ser uma cidade acessível: é possível jantar por cerca de vinte euros, um apartamento numa rua central de duas assoalhadas custa entre 150 000 e 200 000, um gelado de pistáchio, duas bolas, cerca de três euros. Além disso, é uma cidade que gosta de ténis, realiza há uns anos o Master ATP Finals (oito melhores tenistas do ano). Se vivesse lá, seria uma semana de ténis fantástica. A tudo isto acresce estar perto dos Alpes.
Madrid tem três magníficos museus, sobretudo de pintura (pinacotecas), num raio de 600 metros: Museo del Prado, Reina Sofia e Thyssen. Grátis para professores, mesmo estrangeiros. A ideia de um professor culto parou a meio caminho em Portugal (ficámos muitas vezes a meio caminho, por falta de ousadia com certeza, por cansaço metafísico também, mas igualmente porque não sabemos como percorrer a parte que falta). O parque de El Retiro, grande, central, cuidado, diverso, perfeito para uma tarde de leitura nos dias mais quentes. Restaurantes pouco caros e que servem bem. O limite de velocidade dos automóveis é de 30 km/h, isto torna imediatamente a cidade mais habitável, menos agressiva, mais lenta, menos ruidosa. Cidade limpa, cujo metro é um excelente meio de transporte, racional, previsível, fiável, sem as greves tontas do de Lisboa. É perfeitamente exequível viver e trabalhar em Madrid sem usar o automóvel (o dinheiro que se poupa sem esta prótese quase imprescindível em Lisboa ou Porto, dá para viver três ou quatro anos com uma licença sem vencimento, o tempo de escrever um romance). Há teatros, cinemas, livrarias, esplanadas, universidades, um aeroporto internacional a sério... Uma cidade de que não teria partido se por acaso tivesse nascido lá. Dois problemas, contudo: o preço da habitação, ao nível, talvez até um pouco mais, de Lisboa, e as altíssimas temperaturas, dia e noite, de Verão. Mas, vá lá, com muita sorte teria nascido numa família endinheirada e podia escapar durante as canículas para lugares mais frescos. Ou ia ao Prado, todos os dias, ver quadros e pessoas (considero que quem vai voluntariamente aos museus são os melhores da humanidade, não sei se moralmente, nem isso me interessa muito, mas nos gestos de observação. Eles revelam a curiosidade que almeja compreender e consolar-se com o belo ou o sublime (guardo este sublime para a arte contemporânea pela sua capacidade de gerar o pânico do fim da arte). Ver um grupo de japoneses a tentar decifrar meticulosamente o Las Meninas, não por exotismo, mas à procura de algo que ligue a pintura europeia à arte da gravura do seu país, dá-me um prazer que raramente obtenho noutras realidades.
A trilogia museológica de Madrid que referi há pouco pode ser suficiente para desenhar um projeto de vida. Não vislumbro qualquer absurdo em passar pela vida dessa forma, não vislumbro sequer qualquer tédio, seria uma vida feita mais de diferença do que de repetição. Por exemplo, no Prado tive a fase Velázquez, a fase Goya, a fase El Grego, a fase Ticiano, a fase Rafael… agora estou na fase José de Ribera. Por outro lado, contemplar uma pintura activa todo o entendimento e inúmeros códigos de leitura (os mais próximos do mundo da arte, certamente, mas igualmente conceitos filosóficos, avaliações e especulações económicas, grelhas históricas, estratégias políticas, estatísticas sociológicas…). Desta vez, no Reina Sofia havia uma exposição com o título «De la máquina a las maquinaciones». Partindo dos pensadores franceses Félix Guattari e Gilles Deleuze, expuseram-se artefactos e documentos que pretenderam mostrar como a categoria de «máquina» pode, com proveito explicativo e performativo, substituir a de «estrutura». Uma revolução filosófica, social e política.
Cidades preferidas, aquelas nas quais gostaria de viver pelo menos durante alguns anos: Freiburg e Pádua. Na primeira, o que mais imediatamente me convenceu, persuasão pré-reflexiva, foi a sensação de que os habitantes vivem a cidade por inteiro, não num ou noutro lugar, mas na cidade. Porque o centro se vai alargando sem nunca criar periferias, margens com uma autonomia feita de discriminação (estética, económica e cultural). Por isso, circula-se de bicicleta ou a pé, sempre a uma velocidade moderada (lembro-me de em Bruxelas os ciclistas serem uns aceleras muito perigosos). A universidade tem o lastro negativo do reitorado de Martim Heidegger (de Abril de 1933 a Abril de 1934), do seu apelo aos estudantes para que seguissem o Führer, da sua participação no saneamento dos professores judeus. Mas tem também o lastro positivo de alunos como Max Weber, Hannah Arendt ou Walter Benjamin, e continua a ser filosoficamente relevante. Há, e isto é importante para mim (sou um falso sulista), água a correr por pequenas valas domesticadas nas ruas do centro mais central. É uma espécie de sistema de irrigação permanente que antes de se alojar na terra circula perto das pessoas, recordando-lhes que a água não nasce nas torneiras e oferecendo um som que alegra qualquer coração aberto ao mundo. Ao fim-de-semana há um mercado de produtos naturais no largo da catedral (Das Freiburger Münster). Uma magnífica banca de cogumelos, ameixas e pêssegos divinais, mas o que mais nos agradou, pelo que projecta, foi haver cerca de meia dúzia de grandes bancas de flores, variadas e belas. Isto significa que os habitantes gostam de embelezar as casas, de o fazer com coisas naturais em vez de bugigangas e ecrãs de televisões gigantes. Se pudermos escolher, devemos habitar um lugar que deseja o belo e o limpo, as pessoas são aí mais afáveis e discursivas (em vez de rudes e fala-baratos). A localização também é importante: junto à floresta negra, na qual as clareiras aparecem como o esplendor da luz que atravessa momentaneamente a noite; perto da Suíça, do lago de Constança, a meio dia de viagem dos Alpes; a um passo de França (Mulhouse, Strasbourg). Além disso, de suma importância, o alojamento tem preços que um ordenado médio pode pagar sem se privar, como acontece tantas vezes nas cidades maiores de Portugal, de comprar livros (esse supérfluo essencial).
Quanto a Pádua, amor à primeira vista, não sentimos qualquer força centrífuga, teríamos ficado lá vários dias, semanas, meses. A bela sonoridade da língua italiana (também me agrada a do alemão), as ruas antigas compostas por arcadas (mais orgânicas do que as de Turim, parecidas com as de Toledo), as igrejas (a magnífica Basilica di Sant’Antonio di Padova, a capela de Scrovegni), cafés a 1€, bicicletas em vez de carros, a simpatia dos habitantes, os cursos de água. É difícil explicar as razões todas por que nos deixámos abraçar por um genius loci, há qualquer coisa que nos primeiros tempos de vida num local escapa ao raciocínio, o encontro antes de ser cerebral é corporal (a «grande razão» de Nietzsche), olhamos, ouvimos, cheiramos, sentimos a pressão atmosférica… e isso é processado por mecanismos hermenêuticos anteriores aos conceitos. «É isto mesmo!», dizemos. Depois vem a análise, porque não vivemos na rua, porque compramos comida, porque nos nutrimos também de cultura, porque queremos viajar. Neste caso, temos o norte de Itália à disposição, os Alpes não estão longe, cinco/seis horas para chegar a Viena de Áustria (uma capital que não se envergonha de ser asseada), os Balcãs para mergulhar no mar Adriático a preços aceitáveis. E depois, um bom apartamento de três assoalhadas, bem situado, ronda os 200 000 euros; uma pechincha, comparados com os preços nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. O único, por enquanto, senão: as temperaturas elevadas nos meses de Verão, acompanhadas de bastante humidade.
Da pátria mínima de Steiner (será onde tivermos uma mesa de trabalho com café à disposição), à da língua de Fernando Pessoa, da Heimat nazi à Ubi bene, ibi pátria (a pátria é onde estamos bem) de Chateaubriand, do nomadismo nietzschiano ao sedentarismo fingido de Kant, do enraizar nacionalista ao deslizar cosmopolita, do sacrífico individual pós oitocentos (quantos hinos apelam ao sacrifício bélico — «pela pátria lutar»?) à sagração, narcísica muitas vezes, de cada ser humano, com um valor de uso incomensurável ao do território, do povo e da história. Só o hábito e a burocracia nos dão, sem qualquer processo de questionamento, uma nacionalidade, vínculo jurídico e afectivo (o primeiro chega para alguns). Agostinho da Silva, esse rebelde sensato, saiu do jogo. Talvez devêssemos fazer o mesmo, nos nossos próprios termos, sermos nómadas lentos: três anos em Pádua, três em Freiburg, três em Madrid… Nómadas analógicos, contudo. Habitar inteiramente os lugares, também com a força transformadora do trabalho, mas apostando sempre na sobriedade como arte de viver. Contribuindo, decidindo ficar ou partir, para uma boa gestão dos fluxos nómadas para que as assimetrias não despovoassem ou sobrepovoassem vilas e cidades, evitando a lógica perversa do sobreturismo actual.